segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Alturas do Barroso

Não me temo de Castela, 
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa 
Que, ao cheiro desta canela, 
O Reino nos despovoa
 (Sá de Miranda in "Carta a António Pereira"- Senhor de Basto)

Num dos últimos fins de semana, por motivo de uma ação de formação do programa Nepso da Fundação Vox Populi, fiz, com a minha mulher, uma incursão por terras nortenhas de Basto e do Barroso. Foi o prazer de descobrir um Portugal que não conhecia, montanhoso, agreste, rude, austero e trabalhador. É nessa região que ainda se encontram dos genes mais autênticos da raça portuguesa. Mas que, à semelhança do velho Portugal rural, está em vias de desaparecer.

No domingo, em Arco de Baúlhe (Cabeceiras de Basto), na capela da Faia, assistimos à Missa. Eu sou um agnóstico, tenho em relação a Deus uma posição descomprometida e expectante, como quem espera uma revelação que lhe demonstre a sua existência. Mas não sou ateu, nem antirreligioso. Confesso que me sinto bem dentro de uma igreja. A porta está aberta, não me perguntam nada à entrada, o espaço é amplo e pacífico, o ambiente é de respeito. Gosto de ouvir as leituras da Bíblia, e procuro descodificá-las e perceber o seu significado. Muitas vezes, ao ouvi-las, interrogo-me sobre os meandros do pensamento judeu que lhes está subjacente, e que, cruzado com o pensamento grego, formatou o cristianismo e a Civilização Ocidental. Na missa, e no silêncio de algumas igrejas, aproveito, muitas vezes, para me encontrar comigo mesmo!

Na capela da Faia, o padre era assertivo. Na homilia, desceu à coxia para ficar mais perto dos fiéis e, assim, ser mais convincente na prédica, feita com vozeirão grosso e gestos rasgados. Falou da fé, mas o tema recorrente destas práticas é o bem e o mal, a morte e a promessa de vida para lá dela. Na Igreja, eram quase só velhos, havia alguns jovens, e quase não se viam crianças. Estava ao meu lado uma mulher de meia idade, com um xaile de cor verde azeitona às flores e com  arrecadas de ouro penduradas nas orelhas. O rosto era firme e anguloso. Lembrou-me a D. Aldina, uma transmontana que conheci na minha adolescência, na Guarda, quando vinha com o marido mercadejar na cidade, e pernoitava na pensão que o meu pai explorava. No fim da missa, no abraço da paz, cumprimentei aquela mulher que estava ao meu lado. Não levantou a cabeça, estendeu-me a mão  e eu senti, na aspereza daquele aperto, a dureza do que seria o seu trabalho na cozinha, na casa e na faina do campo.

Nessa tarde, como que a propósito, a Alice, a amiga que nos recebeu em Carvalho (aldeia do concelho de Boticas), recitou, como só ela o sabe fazer, o poema Calçada de Carriche do poeta António Gedeão: Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada...  E contou que certa vez o tinha declamado, publicamente, em Boticas. E que uma mulher do campo, no final, se tinha aproximado dela e sussurrado: É mesmo assim, menina! (é mesmo axim, na entoação dela ). E eu lembrei-me das mãos que me tinham cumprimentado na Capela da Faia.

Depois de conhecermos Boticas, o Moisés e a Alice levaram-nos a visitar as aldeias de Alturas do Barroso e  de Vilarinho Seco. Ainda pude ver uma aldeã vestindo a tradicional capucha de burel e, ao longo da estrada, uma manada de vacas barrosãs, pachorrentas e de longos chifres. Em Vilarinho Seco, procurámos o Pedro e a Ana que exploram um restaurante, numa casa bem transmontana: sólida, fria e farta. Recebeu-nos a Ana, corpo marcado pelos anos, denunciando esforços a manusear panelões de sopa e de cozido, confecionados em lumes grossos e servidos em largas mesas de carvalho e de castanho. Mas esta senhora, mãe de três filhos que os estudos no Porto já roubaram irreversivelmente ao Barroso rural, é uma pessoa muito alegre e jovial. No álbum de fotografias da Alice, constatei que Ana já tinha sido  menina e tinha casado de branco.

Nessa noite, fomos dormir ao centenário Palace de Vidago, inaugurado em 1910.  Foi reinaugurado por José Sócrates, em 2010, depois de renovado com um projeto de Siza Vieira e um investimento de sessenta milhões de Euros, oriundos de fundos da CE.  Este Hotel de 5 estrelas, com 70 quartos, campo de golfe e balneário requintado (um spa), orientado para um turismo termal, golfe e congressos,  é, na sua aparência e no seu significado, o oposto do Barroso. Emprega 120 pessoas, mas a sua viabilidade é duvidosa...Foi um projeto PIN, construído na euforia do betão, no tempo de Manuel Pinho. Em 2012, Pires de Lima, o então presidente da Unicer, a proprietária do hotel, falava, num tom lamentoso,  de uma taxa de ocupação de 40 a 45% e de prejuízos anuais de 4,5 milhões de Euros.  Entretanto, um outro projeto megalómano de 120 quartos para Pedras Salgadas já foi abandonado.

O Basto e o Barroso estão despovoados, e estes projetos da Globalização não respondem à urgente necessidade de os repovoar. Mas os tempos estão a mudar muito depressa, e tudo pode acontecer!

1 comentário:

  1. Donde inda guerra não soa

    Ficou a faltar (!) este tijolo no texto desse homem ilustre e calceteiro notável, que fazia poemas como quem calceta ruas.

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