segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Marcas e produtos

O Marketing é um florescente sector da economia das sociedades mais desenvolvidas, que integra  actividades tão diversificadas  como os estudos de mercado, a publicidade, a distribuição, o merchandising, as vendas  e as relações públicas. Actividades que empregam muita gente, e onde se pagam  salários bem acima da média. Todos os anos se investem muitos milhões de euros em desenvolvimento, em estudos de mercado em promoções e em publicidade para criar produtos e marcas, e para atrair e fidelizar os consumidores desses produtos e dessas marcas.

Mas o Marketing será uma dos sectores que, com o acentuar da crise económica, quando a racionalização do uso dos recursos derivada da sua escassez impuserem restrições aos consumos, poderá sofrer um grande impacto negativo. E não estará longe o dia no qual, como diz David Strahan, "o consumidor volte a ceder o lugar ao cidadão, com os direitos e os deveres que lhe são inerentes".

Muitos dos  produtos que se fabricam, que se vendem e se consomem, são produtos supérfluos, aquilo que poderíamos designar de “produtos avatares” por serem uma espécie de criações virtuais desfasadas da realidade. Muitos desses produtos satisfazem necessidades - pensem no relógio de ouro que se usa mais pelo prestigio que confere  ao seu utilizador do que para assinalar as horas - que nada têm a ver com a sua função primária. Na verdade, trata-se, em muitos casos, de “marcas sem produto”, por oposição às “commodities”, que são produtos sem marca.

Para melhor esclarecer este conceito de “produto avatar”, dou um exemplo: a Coca Cola é uma bebida gasosa refrescante, que tem as propriedades e as funções de outras bebidas similares como a limonada, a “gasosa” ou o velho “pirolito”. Só que na realidade as coisas não são bem assim. A marca “Coca Cola” acrescenta à bebida outros ingredientes para além da água, do xarope, do açúcar e do anidrido carbónico; acrescenta-lhe uma dose de “festa”, um pouco de “alegre disposição”, uma pitada de “ambiente jovem”, completados com um “jingle musicado” e umas gotas de cheiro a “american way of life”. Tudo isto, bem misturado e nas doses certas, constitui uma mistura explosiva e irresistível, sobretudo para os mais jovens.

Ora, se retirarmos à Coca Cola a água, o açúcar, o xarope e o anidrido carbónico, o que fica dentro da embalagem é uma “Coca Cola avatar”. É isso mesmo, o leitor já percebeu que aquilo que fica na garrafa é uma marca sem produto. E, na verdade, o consumidor paga mais por isso do que pelo líquido que bebe.

É esse “consumidor” que os técnicos de marketing, de publicidade e de estudos de mercado analisam à lupa, armados das ferramentas adequadas para o efeito, tais como estudos aprofundados, focus grupos, técnicas projectivas, técnicas de observação etnográficas, semióticas, etc... E até mesmo técnicas de neuromarketing, porque, constatou-se, o “consumidor avatar”, na escolha dos seus consumos, utiliza complexos processos mentais.

Paradoxalmente, dizem-nos que para estimular a economia é preciso consumir mais, quando o mais elementar bom senso aconselharia precisamente o contrário, que é preciso consumir menos e produzir mais. No futuro, a via da  transição vai seguramente alterar a relação das pessoas com os produtos e com as marcas. O desperdício, as embalagens sem utilidade, o "valor" abstracto da marca, as necessidades artificialmente criadas, serão postos em causa num contexto económico e social de um tipo diferente.

O incentivo ao consumo como finalidade última da economia é a miragem de salvação de um sistema que não tem futuro...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Portugal e o Futuro ou o Futuro de Portugal

“Portugal e o futuro” é o título de um livro que o General António de Spínola escreveu e publicou pouco tempo antes do 25 de Abril, o qual, acreditam alguns, muito terá contribuído para motivar os capitães de Abril a avançar para Revolução dos Cravos. Eu li o livro, já não tenho muito presentes as teses que defendia, mas acredito que, nos dias de hoje, o "futuro" de que falava Spínola já é "passado" e que temos de reequacionar o problema, e falar de “outro” futuro. Do nosso futuro, mas, sobretudo, do futuro dos nossos filhos e dos nossos netos.

“Portugal são os portugueses do passado, os portugueses de hoje e os portugueses que hão-de vir” , disse há tempos, na TV, Ernâni Lopes. Ora os nossos governantes, os políticos, as elites falam muito dos portugueses de hoje, e a história fala-nos abundantemente dos do antigamente, mas poucos são os que se preocupam com os que hão-de vir. E, na minha modesta opinião, deveriam preocupar-se mais, porque as nuvens adensam-se no horizonte, e o melhor é ir pensando em preparar o barco para a procela que, com toda a certeza, nos vai surgir pela frente.

Olhando para o Portugal de hoje vemos um país europeu que a globalização uniformizou, no que respeita aos padrões de vida e de consumo, pelo modelo do “ocidente”, e que em tudo se assemelha à forma como se vive em qualquer um dos países, ditos desenvolvidos. Claro que o futuro de Portugal, país da união europeia, vai estar ligado ao futuro da Europa; na verdade ele estará ligado ao futuro do Mundo, um mundo que por ser global está condenado a ter um destino comum.

Portugal consome muito mais do que aquilo que produz, e isolado ou entregue a si próprio, Portugal é, nos dias de hoje, um país inviável. Criaram-se dependências, hábitos de consumo, vícios de ricos, que lhe retiram qualquer possibilidade de vida autónoma. O estado social adormeceu-nos, aboliu o velho conceito da “luta pela vida”, relaxou o empenho em superar e alcançar, debilitou o engenho, criou o desalento. Tanto a nossa dependência alimentar como a nossa dependência energética (as  fontes primárias da riqueza real) são ambas da ordem dos 75%. Nestas condições, este país só pode sobreviver com a ajuda externa, e um país que vive de esmolas não pode aspirar a ser independente, nem a ter voz nos aerópagos das nações.

Abandonou-se a agricultura, abateram-se os barcos de pesca, desincentivou-se a indústria. O turismo e a construção civil, as apostas das décadas douradas que se seguiram à integração europeia, e que foram a causa do nosso modesto crescimento, já estão ou vão entrar numa crise profunda, cujo fim não está a vista. São sectores fortemente geradores de emprego, e o seu estado depressivo vai agravar ainda mais a penosa situação económica e social em que vivemos.

O problema demográfico é outro dos nossos graves problemas. A perigosa inversão da pirâmide etária provocada por uma elevada taxa de envelhecimento da população, e consequente diminuição da população activa, irá agravar o problema da dependência externa. A reduzida taxa de natalidade das populações naturais, aliada a uma maior taxa de natalidade dos imigrantes, sobretudo dos africanos, irá gradualmente alterar a base genética da população residente. Dentro de 3 ou quatro gerações Portugal, na sua composição étnica, será muito semelhante ao Brasil de hoje. E, a manterem-se a actuais taxas de fertilidade, antes do final do século, a população com ascendência africana poderá superar a população com ascendência europeia.

Ora um país que não se basta a si próprio e que não cuide do seu futuro, perde a sua identidade, os cidadãos perdem o orgulho da pertença colectiva, deixa de ter valor o sentido de pátria. Os símbolos da nacionalidade – o hino, a bandeira - perdem gradualmente o seu significado, e o velho ideal do “sacrifício pela pátria”, adquire, nos nossos dias, um sentido quase de anedota.

Mas este é ainda o meu país, apetece-me citar o grande Poeta: "esta é a ditosa pátria minha amada”. Os portugueses que hão-de vir merecem  que lhe deixemos uma pátria como herança. Urge, pois, cuidar o futuro, e defender e preservar os valores eternos de Portugal.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O fim de um certo mundo rural

Nos passados dias 7 e 8 deste cálido mês de Agosto, teve lugar em S. Pedro do Rio Seco o primeiro Congresso da Associação Rio Vivo. E, para os que não conhecem esta aldeia e esta Associação, convém dar alguns esclarecimentos.

S Pedro, à semelhança de muitas outras, é uma pequena aldeia do concelho de Almeida, situada na região de Ribacôa, que é um território que se situa entre o Rio Côa e a fronteira espanhola. Linha da fronteira que, desde o Douro até S. Pedro, é definida pelo rio Águeda e pela ribeira de Tourões, e a partir de S. Pedro, para sul, numa larga extensão que inclui os concelhos de Sabugal e Penamacor, pela chamada raia seca.

Esta região de Ribacôa é uma planalto, continuação natural da Meseta Ibérica que lhe fica a leste. É limitada do lado ocidental pelos penhascos do vale do Côa e a sul pela serra de Malcata, no maciço da cordilheira central ibérica. A norte, destaca-se a silhueta da Marofa, já nos contrafortes do vale do Douro.

São fracos os recursos destas terras: o solo é pobre, a água não é abundante, e o clima, muito frio no inverno e muito quente no verão, é extremamente agreste. Como nota dominante da paisagem, abundam os afloramentos graníticos (os barrocos como aqui lhe chamam), as giestas, as moitas de carvalhos e as carrasqueiras. E, sempre presente, o pinheiro bravo.

Nos primórdios da nacionalidade, esta região fronteiriça, disputada entre Castela e Portugal, era uma zona de castelos defensivos: Castelo Bom, Almeida, Castelo Rodrigo, Vilar Maior e Alfaiates; terá sido mais intensamente povoada a partir de 1296, ano em que foi definitivamente integrada no território português, após o tratado de Alcanizes.

Tradicionalmente, as gentes desta região dedicavam-se sobretudo à agricultura e à pastorícia: colhia-se batata, trigo, centeio e algum vinho. Produzia-se queijo de ovelha, cada família criava o seu porco e as suas galinhas, e a aldeia era auto-suficiente em frutos e hortícolas. Havia uma dinâmica actividade complementar de serviços: o merceeiro, o taberneiro, o sapateiro, o alfaiate, o pedreiro, o ferreiro, o carpinteiro, o barbeiro...

A casa agrícola típica de S. Pedro desenvolvia-se à volta do curral com a residência e o seu cabanal, as cortes, os cortelhos, os palheiros, a adega e a “tenade” onde se guardava a lenha. O lavrador desenvolvia a sua actividade apoiado na junta de vacas, de machos ou de burros, conforme a dimensão da sua lavoura. O carro de bois, que era diferente do minhoto, estacionava no curral. Os terrenos da exploração agrícola (as sortes, as tapadas, os hortos, as vinhas, os lameiros) eram de pequena dimensão, e estavam dispersos pela folha, muitas vezes afastados uns dos outros .

Não havia conforto nas habitações: entrava-se no meio-da-casa e de um lado estava a cozinha (em certos casos de telha vã e sem chupão de fumo) com o basal e a cantareira, e com uma pequena dispensa onde estava a tulha e a salgadeira; do outro lado do meio-da- casa, uma pequena sala com dois quartos (as alcovas) onde apenas cabia a cama. Não havia casa de banho, apenas um lavatório na sala com o seu jarro e um espelho na parede. Nalguns casos, sobre a sala e as alcovas, havia o sobrado onde se guardavam as colheitas para o uso da casa.

Desde há meio século tudo isto mudou, e um modo de vida que se aperfeiçoou durante seis séculos desapareceu completamente. A casa agrícola deu lugar a uma casa moderna com o conforto das casas das cidades, muitas vezes servindo apenas como segunda habitação. O automóvel tomou conta das ruas, os animais de trabalho desapareceram, o asfalto substituiu a terra batida, apareceu a electricidade e o saneamento, A autarquia, entretanto, construiu um moderno pavilhão multiusos, rasgou estradas, embelezou largos com jardins.

Como resultado da fuga para as cidades, a população permanente que era de cerca de 700 pessoas reduziu-se a pouco mais de 150 habitantes, a maior parte com mais de 65 anos. A escola fechou por falta de alunos. Resta um pequena actividade agrícola, quase um passatempo dos reformados, centrada nas hortas de proximidade. Cuidar dos velhos no Centro Social é, agora, a principal actividade dos poucos que trabalham na aldeia. A folha está praticamente abandonada, sendo a excepção a existência pequenas manchas dispersas de exploração florestal (de cupressus ou azinheiras), e algumas explorações pecuárias (de vacas e ovelhas), tudo a viver com apoios comunitários.

No mês de Agosto a aldeia ganha a vitalidade de uma estância turística. Emigrantes enchem a terra, cria-se uma ilusão de vida. E alguns vêm nisto um sinal de progresso, e acreditam que se está a prosseguir o caminho certo.

Mas esta aldeia está ferida de morte e não tem futuro: os residentes desaparecem, e outros não vêem para os substituir; os filhos dos emigrantes não virão ocupar as casas que os pais construíram. Os dinheiros do estado social vão escassear, os fundos comunitários também. É este o paradoxo do nosso tempo: as cidades não são a solução para o futuro, e as pequenas comunidades rurais perderam a sua sustentabilidade.

Nascida da vontade de uns quantos, a Associação Rio Vivo foi criada para perceber como foi possível chegar a este ponto e para intervir, da forma possível, para inverter esta tendência depressiva. No fundo, para ajudar a cuidar dos velhos e estudar a forma de reanimar a aldeia. Para impedir que ela morra...

Chegaremos a tempo de a salvar?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Tempo e a Memória

Nesta nossa era digital, a facilidade que temos em registar e difundir documentos e imagens está a permitir à Humanidade criar um arquivo fabuloso. Nunca, em tempo algum da História, a capacidade de criar memória para as futuras gerações foi tão ampla como é na actualidade.

A cada dia que passa, esta capacidade amplia-se e cresce em espiral. Cada registo criado pode replicar-se facilmente, de tal modo que poderá destruir-se nuns locais e preservar-se em muitos outros. O espaço de arquivo necessário, tão reduzido que é, também não se afigura limitativo ao seu crescimento. E o suporte digital onde se gravam os registos não se degrada facilmente, ao contrário do que se passava com os registos analógicos antigos (escrita, fotografia, filmes, monumentos...).

Projectando para o futuro o que se passa hoje, somos levados a pensar que, nos próximos tempos, esta memória poderá multiplicar-se quase até ao infinito. Dentro de 5 ou 10 gerações, cada ser humano poderá aceder aos registos digitais de texto, imagens e sons sobre factos e acontecimentos das gerações precedentes. E poderá construir, por exemplo, uma árvore genealógica com milhares dos seus antepassados.

Porém, como irá a Humanidade conviver com esta memória colectiva, de tamanha abrangência, já hoje tão ampla e ainda maior no futuro? Não será esta memória um pesado lastro a carregar, que acabará por enredar a própria mente humana, impedindo-a de evoluir e de criar? Até porque esta memória, por ser objectiva e indestrutível, não terá a benevolência da memória humana, a qual se esbate com o tempo, e esvai-se mesmo quando “não convém" recordar. Ao invés, esta será viva, actuante e implacável.

Numa perspectiva religiosa e evolucional, bem pode ser que este seja apenas um degrau a caminho do ponto ómega, desse "Fenómeno Humano" de que falava o padre Teilhard de Chardin. O que contará não será tanto o Homem enquanto Indivíduo, mas a Humanidade, essa entidade nova não apenas com Memória mas também com Alma e com Inteligência.

Vejo nisto sobretudo um sinal de uma complexidade crescente. E acredito que, num determinado momento, os custos de manter essa memória virão a ser maiores do que as vantagens que nos traz. Imagino que, por essa razão, não poderá ser mantida. E que chegará o momento do “colapso” digital, com consequências imprevisíveis.