segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Lampedusa

Lampedusa é uma fissura aberta na muralha da (ainda) tranquila fortaleza europeia que ameaça transformar-se numa brecha de grandes proporções. De um lado e de outro do Mediterrâneo perfilam-se dois povos e duas realidades bem distintas. Os europeus anémicos, endividados, indignados com uma insidiosa crise económica para resolver,  estão confrontados com os filhos de uma nova África, islâmica, jovem, depauperada e a rebentar pelas costuras.

Como que atraídos por irresistíveis cantos de sereias, do lado africano, chegam às praias do Mare Nostrum milhares de homens, mulheres e crianças, famélicos, sem terra, sem pão, e sem outros haveres para lá da escassa roupa que lhes cobre o corpo. Vêm da Líbia, da Tunísia, da Etiópia, da Eritreia, da Somália e da Síria, atravessam desertos, cruzam fronteiras. Entregaram o pouco que tinham a passadores e engajadores que lhes prometeram o paraíso do outro lado do mar! Nada os detém: não temem o mar, nem as autoridades, nem as grades de qualquer prisão. A  esperança de chegar à outra margem sobrepõe-se a tudo, e desvaloriza os riscos de sucumbirem na caminhada, de naufragarem no mar revolto ou de serem devolvidos à procedência.

Embarcam amontoados em frágeis e inseguras embarcações, lembrando a forma como viajavam os seus irmãos nos barcos  negreiros que, a partir do século XVI e até ao século XIX, partiam do Senegal e do Golfo da Guiné e demandavam a América, as Caraíbas ou o Brasil, destinados  ao trabalho escravo nas fazendas de algodão ou nos engenhos de açúcar. A grande diferença é que agora não vão forçados, nem vão acorrentados. Vão de sua livre vontade, e  nem sequer olham para trás. A sua única esperança está no almejado destino.

A história tem demonstrado que se houver gente a mais num espaço e gente a menos noutro que lhe seja acessível, se estabelecerá um fluxo demográfico entre esses espaços que funcionará como um sistema de vasos comunicantes. Foi assim que os Europeus inundaram a terra dos Índios, nas Américas. E o mesmo se verifica em muitas outras zonas do globo, como  na fronteira do México com os EUA, na fronteira da Índia com o Bangladesh e nas fronteiras entre Israel com os territórios ocupados da Palestina, onde existem fortes pressões demográficas.

A tensão entre as duas margens do Mediterrâneo não vai reduzir-se, antes pelo contrário, vai acumular-se. Para isso contribui a natalidade elevada, a fome e a escassez de recursos do lado sul e  a baixa natalidade, o comodismo, a apatia do lado norte.  Mas existem outros fatores. A humanidade já não se divide em raças, nem os continentes lhes estão reservados. Está a emergir, na nova África que nos anos sessenta ascendeu à independência,  uma classe intelectual, culta e  informada que não terá dificuldade em demonstrar e defender o direito moral dos africanos invadirem a Europa. Os assobios a Durão Barroso em Lampedusa são um sinal. E até o papa Francisco já reconheceu esse direito ao classificar de vergonha o que se passa em Lampedusa, e ao criticar a “indiferença para com os que fogem da escravatura e da fome, para encontrar a liberdade".

Lampedusa vai mexer com a Europa.  O dique que é a fronteira da Europa é vasto e tem muitos pontos frágeis: as praias da Andaluzia, Malta, Lampedusa, as extensas fronteiras da Grécia e dos Balcãs.  Os europeus do Norte vão ter mais um argumento contra os do sul, e irão levantar barreiras dentro do próprio espaço europeu para deter a invasão. Um dia, que, acredito, não virá longe, surgirão as primeiras balsas de imigrantes no litoral algarvio, e nessa altura, perceberemos que esta questão também nos diz respeito, a nós, aos portugueses.

1 comentário:

  1. Gostei muito do que li aqui. Compartilho por inteiro da chamada de atenção final.
    Permita-me assim que apresente o meu último vídeo-poema para “Morte ao meio-dia”, de Ruy Belo, recitado por Mário Viegas.
    O vídeo propõe uma leitura diferente - porque mais inclusiva - do que a habitual interpretação... centrada no quadro do Estado-nação.
    Foi publicado na mesma semana em que a Oxfam International divulgou o seu relatório sobre as crescentes desigualdades no mundo.
    Em diversas línguas europeias a palavra “meio-dia” permite designar também o Sul geográfico – foi esse o ponto de partida para este vídeo.

    https://www.youtube.com/watch?v=9OXreLC9aq4

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