segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A Cidade e as Serras


No últimos anos do século XIX, quando escreveu a  Cidade e as Serras, Eça de Queirós vivia em Paris. O autor,  que nos anos da sua juventude,  tinha retratado de forma admirável a sociedade portuguesa, debruça-se,  no final da sua vida, sobre os caminhos da Civilização, e contrapõe  a cidade urbana ao campo rural. Ao primeiro esboço do livro, ainda sob a forma de conto, ele chamou-lhe "Civilização". Já se preparava a grande Exposição de Paris de 1900, a eletricidade começava a iluminar as noites das grandes cidades, o telégrafo já permitia comunicar à distância, o comboio aproximava os destinos, e o progresso parecia ilimitado.

Esta Civilização que despontava foi simbolizada no livro de Eça pela figura de Jacinto, que a adotara inteira e devotamente. Na sua casa, no número 202 dos Campos Elísos, começava a nascer uma nova forma de viver. A eletricidade já estava presente,  havia elevadores,  telefone, fonógrafo, máquinas de escrever e de calcular. E até havia um conferençofone, que, presumo. servia para fazer conferências à distância. As notícias chegavam pelo telégrafo, e Jacinto lia-as com interesse apenas pelo facto de serem notícias.  E acrecentava que "o homem não pode ser feliz se não for civilizado".

Mas o nosso grande escritor terá percebido os problemas da "excesso" de civilização no 202 dos Campos Elísios, e anota  pela boca de Zé Fernandes, o amigo de Jacinto, para "as torneiras que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o vapor que se encolhia, a eletricidade que se sumia,". E o cúmulo da desgraça aconteceu, certa noite, num jantar social preparado por Jacinto quando um peixe assado, ansiosamente esperado, encalhou no elevador.

Faço esta introdução porque num dos últimos fins de semana viajei de Almeida a Braga por Vila Nova de Foz Côa, S. João da Pesqueira, Régua, Mesão Frio e Amarante, bordejando Santa Cruz do Douro, aliás Tormes, lugar de culto queirosiano onde Jacinto, finalmente desencantado da civilização, foi encontrar a paz das serras, e onde Eça repousa. Mas estes lugares já não têm o encanto e o silêncio de há 100 anos atrás. As serras andam tristonhas, nos restaurantes já não se sente aquele aroma da canja com fígado e moelas "que rescendia", nem se serve o divinal arroz de favas. Nas localidades que, pela estrada velha, fomos encontrando,  são constantes os sinais da destruição urbanística levada a cabo nos últimos 30 anos e a degradação de um património que devia ser preservado. Velhas casas solarengas ao abandono, casas de comércio encerradas, fábricas em ruínas,  e um vago ar de depressão nos rostos das pessoas.

Num hotel de muitas estrelas da região, onde pernoitámos, fui eu descobrir o 202 dos Campos Elísios que para ali se transferiu, com elevadores panorâmicos, estores eletricos, jacuzzi, muitos botões para comandar as luzes, telefones vários, e internet a rodos. E percebi a angústia de Eça perante a civilização dos automatismos,  e dei mais uma vez conta da grande clarividência deste escritor que desde sempre me espantou e seduziu.

Este,  o modo de viver que Jacinto adotou no seu palacete de Paris,  viria a ser de facto, o ideal de uma boa parte da Humanidade. Mas 100 anos depois voltamos a ser confrontados com o velho dilema, e interrogamo-nos sobre se a felicidade e a prosperidade dependem do progresso material ou das coisas simples. Mas a escolha é hoje mais difícil e angustiante pois as Serras estão a desaparecer,  já quase tudo é Cidade. Já não temos Tormes para refúgio, e vivemos angustiadamente preocupados só de pensar na possibilidade de, um dia, o peixe do almoço encalhar no elevador.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Era do Consumidor IV



Na Era do Marketing toda a economia se centra no consumidor. Na contabilização  dos ativos das empresas, as marcas passam a ter mais valor do que as fábricas. A concorrência aumenta e, por vezes, assume proporções de guerra sem quartel. O objetivo dos fabricantes é ganhar a preferência dos consumidores para as suas marcas. A comunicação da empresa centra-se na promoção da "imagem de marca" e nos "valores" a ela associados, pois são eles que ajudam a vender os produtos. 

Com a produção em massa os fabricantes ficam mais afastados dos consumidores dos seus produtos. Perdeu-se a antiga relação,  próxima e directa, que existia entre o artesão e o seu cliente. O fabricante falava com o cliente e sabia de imediato a sua reação, se ficava satisfeito ou não, se o preço era justo, se a qualidade do produto era boa. Entre eles, o artesão e o cliente, interpõem-se agora os agentes comerciais, e o dono da fábrica necessita de restabelecer aquela antiga relação. Por um lado, "falar" com os seus consumidores, e, por outro lado, conhecer as suas reações, os seus gostos as suas sugestões. Isto está na base de duas novas pujantes indústrias que emergiram na segunda metade do século XX: a publicidade para comunicar as mensagens, e os sistemas de informações comerciais (dos quais fazem parte os estudos de mercado), para conhecer os comportamentos, atitudes e opiniões dos consumidores.

A difusão dos meios de massas, primeiro a Imprensa, depois a Rádio, e, por fim, a Televisão abre caminho a novas formas de comunicar. Prospera a publicidade que se apoia num processo que envolve três componentes: o alvo. o meio e a mensagem. O canadiano M. McLuhan destaca o valor primordial do meio e cunha a expressão "o meio é a mensagem". Mas é a época de ouro dos criativos como David Ogilvy, Bill Bernbach nos Estados Unidos, Jacques Séguéla e os irmãos Charles and Maurice Saatchi, respetivamente, em França e na Inglaterra. Controem-se grandes empresas associadas a estes homens, verdadeiros artistas da criação de marcas. A agência de publicidade é o núcleo de um mercado que movimenta milhares de pessoas e biliões de dólares em todo o mundo industrializado.

A importância dos meios e os elevados investimentos que lhe são atribuídos levam ao aparecimento  nas últimas décadas da agência especializada no planeamento de meios (mediaplanning), isto é, na escolha dos meios e suportes mais adequados à veiculação das mensagens. Estas agências passam a ter um papel charneira no negócio. Concentram-se em grandes grupos assumem um papel à escala planetária.

Nas empresas ganham importância o sistema de informações sobre os produtos, e sobre os hábitos de consumo. Prospera uma nova indústria, os estudos de mercado. Nos anos 60 do século passado, a Nielsen surge nos Estados Unidos e cria um sistema de informações sobre as vendas de produtos na distribuição. Conceitos como quota de mercado (market share), ruturas e pressão de stocks, taxas de distribuição, são os elementos chave da atividade comercial das empresas. Aparecem os  painéis de consumidores e os estudos de audiência de meios. A sofisticação aumenta, fazem-se estudos qualitativos recorrendo a técnicas da psicanálise para perceber as motivações mais profundas dos consumidores, aparece o neuromarketing, procurando as causas e a explicação do consumo e da escolha das marcas na fisiologia cerebral.

o Marketing, como já referi,  tornou-se  no departamento central das empresas. A sua missão pode, de uma forma simples, definir-se como a ciência que permite vender o produto certo, ao consumidor certo ao preço certo (que deve ser  mais elevado possível!). O conceito de "produto" evolui. Deixa de ser uma mera comodidade para adquirir uma personalidade própria que lhe é conferida pelo seu posicionamento. E isso consiste num refinamento na escolha das marcas, na criação de embalagens apelativas e funcionais, na segmentação dos consumidores, na atribuição de "vantagens" psicológicas, diferentes das funcões primárias do produto, nas promoções, etc...

O distribuidor passa a desempenhar um papel importante. A mercearia tradicional dá lugar ao supermercado e ao autoserviço, percursor da das modernas grandes superficies. O carrinho de compras é o novo ícone da dona de casa. A moderna distribuição torna-se num negócio florescente. O objetivo é incentivar mais e mais o consumo e isso é feito com recurso ao "merchandising" que orienta o consumidor dentro da loja, obrigando-o a um longo caminho para chegar aos produtos essenciais (frescos, leite, etc...), que coloca estrategicamente, na prateleira, os produtos mais rentáveis à altura dos olhos da dona de casa.  E que chega a espalhar aroma de pão fresco na zona da padaria que tem o efeito de provocar a compra por impulso. A moderna distribuição destrói o tradicional comércio de bairro e os "novos merceeiros" tomam consciência do seu poder, impõem regras aos produtores, e criam as suas próprias marcas (as marcas brancas).

Todo este processo conduz à concentração de negócios em todas as vertentes: na produção, na distribuição, na publicidade. Deixa de haver fronteiras para as grandes marcas, a General Foods, a CocaCola, a Nestlé, nos sectores de alimentação e bebidas, a Unilever e Procter nos sectores de higiene e limpeza, são exemplos conhecidos.

Mas a Era do Marketing está ameaçada, e a crise que se espalhou pelo mundo parece mostrar isso mesmo.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

As Horas

Há tempo de viver e tempo de morrer, 
há tempo de semear e tempo de colher...
(Eclesiastes, 3)

Ao longo da história da Humanidade muita coisa mudou. A descoberta das ferramentas, que são o prolongamentos das mãos, a aquisição da linguagem, o domínio do fogo, a metalurgia do bronze e do ferro, a invenção da escrita e a da imprensa, o uso de máquinas e de novas formas de energia foram momentos de sobressalto e grandes avanços para o Homem. Cada novo dia traz mudanças, mas esse mesmo dia mantém-se sempre igual si próprio, nas suas 24 horas ou nos seus 86400 segundos.

A vida de cada homem é feita de tempo, ou, dito de outro modo, o tempo é a matéria prima das nossas vidas. Ora a vida das pessoas tem mudado ao longo dos milénios, mas o tempo não muda. Tudo se passa como se o tempo acrescentasse alguma coisa, e não fosse apenas uma referência para balizar os acontecimentos. Com efeito ele acrescenta complexidade, desorganiza a matéria mas, no seu cíclico devir, traz a morte e traz a vida.

Na Idade Média, o fluir do tempo era marcado pelo ciclo do sol, pelas estações do ano e pelas tarefas agrícolas. O sino da igreja chamava os fiéis à oração e regulava a vivência das comunidades. Nos conventos medievais era o tempo do "ora et labora" dos monges beneditinos. O dia começava com o nascer do sol, às horas de prima e acabava às horas de véspera, ao entardecer. Os homens viviam virados para Deus e para dentro de si mesmos. O trabalho libertava e dignificava. Era um tempo pendular, que trazia a guerra e fazia a paz, que oscilava entre crepúsculos, que trazia a neve no Inverno e o degelo na Primavera. São os ciclos que dão sentido à existência, que fazem viver e reviver a Natureza. Na Física e na Biologia, tudo o que não é cíclico está parado ou a caminho do colapso.

Mas como acontece na história de Edgar Allan Poe, o tempo que é Pêndulo, também é Poço, pois o cronos só tem uma direção. As outras variáveis da física são bidirecionais: a distância alonga-se e encurta-se, a massa reduz-se ou acrescenta-se, a intensidade da corrente elétrica aumenta ou diminui. Mas em cada novo "implacável segundo", como lhe chamou Kipling, a complexidade aumenta, e nada pode voltar ao estado anterior. O copo que se desfaz em pedaços não volta a ser o que era, e o ser que morre não pode regressar à vida. Pois o tempo, tal como a entropia, só tem uma direção.

A vida de hoje já não é regulada pelo sino da igreja, as horas de prima e as horas de vésperas vivem-se no lufa-lufa do trânsito, e as horas completas, as horas maiores, quando a oração era mais profunda e sentida como agradecimento ao Senhor pelo pão de mais um dia vivido, são agora as horas das novelas e do horário nobre das televisões. Já não existe o tempo interior, tudo é exterior.

Einstein mostrou-nos que o tempo absoluto não existe, e que, em teoria, é possível pará-lo. Mas isso não está nem nunca estará ao alcance da tecnologia. Contudo, a angústia de não poder parar o tempo é mitigada pelo milagre da vida. Pois é Eros, o deus do amor que, em cada dia, vence Thanatos, o deus da morte. E isso alimenta a nossa esperança, e dá-nos uma razão para viver...

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A Era do consumidor III


Nos "loucos anos 20" do século passado, enquanto a Europa se ocupava da reconstrução das ruínas da Primeira Guerra, assistiu-se nos Estados Unidos a um primeiro ensaio de uma euforia consumista. Foi a época louca do cinema, do jazz, do charleston, do fox trot, do desporto e das corridas de automóveis. O Ford T generalizou-se, e no final da década havia, nos Estados Unidos, seis milhões de automóveis. A eletricidade começava a entrar nos lares americanos, através da iluminação, dos frigoríficos e outros eletrodomésticos.

O crescimento parecia ilimitado, o acesso ao crédito era fácil, mesmo estimulado. A  produção industrial nos EUA, naqueles anos, representava 44% do total mundial. A mulher, libertada das lides da casa, ganha um novo estatuto, luta pelos seus direitos, muda de hábitos, altera a forma de se vestir e de se arranjar. A febre da prosperidade "ao virar da esquina", como tinha prometido na sua campanha eleitoral o presidente Hoover, que tomou posse no início de 1929, chegou a Wall Street, e, em consequência disso, o índice bolsista Dow Jones multiplicou o seu valor por quatro entre 1920 e 1929.

Neste assomo de prosperidade já está omnipresente o fator energia: a eletricidade nos lares e o petróleo nos automóveis alteram hábitos milenares. O crescimento da economia e do Dow Jones  torna-se exponencial. O crédito acompanha esse crescimento. Forma-se uma bolha financeira que mais tarde ou mais cedo teria de rebentar.   E isso veio  a acontecer, subitamente, em outubro de 1929 com o crash bolsista que provocaria uma longa recessão económica associada a alto desemprego e falências de empresas e bancos. Recessão que  rapidamente se espalhou à Europa.

O new deal inspirado nas ideias de Keynes e a animação económica trazida pela indústria do armamento, levaram a uma recuperação da economia e do emprego. Mas a longa  recessão teve consequências políticas em todo o mundo: na Alemanha, onde, no início da década, existe uma inflação galopante, os capitais americanos são repatriados, e o orgulho nacional está ferido pelos acordos de Versailles, aparece o nacional socialismo; na Itália surge o fascismo; o Japão, já industrializado, necessita de expandir o seu território para procurar novas fontes de energia e matérias primas, e arma-se para a guerra. Estas alterações criam tensões que estiveram na origem de um conflito generalizado que fez milhões de mortos e só terminou em 1945.

Com  final da Segunda Guerra inicia-se um período de grande crescimento económico. Verificam-se alterações profundas nos equilíbrios mundiais, a liderança da América afirma-se, emerge a URSS, instala-se a guerra fria,  As potências europeias,  por processos dolorosos, desvinculam-se das suas antigas colónias e protetorados na Ásia, na Oceânia e em África. Novos países como a Índia, a Indonésia, a Argélia, ascendem à independência e passam a ter um lugar de destaque na cena internacional. A China, liderada por Mao Zedong, inicia um lento processo de  afirmação. A sociedade industrial passa a englobar esses novos países primeiro chamados "subdesenvolvidos", depois designados de  "emergentes"

A Europa, enfraquecida pelos estragos da guerra e pela perda das colónias fontes de matérias primas, recupera com o apoio americano do plano Marshall.  O entendimento franco germânico leva à formação da CECA e ao tratado de Roma, que são as bases de  uma Europa Unida. A Inglaterra, presa à Commonwealth e vinculada à América, só mais tarde irá aderir à CE. A Organização das Nacões Unidas, criada em 1945, e a União Europeia são elementos centrais de uma nova ordem política.

A partir dos anos 50 entra-se definitivamente na sociedade de consumo, uma reedição mais alargada dos anos 20 americanos. O apogeu é atingido no final da década de 80 com a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria. A conjugação dos fatores tecnológico e energético permite desenvolver novos produtos mais sofisticados,e com custos mais baixos. A emergência das classes médias e a abertura de novos mercados leva à era do Marketing que é uma verdadeira idade de Ouro da civilização.

Na sociedade de consumo, o consumidor é elevado à categoria de Rei. O consumo é o motor da nova economia. Já não se cuida de vender o que se produz e passa-se a produzir o que se vende. Nas empresas a direção de  marketing sobrepõe-se à direção de produção passando a ser o núcleo central da organização empresarial. Afirmam-se as empresas multinacionais, a comunicação rompe as fronteiras e torna-se universal.

A era do Marketing sucede à era Industrial, e vai produzir a Globalização. Falaremos a seguir do reinado das marcas e de uma nova indústria: a publicidade.