segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O Futuro da Memória

Nesta era digital, a facilidade que temos em registar e difundir documentos e imagens está a permitir à Humanidade criar um arquivo fabuloso. Nunca, em tempo algum da História, a capacidade de criar memória para as futuras gerações foi tão ampla como é na atualidade.
Em   O Tempo e a Memória
No Coliseu de Roma já não se travam lutas de morte entre gladiadores, nem os cristãos são lançados às feras, mas ainda hoje a memória dessas lutas e desses massacres ali atrai, anualmente, cerca de quatro milhões de visitantes. O Coliseu de Roma é uma atração turística e tem associado um significado que é a sua memória. Claro que o espaço "em si" tem um valor que ultrapassa a argamassa e as pedras dos elegantes arqueamentos, é uma heterotopia no sentido que lhe deu Michel Foucault (De outros espaços).

As Jornadas Europeias do Património que são uma iniciativa anual do Conselho da Europa e da União Europeia realizam-se, este ano, no fim de semana de 28 a 30 de setembro, e têm como tema: "O futuro da memória". Sendo a memória o registo e a evocação das coisas passadas este título é uma expressão paradoxal,  algo como "O futuro do passado". A memória das coisas preserva-se na mente dos homens de forma imprecisa, e degrada-se ao passar de umas gerações a outras, mas hoje existem suportes para preservar a memória com uma capacidade e fiabilidade impressionantes. O que traz riscos de entupir e bloquear os canais de informação, reduzindo a criatividade, e constitui  "uma ameaça de glaciação do mundo devido à incessante acumulação do passado", no dizer do já referido Foucault

O património construído é um dos mais importantes suportes da memória, e  é importante preservá-lo, como espaço dessa memória, se queremos que ela tenha futuro. A memória associada às muralhas de Almeida (localidade onde irei participar nas jornadas) é o meu exemplo para reflexão. Qual o conteúdo e qual o futuro desta "memória" de pedra? Na época da sua construção (na versão abaluartada), iniciada em 1641, estas muralhas fronteiriças tinham a função de proteger o território das invasões estrangeiras, e o seu futuro, nessa data, estaria associado a esta função. Isto é,  os construtores esperavam que as muralhas cumprissem este propósito de forma eficaz e por longo tempo.

Existem factos e emoções ligados às muralhas, e que integram a sua memória.  A começar pela sua construção, incluindo o projeto arquitetónico e a sua lógica no enquadramento estratégico das guerras da época. Depois a  extração do granito arrancado à rocha mãe; o trabalho do canteiro para lhe dar forma; o transporte, a elevação e assentamento das pedras, tudo feito à custa da força dos animais e dos braços humanos. Depois os episódios de guerra, as marcas físicas dos impactos dos projeteis, as baionetas das espingardas das sentinelas raspando a pedra nas guaritas. E há o heroísmo de uns, a traição de outros e o sofrimento de muitos (sobretudo sofrimento!). E não é difícil imaginar o desconforto nas casernas frias e húmidas, e a escuridão depressiva das prisões das Casasmatas. As calçadas da vila foram calcorreadas por soldados anónimos,  feridas pelas ferraduras das montadas dos oficiais, e por elas correu sangue suor e lágrimas. Esta é a memória que as muralhas guardam. Estou certo que é muito mais do que a reconstituição dos confrontos das tropas de Napoleão e de Wellington, evocados em cada ano.

Ora, o futuro é incerto e as muralhas de Almeida muito rapidamente deixaram de ter a justificação que presidiu à sua construção.  Mudaram as técnicas de guerra, os sistemas de defesa antigos tornaram-se obsoletos, as mudanças no relacionamento entre os povos retiraram valor estratégico a posições ou locais anteriormente fortificados.  E, na verdade, cerca de 150 anos após a sua construção, as muralhas deixaram de cumprir a função para que foram construídas. Serviram ainda de prisão política nas guerras liberais, mas em 1927 a praça forte foi definitivamente abandonada pelos militares.

Mas as muralhas podem e devem servir para preservar e assegurar o futuro da memória que lhe está associada. Mas não se pode viver só de memória,  pois ficaremos paralisados se o fizermos. Precisamos de projetar a memória no futuro. Recriar a utilidade das coisas, dar-lhe novas funcionalidades, é a melhor forma de atribuir futuro à memória. O Coliseu de Roma é hoje uma peça de museu e é esse o seu valor. Tem um público que o "consome" como um produto. Como produto ele vende-se, utilizando as modernas das técnicas de marketing para se posicionar e comunicar...

Também em Almeida será necessário um grande esforço criativo para dar futuro à memória das muralhas. Julgo que é o momento de lançar mãos à obra.

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