segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Jogos Perigosos

A brusca descida do preço do barril de petróleo, ocorrida no último trimestre de 2014, tem vindo a causar perplexidade e o assunto tem sido objeto de inúmeros comentários e análises de economistas e outros especialistas na matéria. Para quem acompanha com interesse o sector energético, o que causa mais estranheza é a rápida descida do preço, a qual, num período de poucas semanas. se cifrou em cerca de 40%, passando dos 100 dólares/barril para cerca de 60. De um modo geral,  atribuem-se como causas desta descida: a quebra na procura da matéria prima  resultado da desaceleração do crescimento económico a nível mundial; o acréscimo da produção de shale oil nos Estados Unidos; a  recente decisão da OPEP em manter inalterado, no futuro próximo, o quantitativo da sua produção.

À primeira vista os exportadores de petróleo perdem com o preço baixo; os importadores ganham. Os Estados Unidos, simultaneamente grandes produtores e grandes importadores ganham por um lado e perdem por outro. Mas, para a economia global, as consequências desta baixa de preço podem ser inesperadas. Diz Gail Tverberg, uma especialista em assuntos energéticos, que "com o preço baixo o petróleo ficará no subsolo, e isso já começou a verificar-se, nos Estados Unidos, na produção do petróleo de xisto e na produção off-shore". A perspectiva, muito badalada, de os EUA virem a tornar-se exportadores começa a fica cada vez mais longínqua. A baixa de preço do crude terá reflexos na economia  americana pois a a extração do petroleo de xisto tem forte impacto na taxa de emprego. E há que ter em conta que explosão do fracking foi ativamente estimulada pela massiva concessão de crédito. Ora, a queda dos preços vai provocar muitos imcumprimentos de pagamento das dívidas das empresas produtoras, e  pode provocar deflação. A dificuldade de pagar os débitos é  menos desejável numa altura em que o mundo está atingir níveis muito elevados do endividamento. Alguns observadores temem que a incerteza num segmento tão importante poderá ser contagiosa e tenderá a espalhar-se, secando a  liquidez e impossibilitando o financiamento de sectores de alto risco.

Diz ainda a senhora Tverberg que "a queda dos preços afeta os países exportadores e pode provocar fortes quebras na sua produção, e que, com o petróleo a baixo preço, se  mata a esperança no desenvolvimento das renováveis" . E conclui dizendo que "de um modo geral, os benefícios da queda dos preços não compensarão os malefícios provocados pela subida que, inevitavelmente, se seguirá".

Um pouco por toda a parte as empresas do sector  reavaliam os investimentos na prospecção e exploração de petróleo.  : Robin Allan, presidente de uma associação de produtores independentes diz que as perspetivas no Mar do Norte são negativas: "no Mar do Norte existe uma enorme crise. Não há novos projetos rentáveis com petróleo abaixo de 60 dólares o barril. Em consequência disso, a extração de petróleo da plataforma continental norueguesa caiu 5% apenas neste ano. E daqui a 10 anos a Noruega produzirá crude apenas para consumo interno e deixará de exportar".

David Hughes citado na press review semanal de Luís de Sousa refere que tendo analisado os dados das maiores empresas de fracking observou que o declínio da produção tende a ser muito elevado nestas jazidas (70% no primeiro ano; 85% no terceiro) .  Se considerarmos que as primeiros poços a serem explorados são os mais produtivos, no futuro o declínio será ainda maior. E acrescenta : "estamos a basear as nossas esperanças de oil independence  em falsas premissas. Pior do que isso, usamos isso para negar o pico do petróleo quando deveríamos utilizar esta reserva extra para construir as estruturas de uma nova era energética - seja qual for o seu modelo -, enquanto ainda tivermos energia disponível para o fazer".

Outras notícias citadas na mesma fonte dão conta de ter sido suspensa a  construção do pipeline que deveria ligar Dakota a Oklahoma para escoar o petróleo de xisto da bacia de Bakken . A Chevron, por sua vez , cancelou as perfurações no Ártico canadiano. E na Ucrânia foram abandonados projetos de fracking na região oeste,  significando o fim do sonho do país se tornar num grande produtor de gás de xisto para, deste modo, reduzir a sua dependência da Rússia.

No complexo contexto internacional esta situação convém à América. Os danos causados sobretudo nas economias russa iraniana e venezuelana - os seus clássicos inimigos de estimação!-, compensam os prejuízos caseiros e, no cômputo final, servem os seus interesses. O fracking é o seu trunfo principal mas é, ao que tudo indica, uma carta com menos valor do que aquele que se anuncia. Como no poker, é utilizado para fazer bluff , escudado nos lobbies e nas enormes campanhas de publicidade e de relações publicas. O principal adversário dos americanos  é Putin. Ora, o russo tem mais o perfil e o comportamento de um jogador de xadrez do que de um jogador de poker. Por isso, o desfecho do jogo é incerto... Muitas vezes estes jogos, de altas paradas, acabam mal...

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Hasta Siempre Cuba

A revolução cubana faz parte do imaginário de muita gente da minha geração que viveu, na sua juventude, o tempo do maio de 68. O grupo de revolucionários que desembarcaram no Granma e, após três anos de luta de guerrilha, derrubaram o regime de Fulgêncio Batista, entre os quais Fidel de Castro e Che Guevara, eram heróis que despertavam sonhos de revolta, e  que eram celebrados nos posters afixados nas paredes dos nossos quartos de estudantes e nas canções revolucionárias dos convívios universitários. Tive um amigo que, na generosidade dos 20 anos e inspirado nos heróis da Sierra Maestra, planeava formar um grupo revolucionário na Serra da Arrábida para, a partir daí, derrubar o ditador Salazar.

Com o andar dos anos, Cuba foi perdendo muito do seu encanto e da sua magia. Fidel envelhecia; todos nós envelhecíamos! Em 1967, o Che era assassinado na Bolívia, esboçavam-se conflitos internos na luta pelo poder. Os meus amigos que visitavam Cuba traziam-me a imagem de uma espécie de Aldeia de Asterix encravada na Gália romana, sempre invencível e resistindo sempre. Descreviam-me uma sociedade carenciada mas feliz, com carros muito velhos circulando nas estradas, como se o tempo tivesse parado naquela ilha. Falavam-me de gente simples, alegre, culta e hospitaleira. E acrescentavam que os cubanos dispunham de um sistema de saúde gratuito e universal.

Foi notável a resistência de Cuba nos 56 anos que decorreram desde a tomada do poder pelos revolucionários na Sierra Maestra no dia 1 de janeiro de 1959.  Cuba foi, durante décadas, o espinho cravado nas barbas da poderosa América. A pequena república superou a invasão, ultrapassou a crise dos mísseis e Fidel sobreviveu milagrosamente a dezenas de tentativas de assassinato. Resistiu ao embargo económico e ao isolamento imposto pelos americanos. A lendária figura de Che Guevara inspirou movimentos de guerrilha em todo o mundo. A ousada intervenção cubana em Angola foi um desafio direto ao poder do Ocidente.

Cuba e os Estados Unidos anunciaram agora que vão desanuviar a tensão existente e reatar as suas relações diplomáticas. Com efeito, começava a tornar-se evidente que Cuba não podia continuar no isolamento provocado pelo fim da guerra fria. A crise financeira mundial, a morte de Hugo Chavez, a crise económica da Rússia e a abertura ao mundo através da janela da Internet, foram os golpes finais num regime isolado, desgastado e sem recursos. E contudo, não deixa de ser espantoso como este pequeno país resistiu durante tantos anos após o colapso da União Soviética.

Com este desfecho termina, no seu último reduto, o socialismo romântico. Cuba encher-se-á em breve de novos carros circulando em modernas auto-estradas, ladeadas de anúncios de Cocacola e MacDonalds. Irá integrar-se paulatinamente na economia global - insensível e predadora -, voltará a encher-se de ressorts, receberá os grandes navios de cruzeiro que, a partir de Miami, levarão milhares de americanos às Caraíbas. Voltará a ser o casino da América.

O fim de Cuba socialista vai ser bom para muitos cubanos; mas vai ser mau para muitos mais.  Com as suas insuficiências, com a sua determinação, com o seu engenho em as superar, Cuba foi um exemplo de como pode sobreviver-se com meios escassos e se podem atingir indicadores elevados na educação e na cultura. De alguma forma, este regime era uma esperança para os que acreditam que é possível uma economia alternativa. Mas ninguém poderia exigir egoisticamente que Cuba fosse o único guardião dessa esperança e pagasse sozinha o elevado preço de a conservar. Ficamos com o seu exemplo e uma grande dívida para com o povo cubano.

 Fidel, o herói de Moncada, velho, doente e retirado, já foi há muito absolvido pela História. Em artigos que, de vez em quando, publica no Granma, o jornal oficial do regime, revela ainda uma grande lucidez e neles tem alertado contra os caminhos perigosos do mundo global, no que respeita aos riscos ambientais e à escassez de recursos. Mesmo nesta rendição inevitável, Cuba manteve uma postura digna e não se ajoelhou perante a América. Hasta siempre Cuba! 


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Natal

O calendário, o frio, os anúncios dos perfumes e dos chocolates, dizem-nos que estamos, mais uma vez, na quadra natalícia. Nas lojas dos centros comerciais, iluminadas e decoradas com bolas, fitas e luzernas, vive-se a animação das compras. Este frenesim dos presentes apossou-se e confunde-se com o significado ou com aquilo que se designa pelo espírito de natal. Foi no século IV que, na cristandade, começou a festejar-se o Natal no final de dezembro. A comemoração assinala o nascimento de Jesus e fez-se coincidir a sua data, propositadamente, com a da celebração pagã do solstício de inverno, quando, no hemisfério norte, o Sol inverte a sua marcha descendente no horizonte que encurtou os dias e retoma, de forma promissora, a ascensão que haverá de voltar a ungir a terra e despertar as sementes no prenúncio da luminosa primavera.

No fervor religioso da Idade Média e da Renascença, o culto da Virgem e da sua maternidade, evocado no dia 25 de dezembro, inspirou artistas e os construtores das catedrais. O Natal era figurado nos presépios e nas telas magnificas das escolas dos mestres das escolas italiana e flamenga. Era uma época de vivência interior e familiar à volta do aconchego de uma lareira e de uma mesa farta; era também um tempo de renovação inspirada no ciclo da natureza. Penso que é esse ainda o Natal do nosso imaginário e, para os mais velhos, o da sua infância.

No ocidente pós industrial, global, dessacralizado e consumista, o Natal divorciou-se do presépio e dos evangelhos. A economia apropriou-se do Natal. Muitos negócios sobrevivem com as vendas da época natalícia. Há produtos e marcas que concentram nesta quadra a maioria das vendas anuais. Mas, o reverso é que as compras de Natal não são feitas para satisfazer necessidades e muitas vezes não têm utilidade prática, o que lhe reduz o valor económico.

O presépio já não é o ícone do natal, mas o Pai Natal. Esta figura simpática que é inspirada em S. Nicolau - um arcebispo generoso na sua versão americana -, nasceu no final do século XIX fruto da imaginação criativa do cartunista Thomas Nast . Mas foram as campanhas publicitárias da Coca-Cola que divulgaram e internacionalizaram o ícone do Natal na sua atual versão consumista.

As crianças são os principais destinatários dos presentes natalícios. São inundadas de brinquedos, livros, jogos, sei lá o quê!. A sua atenção reparte-se entre os inúmeros presentes recebidos e muitos deles são rapidamente arrumados e esquecidos. É a sociedade que começa a formatar as mentes infantis para a sociedade de consumo! Talvez devêssemos refletir no exemplo de uma escola de um país nórdico onde foram retirados os brinquedos das salas de aula, facto que teve como consequência aumentar a curiosidade e a criatividade dos alunos.

Nalguns países, as crianças escrevem cartas ao Pai Natal - para um endereço na Lapónia - a pedir os presentes. Não tardará que as mensagens sejam enviadas por email, de preferência com cc. para pais e amigos, de modo a assegurar maior rapidez e eficácia nas entregas. A mim, ocorreu-me hoje falar deste tema para desejar a todos os meus amigos e aos leitores do blog
Um Feliz Natal

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Sócrates vs. Sócrates

Há 2500 anos, na Grécia antiga, viveu em Atenas um filósofo de nome Sócrates que foi imortalizado por alguns dos seus discípulos, de entre os quais se destacou Platão, que nos livros que escreveu deu a conhecer o pensamento do grande filósofo. A frase lapidar de Sócrates, "só sei que nada sei", simboliza a sua incessante procura da Verdade e revela a humildade de quem reconhece a dificuldade - ou a impossibilidade! - em atingir o verdadeiro conhecimento, o espistemé. Por amor à Verdade e à Justiça, Sócrates aceitou o veredito de quem o acusava de não obedecer aos deuses e de, com as suas ideias, perverter os jovens. Bebeu voluntariamente, até à última gota, a cicuta letal para cumprir a sentença à pena capital a que fora condenado pelos juízes de Atenas.

Na atualidade portuguesa, suspeito de enriquecimento ilícito, um outro Sócrates enche os noticiários das televisões e as páginas dos jornais. A suspeição, que recai sobre este ex-governante, liberta incontidas emoções nos espíritos, causa polémica nos debates e incendeia paixões. A opinião sobre a sua pessoa e os factos que levaram à sua detenção - raramente vista com indiferença -, é o assunto mais fraturante da sociedade portuguesa nos dias que correm.

Estas duas personagens parecem ter em comum apenas o nome. O ateniense valoriza a verdade, está desapegado do poder e das riquezas materiais. Ele sabe que só o verdadeiro conhecimento lhe traz a sabedoria. O lusitano mostra acreditar que só tem certezas: "sabe que tudo sabe". Neste aspeto, estará próximo dos sofistas gregos que usavam a retórica para convencer o povo e para quem a doxa importava mais do que o epistemê. O português faz lembrar os príncipes da renascença ciosos dos seus séquitos e amantes da envolvência perfumada do poder. E traz-nos à memória O Príncipe de Nicolau Maquiavel, a cartilha para conquistar e preservar o poder e que, neste domínio, defende o princípio de que os fins justificam os meios.

Na Europa Medieval, e nos anos que precederam a Revolução Francesa e a independência da América, o poder era considerado como tendo origem divina. O soberano administrava a justiça e só prestava contas a Deus ou à igreja que o representava. De tal modo, que na Inglaterra de Henrique VIII a igreja incómoda foi subjugada ao poder do soberano. Mas, em última análise e na ausência de uma moderação acima dos homens, só a força das armas ou os jogos de poder asseguravam a sua manutenção.

Nos modernos estados ocidentais laicos a religião - mais propriamente a igreja - já tem pouca influência. O poder democrático emana do povo e são as leis produzidas pelos seus representantes que o regulam e limitam. Mas a democracia tem-se revelado imperfeita: após a revolução industrial a economia e a sua exigência em fortalecer o poder industrial e financeiro sobrepuseram-se e condicionaram o poder político. No nosso tempo a globalização - afinal a economia! -, impondo a submissão dos governos aos mercados, é um outro forte condicionante do poder. Não esquecendo o poder dos media que, quando manipulados fazem opinião, constroem e destroem a imagem dos políticos e, deste modo, interferem com o sentido do voto.

No plano das leis e dos princípios - se quisermos até no plano moral, pois legal e moral tendem a confundir-se-, o poder da Justiça acaba por ser a única limitação ao poder político e económico. Por isso, nos estados democráticos o poder judicial independente adquire uma nova força. O caso do impeachment do presidente Nixon ocorrido nos EUA, depois de um complexo e prolongado processo judicial, ficará para a história como um caso exemplar. No Portugal recente temos tido exemplos desta situação, veja-se, por exemplo, a atuação do Tribunal Constitucional. E não existe alternativa nem proposta para outro poder moderador que não seja o judicial.

Sócrates está, assim, nas antípodas de Sócrates. Nas encruzilhadas da vida que, a cada momento, surgem na nossa frente uma escolha exclui a outra. E não se trata apenas de escolher entre pessoas, mas entre arquétipos subjacentes a valores éticos. A opção, que fizermos, irá condicionar o nosso futuro.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A encruzilhada do G20

Criado em 1999, o G20 ou Grupo dos 20 integra as dezanove mais importantes economias mundiais a que se juntou a União Europeia. Para debater a economia global, reúnem-se anualmente os chefes de governo, os ministros das finanças e os presidentes dos bancos centrais dos países mais importantes (os pertencentes ao G7). Este grupo assume-se como cão de guarda da economia liberal e global. Os seus princípios ficaram consignados no acordo saído da reunião de 2004 que teve lugar em Berlim. No comunicado, aprovado nessa reunião, defendem-se claramente como objetivos do grupo as ideias do liberalismo económico e do reforço da globalização: a eliminação das restrições ao movimento do capital internacional; a implementação de políticas de desregulação; a flexibilização do mercado de trabalho; a defesa da propriedade intelectual e da propriedade privada; a liberalização do comércio global, tanto de forma bilateral como no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC).

A recente reunião do Grupo em Brisbane, na Austrália, trouxe ao de cima algumas das tensões existentes no seu seio, das quais destaco: a questão da Ucrânia e o futuro papel da Rússia na economia global; o adiamento - que estava agendado - da discussão sobre as alterações climáticas; a velada contestação à liderança do cluster anglosaxónico por parte dos países emergentes. Um pouco por toda a parte, com o desenvolvimento da crise e a crescente dificuldade em encontrar respostas pela via da economia, começam a ser defendidas políticas protecionistas e restrições à livre circulação de pessoas. Movimentos independentistas - como acontece na Escócia e na Catalunha - contrariam a política do G20, ao mesmo tempo que se assiste a uma ascensão de partidos e movimentos conservadores e ao renascer de ideais xenófobos e racistas.

A questão da Ucrânia, onde as sanções económicas contrariam frontalmente o neoliberalismo defendido pelo G20, acabou por se impor à agenda da reunião e dominou a cimeira. Os quatro países anglosaxónicos (EUA, UK, Canadá e Austrália) presentes na cimeira, protagonizaram o papel anti-Rússia. Por seu lado, a Europa vacila: Hollande faz birra, protelando a entrega do submarino encomendado pelos russos, e a Alemanha está confusa e dividida perante o efeito boomerang das sanções sobre a sua própria economia.

Entretanto, liderados pela Rússia e pela China, os países emergentes parecem querer afirmar uma agenda própria dentro do Grupo. Identificaram a ameaça do TTIP - a anunciada parceria para o comércio e investimento do Atlântico Norte -, e procuram combater a hegemonia do dólar.

As alterações climáticas estiveram ausentes da agenda de Brisbane. Com o adiamento desta questão, procurou evitar-se a parte inconveniente da discussão, pois a urgência do tema põe em causa a orientação económica e desenvolvimentista do Grupo. Mas o planeta tem a sua agenda própria que não coincide necessariamente com a do G20. Não aceitará tréguas, não suspenderá as reações adversas, nem amenizará a ocorrência de fenómenos climáticos extremos, a que vamos assistindo um pouco por toda a parte.


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Eça de Queirós

Já passaram 114 anos sobre a morte do grande romancista e a obra que nos deixou continua a atrair a atenção de leitores, literatos e outros estudiosos. Ainda hoje, os seus livros são reeditados e, os mais representativos, adaptados ao teatro e ao cinema. As personagens dos seus romances - que sugerem uma tipologia social – fazem parte da nossa história e da nossa cultura. Pensamentos, apreciações e comentários, retirados dos seus escritos, são frequentemente citados e circulam na net, plenos de atualidade por encaixarem a preceito nos protagonistas e nas situações da nossa vida política e social. De onde vem a força desta escrita e a atualidade deste escritor?

Eça foi, acima de tudo, um atento e perspicaz observador de Portugal e do mundo. Da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX deixou-nos, enquanto romancista, um retrato cru e fiel. Dos conflitos e dos meandros da política mundial deixou-nos, enquanto jornalista, análises minuciosas e vaticínios acertados. A sua infância ficou marcada pela ausência de uma família que lhe deu o nome, mas lhe negou o aconchego do lar. O carinho tê-lo-á ele encontrado na ama que o amamentou em Vila do Conde e nos avós paternos que, perto de Aveiro, o acolheram e educaram na meninice. Ao contrário da mãe, fria e ausente, a figura e a personalidade do pai acompanhou-o e influenciou-o pela vida fora. A singularidade do seu nascimento fez dele um outsider e deu- lhe a autonomia afetiva que lhe conferiu distanciamento e independência crítica. A ironia, em que Eça revela argúcia e inteligência, foi a marca desse distanciamento.

O lustro de Coimbra foi o tempo de aprendizagem e de gestação, estimulada pelo fermento da cultura francesa e pelo contacto com amigos, dos quais se destacou Antero de Quental, que exerceu nele uma forte impressão. Lisboa, onde viveu durante algum tempo depois de terminado o curso, foi a descoberta da grande cidade, o contacto com a política e com a sociedade. Em Évora, como diretor e único redator do Distrito de Évora foi destilando o seu jeito para a crítica e apurando a mão para a escrita. A viagem ao Egipto, onde assistiu à inauguração do Canal de Suez, e o deslumbramento da Terra Santa abriram-lhe a primeira janela para o mundo e marcaram-no para sempre.

Leiria, onde desempenhou o cargo de administrador do distrito, foi o palco do seu primeiro romance. No Crime do Padre Amaro, o livro que ele trazia no ventre, ousa pôr em pratica o realismo como escola literária e abordar os temas tabú da religião e do sexo. O estilo da prosa, que irá apurar nos romances subsequentes, evidencia já o arrojo da inovação tão bem caraterizado por Ernesto Guerra da Cal, o autor galego que mais profundamente estudou a sua linguagem e o seu estilo. Já nessa primeira obra se mostra a prosa criativa em que os adjetivos geradores de contrastes, conferindo tonalidades e melodia à narrativa, parecem desempenhar o papel da luz nos quadros dos pintores impressionistas.

A primeira experiência consular foi em Cuba, a partir daí não deixaria nunca mais de ser um expatriado, primeiro em Inglaterra e depois em França. Nunca fez amigos estrangeiros, pois o seu campo de observação estava em Portugal e o universo da sua ficção foi sempre português. Três romances, laboriosamente escritos e dolorosamente revistos, sempre na busca da perfeição, constituem o esqueleto da sua obra: O Crime do Padre Amaro, a explosão e a vitalidade da juventude; O Primo Basílio, o grande ensaio de estudo e caracterização de personagens e apuramento do estilo; Os Maias que são a sua obra prima, longamente pensada e amadurecida. Nestes três romances não existem heróis, apenas pessoas, enredadas nos seus defeitos e atormentadas nas suas dúvidas. Amélia d'O Crime do Padre Amaro e Luísa d'O Primo Basílio são os personagens centrais da ação, motivadas pelo fogo da paixão a pela força do enleio amoroso. N'Os Maias a arquitetura da narrativa ganha outra dimensão: a figura central é Afonso da Maia, o patriarca da família, onde, como num quadro, converge o ponto de fuga de toda a trama. Não será por coincidência que todas estas figuras centrais dos seus romances, incapazes de resolver ou superar as paixões - casos de Amélia e de Luísa - ou abandonar as convicções - caso de Afonso da Maia -, morrem no final dos romances.

Eça foi um eterno insatisfeito, parecia hesitar entre o que era e o que gostaria de ter sido. As suas opções pessoais, raramente afirmadas na primeira pessoa, oscilavam entre o espírito progressista do Cenáculo na juventude e o pendor conservador dos Vencidos da Vida, na idade madura. A sua personalidade parece flutuar entre o laicismo e a religião, entre a república e a monarquia, entre a cultura e a aristocracia, entre a vida familiar e a vida social, entre a tradição e a civilização. Fradique Mendes é o seu alter-ego, um contraponto paradoxal de si próprio que, tal como os espelhos das feiras, refletem as imagens invertidas e deformadas.

Morreu em Paris, aos 55 anos, no primeiro ano do século XX. Se não tivesse morrido tão novo, podemos imaginar como teriam sido os anos da sua velhice, depois de regressado a Portugal. Os seus últimos escritos sugerem-nos um Eça a viver em Tormes, à semelhança dos retiros de Herculano ou Lev Tolstoi, rendido à natureza, inspirado pela vida dos santos e procurando as coisas simples da vida.

Eça libertou-se do tempo e foi um visionário. Foi um artista que deu um novo fôlego à língua portuguesa. Para muitos, depois de Camões, ele foi o nosso maior escritor de todos os tempos.


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Grécia e Portugal

A Grécia é um santuário, berço da Civilização Ocidental. Aí nasceu a Filosofia, mãe das ciências, e a Democracia, mãe do moderno estado organizado. O grego foi a língua que formatou o nosso pensamento cientifico e deu nomes às ciências, e significantes aos conceitos que utilizam. Não podemos ignorar os contributos dos romanos e do latim; dos judeus cujo pensamento, enxertado no pensamento grego, produziu o cristianismo; do ressurgimento renascentista ligado às artes e ao comércio das repúblicas italianas; da expansão ibérica que revelou os novos mundos; das luzes do iluminismo francês e da revolução industrial nascida em Inglaterra, que foi a antecâmara da moderna economia e da globalização. Mas são gregos os genes da Civilização que domina a Terra.

No passado mês de Abril, convidado por um casal amigo, visitei a Grécia acompanhado pela minha mulher. Escrevi, então, sobre as fortes impressões que essa viagem me causou num texto que intitulei as sementes da democracia, o qual acabou por ser publicado nas páginas do semanário Expresso.  Foi com emotiva surpresa que, passados alguns dias após essa publicação, recebi na Fundação uma chamada telefónica da  Embaixada da Grécia dizendo que o Embaixador tinha gostado de ler o artigo e gostaria de me conhecer.

A oportunidade chegou na semana passada . Recebi um convite do Sr. Embaixador Panos Kalogeropoulos para assistir a uma cerimónia na sua residência em Lisboa. Tratava-se de homenagear a professora jubilada Maria Helena da Rocha Pereira, a quem iria ser entregue a Cruz da Ordem da Fénix que lhe fora atribuída pelo presidente da República Grega. E, assim, no final da tarde de quarta feira, dia 5 de novembro, vesti o meu fato-de-ver-a-Deus e lá fui ao Restelo.

Fui recebido pela secretária da embaixada que me introduziu na sala de estar onde o embaixador recebia os convidados. Ao ouvir o meu nome, cumprimentou-me com um sorriso afetuoso e um breve comentário, associando-me de imediato ao artigo do Expresso: - As sementes da democracia ! Apontou-me a homenageada: junto a uma lareira, sentada numa cadeira e denunciando uma clara dificuldade de locomoção, estava uma senhora de proveta idade e aspeto franzino. Era a professora Maria Helena da Rocha Pereira,  a primeira mulher que ascendeu à cátedra na secular Universidade de Coimbra, arqueóloga, helenista, investigadora e uma impressionante obra produzida. Parecia incrível e irreal que aquelas mãos tivessem escrito tantos artigos e que aquela mente pudesse ter traduzido a República de Platão, as Bacantes de Eurípedes ou a Antígona de Sófocles. Senti-me tentado  a  ir cumprimentá-la, e beijar-lhe as mãos. Mas não o fiz, por temer que a minha insignificância e limitada cultura pudessem profanar aquela serena e doce figura.

O Embaixador Kalogeropoulos fez o elogio da homenageada, destacou a sua obra, o seu impacto tanto a nível nacional como internacional, antes de lhe colocar no peito a insígnia que lhe tinha sido atribuída. 
A professora, de uma forma clara e concisa, leu um discurso em que se referiu à importância da cultura grega e à beleza da sua linguagem, onde destacou o dialeto Ático. Com a  sabedoria de quem sabe do que fala, aquela ilustre professora apresentava-se, aos meus olhos e  naquele momento, como uma ponte cultural  que ligava Portugal e a Grécia.

No cocktail que se seguiu, de copo na mão, senti-me perdido no meio daquela gente onde não conhecia ninguém; arrisquei estabelecer conversa com um grupo que estava mais perto, declarei-me náufrago e pedi ajuda. Os meus solícitos salvadores eram arqueólogos, antigos alunos e colaboradores da professora, também eles agora professores, um no Porto outro em Coimbra. E estava também um sobrinho da homenageada. Respirei fundo; estava salvo. Falámos da Grécia, de Creta, de Micenas e de Delfos. Foi com imenso prazer que 
ouvi aqueles ilustres professores falar de escavações e de fragmentos de vasos gregos descobertos em Trás-os-Montes. Um deles tinha, inclusive, escavado na Ágora, em Atenas.  E ocorreu-me comparar a Psicologia,  a ciência que se ocupa do estudo da alma do Homem, com a Arqueologia, que é a ciência que se ocupa do estudo da alma da Humanidade.

No final, despedi-me do embaixador com um Kalinixta, desejando-lhe uma boa noite e agradecendo-lhe tão honroso convite. A minha aventura grega não podia ter terminado de melhor forma.

PS: As sementes da democracia pode ser lido aqui

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Homo Sapiens Digitalis

Uma notícia recente sobre o volume de mensagens de correio eletrónico, que circulam na Internet, despertou a minha atenção. No essencial, dizia que a primeira mensagem de correio eletrónico foi enviada há 45 anos e que, na atualidade, em média, são enviados 100 milhões de emails em cada minuto. Considerando os múltiplos destinatários imagino que serão recebidas muitos mais. A referida noticia acrescentava ainda que, só em 2012, foram criadas 3,3 mil milhões de novas contas de email, e apenas um terço delas por motivos profissionais. No entanto, apenas 14% das mensagens recebidas são consideradas importantes. Em determinadas profissões, o tempo de trabalho dedicado ao email chega a representar 28% por cento do total.

 A magnitude destes números não espantará muitos de nós, conscientes como estamos de quão dependente está a nossa vida diária do computador e da Internet. Mas importa refletir sobre o seu significado e a revolução digital que lhe está subjacente, da qual eles apenas representam uma pequena parte. A verdadeira explosão na utilização do correio eletrónico ocorreu nos últimos 20 anos, com o crescimento exponencial do acesso à Internet e da difusão dos dispositivos digitais - computadores, notebooks, ipads, e smartphones. A humanidade está ligada por uma rede gigantesca que, aos poucos, está a transformar a nossa maneira de viver: o comércio, o entretenimento, a informação, a cultura, a comunicação, a literatura e a publicidade. Mais recentemente, as redes sociais começaram a apropriar-se do convívio entre as pessoas; a contestação social achou eco na rede: os indignados encontram-se na net e planeiam aí as suas manifestações.

Os jovens já não dispensam a Internet. Um estudo recente do ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada), feito junto de adolescentes entre os 14 e os 25 anos, mostra que três quartos da população desse grupo apresenta sinais de dependência da internet. E conclui que 13% dos casos estudados são graves: caracterizam-se por isolamento, comportamentos violentos, e inclusive, podem obrigar a tratamento. Ora, o uso da Internet começa cada vez mais cedo, mesmo na mais tenra idade. Quando um bebé carrega furiosamente com o dedo nas páginas ilustradas de um livro para tentar interagir com as imagens, como se se tratasse de imagens no ecrã de um ipad, isso revela que esse comportamento já faz parte da uma aprendizagem muito profunda e sugere a aquisição de uma capacidade que começa a incorporar-se nos genes da espécie humana.

Estamos efetivamente perante algo que foi adquirido, que passou a fazer parte de um processo evolutivo no sentido que lhe deu Charles Darwin. Trata-se de uma nova etapa na linha da evolução, que começou com a linguagem, com a escrita e a imprensa. Estes saltos estão associados a um aumento da complexidade. Com a escrita, à nova capacidade associaram-se ferramentas: o estilete, a argila mole, a tinta e o papiro. Com a internet a complexidade exige uma base tecnológica e energética - falo dos suportes, da eletricidade e das ondas hetzianas que transportam os sinais digitais -, a que corresponde uma grande vulnerabilidade e um elevado risco de colapso.

Ora quando, como resultado do processo evolutivo, uma espécie adquire uma nova capacidade, já não existe caminho de retrocesso, isto é, a natureza não aceita a desevolução. E se a ferramenta ou transformação morfológica associada à nova capacidade deixar de ser útil, o caminho pode ser o da extinção da espécie. Então, tal como acontece num formigueiro com a capacidade de comunicação e orientação das formigas, a capacidade digital do homem, sendo essencial, já não depende da habilidade individual, mas passou a ser um atributo da espécie como entidade social.

Em conclusão: nos últimos 20 anos a espécie humana entrou num caminho evolutivo irreversível. Por isso, já não é admissível um blackout digital, embora não seja desprezível o risco de isso acontecer. Pode resultar de quebra prolongada da rede eléctrica, de um vírus altamente eficaz, de uma interferência nas infraestruturas que suportam a rede ou até de uma tempestade solar. Um apagão digital interferiria seriamente nas nossas vidas: seria o caos nas transações financeiras, na cobrança de impostos, nos pagamentos, nas comunicações, na logística das redes de abastecimentos, na saúde, na educação, na justiça, etc. É bom irmos tomando consciência dos riscos associados às malhas que vamos tecendo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

As Tribos


Na vida nómada de caçador-recoletor a força e o sucesso do homo sapiens residia na tribo. Era a entreajuda entre os seus vários elementos que lhe permitia  preservar a vida, enfrentar os perigos do dia-a-dia, ter êxito nas caçadas, proteger os mais fracos e enfrentar os inimigos. Havia uma chefatura reconhecida - era o macho mais forte e mais astuto. O chefe invocava as divindades, conduzia os rituais, oferecia os sacrifícios, distribuía os alimentos. As diferentes tribos disputavam entre si os territórios e os seus recursos, e, ocasionalmente, uniam-se contra um inimigo comum.

A sedentarização ocorrida após a domesticação de animais e plantas, há dez mil anos, foi o início de uma caminhada que conduziu à sociedade industrial e à globalização. A organização social que se seguiu à fixação dos seres humanos nos primeiros povoados terá sido  muito simples e baseada na experiência tribal. Mas a exigência provocada pelo crescimento das aglomerações obrigava a novas funções e à sua especialização. A consequência foi um grande avanço organizativo em relação à tribo. Surgiram os construtores de casas, os agricultores, os pastores, os defensores. A diferenciação social esteve na base de um estado rudimentar com as suas hierarquias e a sua administração.

A complexa sociedade atual globalizada e interdependente, dominada pela economia, está muito longe da tribo. Mas, se atentarmos bem, constatamos que continuam a existir tribos dentro da sociedade global: a tribo dos ricos e a tribo dos pobres, as tribos do futebol, as tribos da política, as tribos da cultura, as tribos elitistas, as tribos religiosas. São tribos que, muitas vezes, partilham os mesmos territórios e que se interpenetram. Nalguns casos organizam-se de forma secreta e têm interesses ocultos que se sobrepõem ao interesse dos Estados. Na política partidária, o partido desempenha o papel da tribo, e, quando  trata de favorecer os seus membros, isso tem reflexos na corrupção, no carreirismo, nos lobbies e na promiscuidade das relações entre economia e política.

Vivemos na emergência de uma crise civilizacional, provocada pela escassez de recursos, pelo excesso demográfico e pela degradação ambiental. As tribos, na ânsia de conquistar território ou de ganhar poder, foram sempre a causa das guerras. Mas na economia global e interdependente já não sobra lugar para guerras tribais, pois o seu custo seria doloroso e representaria um grave retrocesso da humanidade. Como único caminho, capaz de salvar a civilização, resta-nos unificar as tribos belicosas. Nalguns casos, quando o seu objetivo é mafioso, racista, sectário ou terrorista será mesmo necessário eliminá-las. O caminho não vai ser fácil.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O Elevador Social

Há quem critique os pastores
por eles não serem estudados
Se fossem todos doutores
que seria dos nossos gados?
 Quadra afixada numa queijaria da Beira Baixa
Autor desconhecido



Nos anos 30 do século passado, uma vez estabilizadas as finanças públicas, Salazar idealizou para Portugal um modelo de sociedade corporativa assente na boa ordem social, no amor da Pátria,  na família e na tradição católica. O condicionamento industrial visava preservar a concorrência desenfreada e proteger os grupos económicos em ascensão. Portugal continuaria, pois, a ser um país essencialmente rural. As colónias eram ainda vistas como mercados de exportação e fontes de matérias primas.  As elites governantes da República radicavam na indústria e  na agricultura latifundiária, mas estavam em ascensão as hierarquias militares e académicas.  A educação superior destinava-se aos jovens provenientes dessas  elites. Para as massas populares bastava aprender a lêr, escrever e contar. Ocasionalmente, o seminário - tinha sido o caso do ditador - entreabria uma estreita via de acesso às camadas superiores.

Mas o mundo no pós guerra  passava por transformações muito profundas que se não  compadeciam com este bucólico modelo. Estava a ocorrer a segunda revolução industrial, a da mobilidade, que iria transformar radicalmente a forma de viver das sociedades ocidentais. O automóvel iria provocar o desenvolvimento das cidades, a mecanização e os fertilizantes estavam a  transformar a agricultura. O mundo entrava aceleradamente na era da globalização. O desenvolvimento atraía a Portugal as grandes multinacionais, favorecia-se o consumismo. Nesse período, florescem as atividades ligadas à banca e aos seguros, nasce o marketing e as funções com ele relacionadas: vendas, publicidade, merchandising, estudos de mercado. Emergem novas e mais sofisticadas formas de distribuição dos produtos. A rádio primeiro,  a televisão depois generalizam-se; empregam gente e afirmam-se como poderosos meios de comunicação e de publicidade.

Fruto do desenvolvimento, cresce o emprego e surgem novas profissões que requerem novas exigências. O acesso à educação explode nos anos 60. Como consequência, os campos começam a esvaziar-se. A educação transforma os filhos dos agricultores em doutores que passam a relacionar-se e a conviver, de igual para igual, com os filhos das velhas elites. A partir dos anos sessenta do século passado, o acesso das camadas menos favorecidas à universidade foi a causa principal para a criação de novas elites. A educação foi  o elevador social que favoreceu a ascensão.

Em abril de 1974, o Portugal que fez a revolução dos cravos era já um país diferente . E foram já, em grande parte,  as novas elites que assumiram o poder e a liderança. Durante as décadas que se seguiram,  foram criadas novas universidades, proliferaram os cursos. Os mais jovens, que aspiravam a seguir a carreira dos pais, habituaram-se a ver no diploma o passaporte para o emprego e para o sucesso.  Ser engenheiro, economista, médico ou professor era sinónimo de emprego garantido.

Com a crise as coisas mudaram e o diploma deixou de ser garantia de emprego. O elevador social está fechado à chave -acessível a muito poucos -, ou só conduz à cave. Entretanto os lugares na  base da pirâmide foram ocupados por imigrantes e aos jovens licenciados resta-lhes, em alternativa ao desemprego, a emigração.

Chegou o momento de rever o papel da educação. Nós temos de formar a geração que vai fazer a Transição. As palavras de ordem terão a ver com sustentabilidade e responsabilidade. Vai ser preciso formar jovens com capacidade critica e com criatividade.  Será preciso mudar os valores no sentido que um dia Ernâni Lopes apontou, substituindo aqueles que, passo a citar, "hoje lhes servem de referência, que mostram que para se ter sucesso – poder e dinheiro – o trabalho, a honestidade e o conhecimento não fazem falta."
E foi aquele economista que nos deixou a tabela da conversão do que é para o que deve ser:
Facilitismo ------- Exigência
Vulgaridade ------ Excelência
Ignorância -------- Conhecimento
Mandriice -------- Trabalho
Aldrabice ---------Honestidade
Videirismo ------- Honra
Golpada ---------- Seriedade
Moleza ----------- Dureza

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A Entrevista de Hawking

Stephen Hawking, o conhecido físico inglês, concedeu uma entrevista ao jornal madrileno El Mundo, a qual foi reproduzida pelo  Expresso. É fascinante ouvir um homem paralisado por uma atrofia muscular, todo ele neurónios e inteligência, falar-nos da paradoxia que é a criação da matéria. Para Hawking, a Física Quântica estará, concetualmente, muito próximo de identificar as partículas e explicar as forças e os mecanismos que estão subjacentes à organização da matéria. Para ele, isso vem resolver a paradoxia, o que permite dispensar Deus. Em resumo: Hawking declara-se ateu.

O Universo é muito antigo e é muito grande. A idade e o tamanho do Universo - falamos do Tempo e o Espaço de Einstein -, confundem-se e confundem-nos.  O Universo continua a envelhecer  e a dilatar-se. A seta unidirecional do Tempo confere um sentido à evolução da matéria criada.  É neste sentido, focalizados na intenção de o perceber, que nos devemos deter. Tudo começou no plasma indiferenciado; depois formaram-se os átomos dos diferentes elementos: primeiro os mais leves, depois os mais pesados. Num determinado momento, no mundo que habitamos, as moléculas de certos compostos de carbono aprenderam a replicar-se: nasceu a vida. No nosso planeta, nos últimos 750 milhões de anos, sucederam-se os impactos de meteoritos, as convulsões vulcânicas, as glaciações. Espécies proliferaram em terra e nos oceanos; em certas ocasiões extinguiram-se em massa; noutras ressurgiram sob novas formas. Impelida por uma estranho desígnio - que a Física Quântica não explicou-, a Vida floresceu, resistiu e os organismos vivos adaptaram-se e evoluíram.

Há quatro milhões de anos um primata, caminhando ereto e com uma grande agilidade manual, adquire consciência da sua existência e do seu ser.  Muito mais recentemente, há apenas cerca de dez mil anos, um descendente daquele, o homo sapiens, dotado de inteligência reflexiva e criativa, adquiriu um grande ascendente sobre as outras espécies, começou a espalhar-se e, em muito pouco tempo, ocupou o planeta.  A  Vida, a Inteligência e a complexidade crescente são os marcos que balizam o sentido da evolução da matéria.

Voltemos a Stephen Hawking, ele próprio um fruto da evolução.  Foi, sem dúvida, enorme o avanço que, nos últimos cem anos,  a ciência nos trouxe sobre a estrutura da matéria.  Mas o conhecimento científico explica o como, mas não justifica o porquê. Será que já não precisamos de Deus para responder às nossas dúvidas mais profundas, para entender o sentido da evolução? Ou, ter-se-á finalmente cumprido a ambição de Adão no Paraíso Terrestre e seremos nós o próprio Deus? A coisa criada poderá ocupar o lugar do Criador?

Desde Galileu que a Terra deixou de ser o centro do Sistema Solar. E com Edwin Hubble aprendemos que o nosso lugar no Universo é discreto, sem especial relevância nem centralidade. Ganhámos um conhecimento novo, mas abandonámos crenças antigas e ficámos perdidos diante da vastidão do que nos rodeia. E suspeitamos de que haverá outras revelações surpreendentes, provavelmente outros universos para além do nosso. Cada nova descoberta, parece trazer mais dúvidas do que respostas.

Entre as convicções de Hawking estará também a de que a civilização humana não tem futuro na Terra. A extinção da espécie pode ser provocada por um cataclismo, pelo impacto de um meteorito, por uma glaciação ou outra alteração climática. Muito provavelmente, à semelhança do que aconteceu com outras,  acontecerá a esta espécie entrar num cul-de-sac evolutivo,  provocado pela rutura do complexo sistema ecológico que ela própria criou: uma grande especialização e interdependência entre indivíduos baseada em complexos sistemas externos, vulnerabilidade a doenças infeciosas, dependência crítica de recursos escassos e não renováveis.

Para o famoso físico, a sobrevivência da Humanidade  estará na colonização de outros planetas. Sobre este ponto, discordo totalmente. O homem está prisioneiro do sistema solar. Tal como a Moisés, a quem antes de morrer, foi apenas mostrada a terra prometida no Monte Nebo, também as estrelas e as galáxias foram reveladas ao Homem mas está-lhe vedado o acesso, e nunca as alcançará. Imaginar elementos da espécie humana preservados pelo frio, viajando durante milhões de anos até outros ambientes habitáveis, situados em lugares incertos, só pode acontecer no domínio da ficção.

A definição do sentido da evolução  nunca esteve nas mãos do homem. Ele próprio é um efeito desse processo evolutivo. Mas esse sentido existe  e o homem não o poderá contrariar. Deus já não faz falta a Hawking, mas o vazio provocado pela angústia instigada pela consciência do eu - que Deus veio preencher - persiste em manter-se. Duvido que, algum dia, a  ciência  o venha substituir.


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Pensar o Futuro

Noutros tempos, a rentrée marcava o início das aulas, a abertura da caça e assinalava a chegada da temporada dos espetáculos teatrais e musicais. Agora, está dominada pelas conferências e pelos debates. Depois de, na semana passada, se ter falado de Liberdade no CCB, a Fundação Gulbenkian vai por estes dias promover um debate sobre o tema - Pensar o Futuro de Portugal. Os promotores da iniciativa pretendem que se debatam as políticas para o futuro do nosso país, por constatarem que esse debate e essas políticas têm estado ausentes da governação e da discussão. No clima de desorientação estratégica em que nos encontramos, e em vésperas da apresentação do orçamento para 2015, convenhamos que a iniciativa é oportuna e louvável.

Na Gulbenkian vão estar a apresentar os tópicos quinze personalidades, quase todas ligadas ao mundo académico. Auxiliados por um vídeo promocional, em que cada um dos palestrantes surge a apresentar resumidamente qual o tema da sua intervenção, ficamos com uma ideia antecipada do que ali se vai dizer. É importante debater o futuro de Portugal, mas falta neste debate, na minha opinião, um enquadramento mais amplo que ajude a contextualizar o tema. No tempo da Globalização já não se pode falar do futuro de um país ou de uma região como se ele fosse uma coisa isolada. Não é possível pensar o futuro de Portugal, nem fazer propostas sobre políticas a adotar, sem ter em conta o futuro do mundo ou sem equacionar os caminhos da Europa.

Neste caso, seria útil ao debate mostrar ou antever o pano de fundo onde se jogará o futuro de Portugal. Para esse efeito, poderia recorrer-se ao trabalho já feito por outros e assumir os pressupostos fundamentais que hoje são aceites de forma amplamente consensual. Falo, por exemplo, da escassez de recursos - especialmente energéticos, hídricos e alimentares -, das alterações climáticas, da poluição e do problema demográfico. Mesmo que o livro de Al Gore, O Futuro, pelo seu pendor - orientado para os mass media - não agrade a muitos académicos, depois de expurgado de algum conteúdo mais sensacionalista e especulativo, poderia servir de base de trabalho e cumprir a função referida.

Na antevisão das conferências perpassa a trivialidade dos temas ou o déjà vu - numa conferência destas valerá a pena perder tempo com mais propostas de revisões eleitorais?! -,insiste-se na via do crescimento, na inovação sem precisar o sentido, faltam claramente ideias criativas e propostas ousadas de rutura. Estão ausentes da discussão alguns dos temas mais fraturantes da sociedade portuguesa, temas que têm a ver, por exemplo, com a educação (educar para quê?), com a agricultura - a que está associada a delicada questão da terra -, com a energia, com a demografia, com a imigração, com a Europa e com a soberania.

Prever, adivinhar ou antever o futuro era dom dos demiurgos através dos quais se manifestavam as divindades. Mas o futuro já não pertence a Deus. A ciência e o determinismo já explicam muita coisa e sabemos hoje, pela imprevisível complexidade da matéria, que o futuro também se joga entre a harmonia da ordem e a atração do caos. Mas muito do que irá ser o futuro - para nosso bem e para nosso mal - está nas mãos dos homens. E seria bom que a tarefa de fazer as opções sobre os caminhos a seguir fosse entregue aos melhores e aos mais esclarecidos.


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A Liberdade

Nesta semana, numa conferência pública, vão reunir-se no Centro Cultural de Belém, em Lisboa,  para falar de Liberdade perto de uma centena de individualidades ligadas à comunicação social, à cultura e ao mundo académico. A recebê-los e a abrir os trabalhos estará o Sr. Alexandre Soares dos Santos, o dono dos supermercados Pingo Doce e mecenas fundador da Fundação Francisco Manuel dos Santos que promove o mediático evento. Não vi entre os intervenientes , e julgo que isso terá sido intencional, membros do governo ou figuras ligadas à política ativa. Mas vai estar Eduardo Lourenço, e poder ir escutá-lo ao vivo é para mim razão suficiente para  pagar os 30 Euros, que é o custo da inscrição.

O conceito de Liberdade deu nome a estátuas e avenidas. Os grandes pensadores, os políticos, os maiores leaders ao longo da História falaram de Liberdade. De tão usada  que a palavra tem sido, está a ficar desgastada e até a perder significado. No meu entendimento, a Liberdade é o espaço vital - entendido no plano pessoal e social - que permite a cada homem crescer, afirmar-se e reproduzir-se.  E tal como o ar que respiramos ou a água que bebemos são mais valorizados quando faltam, do mesmo modo a Liberdade adquire mais importância e é melhor percecionada quando se não tem.

Um animal na natureza é, talvez, o melhor exemplo de um ser livre.  Mas essa liberdade natural está condicionada, entre outras coisas, pelo clima, pelos predadores, pela disponibilidade de alimento. E até a liberdade de se  reproduzir está condicionada pela lei do mais forte ou pela capacidade de seduzir e atrair. Nessa medida, o homem mais livre terá sido o caçador-recoletor  que em cada manhã partia, de lança em punho, a procurar o sustento familiar de cada dia. A natureza estendia-se à sua frente, ele era livre de escolher o seu caminho, livre de gritar, de lutar, de matar e de morrer.

A inteligência veio conferir uma nova dimensão  ao conceito de Liberdade. O filósofo que se interroga sobre as coisas e procura explicá-las é o homem livre. Galileu foi um homem livre apesar de ter sido impedido de expressar a sua opinião e  até ter sido obrigado a negar a Verdade. O progresso e a inovação são consequências da Liberdade. O homem mais forte, o mais sensato, o mais justo é o mais livre. A Liberdade é um atributo da mente, e não  há homens livres sem uma mente liberta. O homem verdadeiramente livre é o homem incondicionado.

Na economia da sociedade global, valoriza-se e defende-se a liberdade de produzir, de concorrer, de consumir e de possuir. É uma liberdade, por sua vez, associada à liberdade de destruir, de desperdiçar e de poluir, e isso irá limitar fortemente a Liberdade das gerações futuras. Começamos agora a perceber melhor que os limites da Liberdade são, de alguma forma, impostos pelo limite ao crescimento.

O evento do Centro Cultural de Belém tem tudo para ser uma grande feira de vaidades, e acredito que os quase cem portugueses que ali vão debater o conceito de Liberdade não vão chegar a grandes resultados. Irão certamente concluir que austeridade limita a Liberdade e que sem pão não haverá Liberdade. Ora, isto é tão verdade como dizer que quando o oxigénio escasseia as pessoas ficam com falta de ar. Aos que não têm pão - e infelizmente são cada vez mais! -  resta-lhe a liberdade de se reproduzirem e, dessa forma, contribuir para apertar mais o garrote demográfico que ameaça sufocar a espécie humana.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Escócia

O referendum que teve lugar na Escócia  no passado dia 18 de setembro, veio colocar  uma serie de interrogações sobre a construção da Europa e sobre o seu futuro. Estamos muito longe de 1707, quando foi assinado o tratado de União entre a Inglaterra e a Escócia que criou o Reino Unido. Desde então, o conceito de soberania afirmado no poder económico e militar, e que prevaleceu no século XIX e em grande parte do Século XX, alterou-se profundamente. Por um lado, a globalização, os acordos de comércio livre, a internacionalização do capital financeiro mudaram a economia, e, por outro lado, a sofisticação do armamento, as comunicações, a mobilidade demográfica, a expansão das organizações terroristas, a dissuasão nuclear,  mudaram o conceito de defesa e a forma de fazer as guerras. Alterado o conceito de soberania, altera-se também o conceito de independência.  Alex Salmond percebeu isso e foi a votos.

A Europa, no pós guerra,  começou por ser construída por nações soberanas, mas, sobretudo após o alargamento a Leste, com a adesão de pequenos países  desmembrados de estados - como foi  o caso dos estados Bálticos ou países da ex-Jugoslávia como a Eslovénia,  ou a Bósnia - passou a desenhar-se como um espaço de regiões. Terá sido esse facto que excitou os impulsos independentistas de regiões com tradição de autonomia como é o caso - para citar apenas os dois exemplos mais notórios - da Escócia e da Catalunha.  Neste novo contexto,  os escoceses e os catalães não encontram- mesmo sendo  países pequenos-  razões para não ter assento direto em Strasbourg à semelhança do que  acontece com aqueles outros atrás referidos.

A União Europeia  é uma construção que se baseia numa força centripeta. E, tal como acontece num sistema planetário, essa força atrativa exige uma centralidade. Ora, no caso da União Europeia - e mesmo que isso custe a outros países - , essa centralidade é a Alemanha. A Inglaterra vive ainda a nostalgia do Império que a Commonwealth tenta preservar; a França nunca se recompôs do desaire de Waterloo; e a Espanha estiolou com a Inquisição e sucumbiu de vez com a derrota da Armada Invencível. A Itália, com atores da envergadura de Berlusconi, tem sido e continuará a ser o palco de uma opera cómica. Apenas a Alemanha que perdeu duas guerras, mas que não tem fantasmas de glórias passadas a ensombrar-lhe o presente, se pode assumir - e tem-no feito - como centralidade europeia. E isto apesar da  Inglaterra aspirar a ter um papel no Novo Ocidente que se pretende construir à volta do Atlântico Norte sob a proteção do dólar e da Nato.  Em conclusão, o "sim" da Escócia, enfraquecendo a Inglaterra, que atua como força centrifuga, fortaleceria a Europa.

A Escócia fez o seu primeiro ensaio. Voltará a jogo nos próximos anos, e auguro que,  dessa vez,o resultado será diferente. Cada crise, cada insucesso, cada nova ingerência nos seus destinos, saldará-se-á num reforço do "sim". A Catalunha e o País Basco espreitam. A Córsega poderá vir a seguir. Não se advinha fácil a tarefa de construir a Europa.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Stress Hídrico

Entre os recursos naturais ameaçados pela Sociedade Industrial e pela Globalização, a água é um dos mais sensíveis. Sem água potável a vida das espécies animais e vegetais e, em particular, a dos humanos ficará seriamente ameaçada. O uso doméstico, a indústria, a agricultura e a pecuária reclamam quantidades cada vez maiores de água. As alterações climáticas favorecem a ocorrência de fenómenos extremos de seca e de inundações, fenómenos esses que agravam o problema. A escassez de água afeta já grandes massas populacionais em muitas zonas do planeta. Se não forem tomadas medidas adequadas, a humanidade, num futuro não muito longínquo, poderá enfrentar graves problemas no abastecimento de água potável .

São bem conhecidas secas cíclicas no nordeste do Brasil. Mas, pela sua urgência e dimensão, a situação que se vive atualmente na grande metrópole de  São Paulo assume contornos preocupantes. Apesar de estar localizada não muito longe do mar, separada dele pela imponente cordilheira da Serra do Mar, a grande cidade fica na cabeceira de rios - dos quais o mais importante é o Tietê- que correm para o interior do estado e pertencem à grande bacia do rio Paraná, cujas águas são entregues ao oceano, milhares de quilómetros a sul,  no mar da Plata.  Não existindo um volumoso curso de água na proximidade da cidade, a captação de recursos hídricos para a abastecer  tem de ser feita em pequenas bacias de montanha.

A Grande São Paulo teve um crescimento fulgurante, sobretudo na segunda metade do século passado. Teria pouco mais de 1 milhão de habitantes no início dos anos 40, e conta hoje com 22 milhões. O abastecimento de água e o tratamento dos esgotos tornaram-se um dos maiores problemas da cidade. No final dos anos sessenta, liderada por Abreu Sodré, a prefeitura da cidade, então já com 8 milhões de habitantes, resolveu atacar o problema. Foi nessa altura que, para reforçar o abastecimento de água,  foi projetado um complexo sistema que  consistia na captação em várias bacias de pequenos rios interligadas entre si. Essas bacias situam-se na zona a norte de São Paulo, ocupando uma vasta área que se estende até ao estado de Minas Gerais.  O sistema, inaugurado em meados dos anos 70,  ficou conhecido como sistema Cantareira e é, atualmente, o mais importante de São Paulo. Com um débito de 33 metros cúbicos por segundo, fornece água para cerca de 9 milhões de pessoas que representam 40% da população.

O sistema foi pensado para aguentar sete anos consecutivos de seca. Mas os dois últimos anos hidrológicos, com precipitação  muito abaixo da média, e o consumo acima das previsões, secaram o Cantareira. Em maio passado, foi necessário recorrer ao "volume morto", bombeando para as condutas a água da barragem que fica abaixo da cota de captação. Essa reserva prevê-se que se esgote dentro de mês e meio. Estamos no começo da primavera austral, e os paulistanos rezam pela chegada das habituais chuvas de verão. Se elas não ocorrerem, numa intensidade suficiente, São Paulo morrerá de sede. As autoridades do Estado, nomeadamente o Governador Geraldo Alckmin, em ano eleitoral, asseguram que a chuva virá e que o problema ficará resolvido. Mas muita gente, sobretudo entre as camadas mais esclarecidas da população, começa a ficar seriamente preocupada.

Gritantes desigualdades sociais, graves erros urbanísticos, falta de casas, perdas de 40% de água nas condutas, elevados níveis de poluição, são outros enormes problemas, não resolvidos, da Grande São Paulo. Os investimentos para despoluir os rios, para ampliar as captações, para rever todo o sistema de condutas serão astronómicos. No horizonte de décadas - o tempo da próxima geração! -, São Paulo é uma cidade ameaçada. Que acontecerá no futuro? Continuará a haver crescimento como exige a economia ou  deixará de haver crescimento como exige a sustentabilidade? Se  houver crescimento a cidade corre o risco de colapsar à mingua de água; se não houver crescimento, o colapso resultará do sufoco económico. Estamos perante a impossibilidade do "crescimento sustentável", o oximoron de que falava Albert Bartlett.

Este exemplo ilustra bem o problema dos limites ao crescimento, o mais urgente da nossa Civilização.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Palavras Solenes

 Disse ao meu coração: «Olha por quantos
 Caminhos vãos andámos! Considera
 Agora, desta altura fria e austera,
 Os ermos que regaram nossos prantos...

 Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
 E noite, onde foi luz de Primavera!
 Olha a teus pés o Mundo e desespera,
 Semeador de sombras e quebrantos!»

 Porém o coração, feito valente
 Na escola da tortura repetida,
 E no uso do penar tornado crente,

 Respondeu: «Desta altura vejo o Amor!
 Viver não foi em vão, se é isto a vida,
 Nem foi de mais o desengano e a dor.»

Este belo soneto de Antero de Quental (Solemnia Verba) está gravado na parede da casa que o poeta habitou em Vila do Conde, hoje transformada em Centro de Estudos Anterianos. Ele encerra uma profunda lição de filosofia. Trata-se de uma reflexão sobre o paradoxo da Vida Humana e sobre o significado do Tempo. "Pó e cinzas, onde houve flor e encantos! / E noite, onde foi luz de Primavera!" poderia traduzir-se por " Pó e cinzas, quando houve flor e encantos! / E noite, quando foi luz de Primavera!"

A leitura deste belo soneto lembra um  outro de Camões "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades"  E, no último terceto do poema, eu consigo identificar Pessoa: "Tudo vale a pena, se a Alma não é pequena". Os grandes poetas sofrem das mesmas angústias e abordam os mesmos temas universais. E a língua portuguesa é maravilhosa para exprimir a subtileza do pensamento destes poetas filósofos.

Foi neste Verão que eu conheci a bela Cidade de Vila do Conde, a cidade com "mais escritores por metro quadrado" no dizer do meu amigo da Guarda, o professor e especialista em Literatura, Tozé  Dias de Almeida,  que me levou à descoberta dos caminhos e dos lugares que, na cidade, assinalam as suas ligações a  Antero de Quental, a José Régio, a Camilo Castelo Branco, a Agustina Bessa-Luís e a Eça de Queirós.

Eu não tenho pretensões a ser literato.  Com pena minha, e à exceção de Eça que sempre me acompanhou desde a adolescência, conheço mal as obras destes escritores. Mas senti sempre uma especial atração por Antero despertada pela magistral evocação que dele faz Eça de Queirós no artigo que escreveu após o seu suicídio nos Açores, em 1891, e que termina desta forma sublime: "um santo que muito padeceu  porque muito pensou, que muito  amou porque muito compreendeu, e que,  simples entre os simples, pondo a sua vasta  alma em curtos versos – era um  Génio e era um Santo". 

Inspirado por esta visita a Vila do Conde,  e sem o indispensável tempo sereno para me aventurar nos poemas de Antero - seguramente, pela amostra deste Solemnia Verba, a parte mais interessante da sua obra  -, fui reler o texto da conferência que ele, então um jovem de 29 anos,  proferiu no Casino de Lisboa - uma das célebres Conferências Democráticas do Casino - no dia 27 de maio de 1871 e que intitulou "Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos trezentos  anos".

Ao longo da sua longa intervenção, Antero compara a pujança medieval dos povos ibéricos com os seus cientistas, os seus artistas, os seus literatos, as suas universidades, e interroga-se sobre o que terá provocado - num curto período de algumas décadas, em meados do Século XVI- a ruína deste esplendor e a transformação da gente da península numa sombra do seu passado. As causas que ele aponta são três : 1) O catolicismo saído do Concílio de Trento, dogmático e limitador das liberdades, em oposição à corrente evangélica saída da Reforma e dolorosamente afirmada na Guerra dos 30 anos; 2) O absolutismo que anulou o antigo poder local, fomentou intrigas e produziu ociosidade; 3) A expansão resultante das descobertas e das conquistas que trouxe riqueza, mas não gerou indústrias nem desenvolvimento, contrariamente ao que fizeram os ingleses na Índia, caso que ele cita como exemplo.

É estimulante acompanhar o discurso do jovem Antero, perceber o sentido revolucionário que emana da sua mente. Antero chega a citar Adam Smith, o grande inspirador da nova economia então nascente; revolta-se contra o imobilismo, o compadrio e a corrupção. Ao terminar o seu discurso, depois de afirmar que Cristo nunca poderia ter sido católico, lembra o papel do cristianismo na transformação do Império Romano e aponta os seus princípios como inspiradores de uma nova e urgente revolução. Cento e quarenta e três anos depois daquela memorável noite em que Antero lança um grito cujo eco só chegaria ao povo português mais de cem anos depois, numa manhã de Abril, nós não questionamos o sentir republicano e democrático de Antero, mas duvidamos das causas por ele apontadas para a decadência dos povos ibéricos. Pois, eliminadas que foram as causas, não se deveria ter invertido a trajetória decadente?

Na ruidosa e inquietante confusão do nosso tempo, é salutar e revitalizador beber do pensamento tonificante de  um português esclarecido que foi um homem livre, um puro democrata e um verdadeiro socialista.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Férias

Esta segunda-feira, por motivo de férias, não se publica o post habitual.


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Havemos de Ir a Viana

Se o meu sangue não me engana
Como engana a fantasia
Havemos de ir a Viana
Ó meu amor de algum dia

...O amor é como o vento,
quem pára perde-lhe o jeito

Pedro Homem de Melo


Agosto é o mês das Romarias, porventura a expressão mais genuína do sentimento português. E o Minho é, por excelência, a terra das Romarias onde os rituais religiosos e pagãos se misturam num caldo de culturas de predominância celta. E quem quiser perceber a força que emana destas festas, que se repetem em cada final de Agosto, deve ir a Viana do Castelo e assistir à exuberância da cor, da música, do traje, e do folclore.

Eu tive o raro e grato privilégio de, no verão passado, ter estado no Alto Minho e ter assistido a uma parte dos festejos da Senhora da Agonia. Eu e a minha mulher, acompanhados de um casal amigo, pernoitámos na mítica aldeia de Afife, em casa dos inexcedivéis anfitriões: Zé Prata e Cina. Afife  é única com a sua localização, a sua vegetação luxuriante, as suas casas subindo a encosta, o famoso Casino Afifense, e a Quinta de Cabanas onde corre um rio de águas cristalinas onde eu ainda pude mergulhar as mãos.

Numa bela manhã de verão já a resvalar para o equinócio outonal, na ermida  de Nossa Senhora das Dores, sobranceira à aldeia, com o peito cheio de ar puro e bêbados de horizonte, exprimimos a gratidão do momento e eu recordei intimamente a exaltação de Albert Camus em Tipasa, inebriado por uma luz e em frente de um mar, em tudo semelhantes a estes: Aqui compreendo aquilo que se chama glória: o direito de amar sem limites.

Nas festas de Viana, o cortejo de sábado arrancou com o a percussão poderosa e ritmada dos bombos que é o som que rebenta os ferrolhos com que trancamos a alma e nos leva rapidamente ao êxtase; depois veio a beleza suave e cativante das mordomas vestidas a rigor no seus trajes tradicionais; meninas, aspirantes a mordomas e já trajando como elas, dão-nos a garantia de que  o ciclo não se fechará; o desfile perde ritmo quando nele se enxerta a religião espartilhante; mas termina em crescendo com alegria contagiante das gaitas de foles, com o desfile dos noivos e com a enchente desordenada das Marias, gente comum  que ali vai apenas movida pelo prazer de participar e desfilar.

Perante este deslumbramento, eu lembrei-me dos pastiches carnavalescos em que jovens, grotescamente vestidas imitando salseiros e sambadores,  exibem, sem graça nem sensualidade, os seus corpos enregelados na frialdade de fevereiro.  Tão longe do sorriso sensual das mordomas, inspiradoras de poetas de prosadores e pintores!

Portugal não terá futuro se impedir que as  raízes culturais mais profundas deixem de alimentar os seus filhos. Se queremos sobreviver como povo, partamos, pois, à redescoberta da seiva com que temos de fazer desabrochar  o nosso orgulho de ser e de nos sentir portugueses.
...Os pecados têm vinte anos,
os remorsos têm oitenta
Pedro Homem de Melo

 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A Constituição

Passados quase 40 anos sobre a aprovação da Constituição que nos rege, e confrontados com as notícias que dão conta da decisão do Tribunal Constitucional de declarar a não constitucionalidade de algumas normas que o Governo pretendia adotar, parece ser este um bom momento de revisitar a nossa Lei Fundamental,  e tecer sobre ela algumas considerações.

Trata-se de um  documento extenso, mal conhecido pelo comum dos cidadãos, que enumera os direitos e deveres dos portugueses e estabelece a organização e as normas de exercício do poder político e económico.  Produzida, votada e aprovada pela Assembleia Constituinte eleita em Abril de 1975, na época que se seguiu ao 25 de Abril, a Constituição da República Portuguesa reflete o ambiente que se vivia em Portugal naquele período, e incorpora aquilo que  viria a designar-se por conquistas de Abril. Num país acabado de sair de um regime colonialista, repressivo, injusto e totalitário, não admira que a Constituição valorize e expresse os aspetos que em tudo contrariavam o antigo modo de governar .

A Constituição da República Portuguesa procura conciliar as duas correntes que, na época da sua aprovação, estavam em confronto: a corrente socialista, que advogava uma via orientada para uma economia planificada e uma democracia centralizada do tipo da que existia nos países então designados por socialistas – afirma a decisão do povo português (...) de abrir caminho para uma sociedade socialista, diz-se no Preâmbulo –, e uma via liberal inspirada na social democracia, claramente defensora de uma economia de mercado do tipo ocidental. A vigilância do Conselho da Revolução, a força expressiva das organizações de poder popular e a pressão dos meios de comunicação, controlados maioritariamente pela esquerda, condicionaram o debate. O resultado final acabou por ser uma constituição que, ao tentar conciliar o inconciliável, se traduziu num documento cheio de contradições: ambígua, excessivamente detalhada, salpicada de doutrina avulsa.

No seu artigo 80º, que se ocupa dos princípios fundamentais da organização económica, diz taxativamente que a organização económico-social assenta no princípio da subordinação do poder económico ao poder político democrático, e esta é, porventura, a sua maior contradição. Porque na realidade – na economia liberal que acabou por se impor, sobretudo após à adesão à EU – o poder económico sobrepõe-se ao poder político, e nada adianta postular o contrário. Em defesa daquele princípio pode até invocar-se uma subtil diferença entre poder económico e poder da economia. Mas o que está em causa é o poder da economia que, em última análise, se identifica com o poder económico.

Em momento algum do texto se faz a defesa explicita da economia de mercado, mas defende-se a livre concorrência e os direitos dos consumidores. No Artigo 80º, alinea d), advoga, sem a impor ou tornar obrigatória, a propriedade pública dos recursos naturais e dos meios de produção, de acordo com o interesse colectivo, mas admite a propriedade privada. Não esclarece, contudo,  se a terra – o nosso maior recurso – é entendido como um recurso natural e, como tal, deve ser, ou não, coisa pública.

O direito ao trabalho é defendido, postulando no artigo 58, 2 alínea a), que compete aos Estado promover a execução de políticas de pleno emprego. Ora, esta é uma  questão delicada que numa economia de mercado tem mais a ver com o desempenho da economia do que com a política. Sabemos hoje – na altura não era tão claro – que política de pleno emprego é sinónimo de crescimento económico. Esta acabou por revelar-se outra grande contradição, pois uma política de pleno emprego pode obrigar o Estado a dirigir investimentos para esse fim, e, desta forma, ter de limitar alguns dos direitos constitucionais considerados inalienáveis.

No titulo III, que se ocupa dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, ao longo de todo o clausurado, entre o artigo 58º ao artigo 79º, só se fala praticamente de direitos e quase não se fala de deveres, os quais são vagamente referidos num sentido lato, ao contrário dos direitos sempre explicitados e detalhados. Direitos que são sempre assegurados pelo Estado. Até a qualidade do ambiente é um direito que compete ao Estado assegurar. E, neste domínio, não se menciona o dever concreto  dos cidadãos de não poluírem o solo, a água ou o ar, do dever de reciclarem os recursos escassos, de economizarem energia ou protegerem a biodiversidade. Cito ainda, como mero exemplo, que o Estado tem de assegurar aos portugueses a liberdade  de aprender e de ensinar, mas nada se diz sobre o elementar  dever de aprender e de ensinar, que são a  base da cidadania e do progresso pessoal e social. A solidariedade e a segurança social são garantidos pelos Estado. Não se deixa espaço para a solidariedade entre pessoas e ignoram-se ostensivamente os princípios universalizados da cultura cristã como o amor ao próximo, a caridade e a compaixão.

Ao Tribunal Constitucional compete fiscalizar, quando isso lhe for solicitado nos termos previstos, a conformidade das leis com a Constituição. Em muitos casos terá de interpretar artigos, terá de escolher opções, resolver conflitos entre normas. E a experiência mostra que o tem feito com as posições dos seus treze juízes repartidas entre essas escolhas, o que revela a subjetividade das normas e  mostra que existe uma  fronteira esbatida entre o que é juízo e inclinação política.

Um dia o Estado não poderá assumir esta pesada carga de assegurar todos os direitos que a Constituição garante aos portugueses. Alguém, ou algum direito, irão ser preteridos em favor de outros. Nesse dia perceberemos que os bem intencionados deputados constituintes, inspirados pelos generosos capitães de Abril, não ofereceram aos portugueses o futuro risonho com que sonharam. As contradições virão ao de cima, vai ter de colocar-se, de novo, a tónica nos deveres, vão ter de procurar-se outros valores.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O Conseguimento

A Presidente da Assembleia da República, que é a segunda figura do Estado, foi amplamente visada nas redes sociais por ter introduzido um neologismo no nosso vocabulário: conseguimento. Na verdade, ela usou a palavra inconseguimento com o vago sinónimo de incapacidade ou frustração. Fê-lo de um modo tão desastrado que o vocábulo passou a tresandar a chacota, evoca-se como anedota, e, de tão mal tratado que foi, dificilmente encontrará espaço para se afirmar no léxico do discurso dos nossos pensadores e muito menos dos nossos políticos. E, no entanto, é um substantivo que merece que lhe seja atribuído um significado, pois para ele não é fácil encontrar um sinónimo.

Conseguimento deriva de conseguir. O efeito de conseguir algo coisa será o conseguimento. Ora tal como de impedir deriva impedimento, de cumprir deriva cumprimento e de sentir deriva sentimento, nada obsta a que de conseguir derive conseguimento.

Conseguir significa obter algo, alcançar um objetivo, uma meta ou uma posição. Mas conseguir não se refere apenas ao momento de alcançar ou obter o que se deseja, pois o conceito inclui o esforço e a ação desenvolvida até atingir o objetivo. Conceito que está próximo do significado de manage to get ou de manage to obtain dos ingleses. Conseguir implica, pois, vontade, diligência persistente e um caminhar sempre orientado na direção ao pretendido, contornando obstáculos, derrubando muros, afirmando valores. Se, por exemplo, o Governo de Portugal conseguir cumprir as metas do deficit  orçamental a  que se propôs – contra tudo e contra todos, contestação social, Tribunal Constitucional, oposição, etc. – estaremos perante algo que é mais que um cumprimento, que é, de facto, um conseguimento.

Precisamos, pois, urgentemente, de um substantivo para traduzir o cumprimento esforçado , continuado, planeado e diligente de um propósito ou de um objetivo difícil de cumprir. Por mais que eu me esforce por encontrar uma palavra que tenha este significado só me ocorre o maldito conseguimento. Claro que eu posso usar o infinito do verbo – o conseguir – e substantizá-lo, mas isso satisfaz-me menos que o substantivo derivado.

O homem é educado para conseguir: conseguir acabar o curso, conseguir um bom emprego, conseguir ter sucesso, conseguir enriquecer. Para uma ave, fazer o ninho, ou para o leão, caçar a presa, não é conseguimento, É comportamento  instintivo, é natural, não exige planeamento e é o que se espera desses animais. Mas pode sê-lo para o homem que constrói a sua casa ou cria uma empresa. Afinal, o progresso é o resultado de sucessivos conseguimentos que fizeram a Civilização Humana.

Os animais transmitem aos seus descendentes o conhecimento que lhes permite sobreviver. Nós, humanos inteligentes, transportamos o passado para o futuro. Carregamos o conhecimento e os bens que acumulamos. Deixamos aos nossos filhos o conhecimento mas também as coisa que acumulámos, para o bem e para o mal: as cidades, as armas, as bombas, as desigualdades, o dinheiro, as dividas. E deixamos-lhe as leis as regras que fizemos para nós mas que esperamos eles cumpram e respeitem. Afinal, deixamos-lhes tudo aquilo que conseguimos, e pedimos-lhe que consigam mais.

O conseguimento e a urgência de conseguir cada vez mais coisas, está a enredar-nos na complexidade, obriga-nos a gerir o futuro e rouba-nos o presente que é onde reside a felicidade. Conseguiremos encontrá-la?

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A Guerra Económica

As sanções que, a propósito da situação no leste da Ucrânia e após o abate do avião da Malaysian Airlines, os Estados Unidos e a União Europeia decretaram contra a Rússia são o exemplo de uma nova forma de guerra que utiliza uma nova arma: a guerra económica. É a globalização e a dependência entre países que permite utilizar este novo tipo de armas e as torna eficazes. A guerra económica é uma guerra suave; não implica derramamento de sangue, não é formalmente declarada, nem sequer implica a rotura de relações diplomáticas entre os beligerantes. Os estrategas desta nova guerra não são militares, são economistas apoiados nas mentes brilhantes que estudam e aplicam a teoria dos jogos.

 Tal como acontece na guerra clássica, uma guerra económica pretende enfraquecer o inimigo, visa afetar a sua economia, reduzir ou eliminar o o crescimento, procura atingir sectores vitais e estratégicos. O objetivo é provocar a escassez de bens, fomentar o desemprego e com isso favorecer a contestação e a agitação social, visando, como última consequência, criar problemas ao poder estabelecido e eventualmente provocar o seu derrube.

Porque o sistema global é interativo e interdepedente, numa guerra deste tipo o agressor também perde, ou seja, o efeito das sanções económicas afeta também quem as decreta. Se os objetivos do agressor não forem plenamente conseguidos este acaba por ser um jogo de soma negativa em que todos perdem. Só nações ou grupos de nações economicamente fortes podem utilizar esta arma, considerando que os danos causados ao país mais fraco são, para ele, proporcionalmente muito mais gravosos do que os sofridos pelos agressores.

A crise da Ucrânia, que levou o Ocidente a decidir implementar estas medidas sem precedentes contra a Rússia, mostra quanto está em jogo neste conflito. A Ucrânia, futuramente integrada no bloco “ocidental”, isola a Rússia e cria, a leste, um escudo de proteção para a Alemanha, reforçando o conceito da parceria Atlântica, que está a ser negociada entre a Europa e os Estados Unidos e cuja concretização é o almejado resultado final desta guerra. Tal parceria só faz sentido se assentar num eixo EUA-Alemanha, enfraquecendo a ameaça - para muitos natural- de um eventual reforço da ligação da Alemanha com a Rússia.

A Alemanha será, aliás, o país que mais vai perder com esta guerra económica. A Rússia é um grande cliente e um grande fornecedor da Alemanha, e uma esperada quebra nas transações bilaterais pode aumentar o desemprego em algumas centenas de milhares de trabalhadores alemães. Se os fornecimentos de gás natural vierem a ser afetados, então as consequências para a economia alemã poderão ser ainda mais gravosas.

O sector energético russo também vai ser impactado, pois um dos objetivos das sanções agora decretadas visam o seu sector petrolífero. A Rússia, o maior produtor mundial, precisa da tecnologia ocidental para manter a sua produção de crude e para desenvolver novas explorações no Ártico. Uma quebra de produção de petróleo na Rússia terá como resultado um aumento do preço da matéria-prima e pode contribuir para uma recessão económica  generalizada, que não interessa a ninguém. Outra consequência desta guerra pode ser o reforço de um bloco russo-chinês com incidência no sector energético. E pode também resultar, como efeito colateral, um enfraquecimento da América como banqueiro do mundo. Aliás a Rússia já deu sinais de procurar alternativas ao Banco Mundial e de criar outra referência para o preço do petróleo em alternativa ao dólar. Para isso terá de contar com os países emergentes - em particular a China -, e com o apoio de outros países produtores de petróleo, nomeadamente do Irão.

Tal com há 100 anos, as tensões acumulam-se entre as novas potências. Há 100 anos o conflito que as libertou, mudou o mapa da Europa. Estaremos agora a alimentar um conflito que irá alterar o mapa do mundo?

segunda-feira, 28 de julho de 2014

História do Petróleo. Os Primórdios

Foi em Oil Creek, na Pensilvânia, que tudo começou. Corria o ano de 1858, já o coronel Edwin Drake desesperava e se dispunha a abandonar a perfuração, quando, no dia 27 de Agosto, o petróleo, negro e viscoso, jorrou abundante e espontaneamente das entranhas da terra. A utilidade do petróleo foi logo reconhecida, pois extraía-se dele, por destilação, o querosene usado na iluminação e que veio substituir a cera, o pez, o azeite e, sobretudo, o óleo de baleia. Quem percebeu o alcance do negócio foi John D. Rockefeller que, anos mais tarde, haveria de organizar uma empresa para o produzir, para o refinar, para o transportar e para o vender. O resultado foi a Standard Oil, que rapidamente iria absorver os concorrentes e transformar-se num trust de grandes dimensões. Nessa época, destacou-se o trabalho de uma corajosa jornalista, Ida Tarbell, ao conduzir uma campanha que muito contribuiu para que o Supremo Tribunal americano, em 1911, com base nas leis anti-trust, viesse a decretar o desmembramento da Standard Oil, originando o nascimento de muitas filhas, entre elas a Esso, a Exxon, a Mobil, a Amoco e a Chevron.

Rapidamente, a febre da prospeção do petróleo alastrou ao mundo inteiro. As descobertas seguintes tiveram lugar em Baku, no Azerbeijão, e em Sumatra, nas Índias Orientais, território sobre a administração holandesa, hoje Indonésia. Em Baku, os irmãos Nobel destacaram-se no desenvolvimento da produção, juntamente com a família francesa dos Rothschild. Em Sumatra, formou-se a Royal Dutch que em 1900 após a morte do seu primeiro presidente, Augusto Kessler, passou a ser dirigida por Henri Deterding, um jovem ambicioso e determinado a dar luta à supremacia mundial da Standard Oil.

Entretanto, começava a colocar-se o problema do transporte da matéria prima, o qual era inicialmente feito em barris de madeira. Marcus Samuel, um judeu inglês filho de um negociante que importava conchas do Oriente, criou uma companhia a que chamou Shell, inspirado no negócio do seu pai. Ele foi o primeiro a usar, em 1892, o primeiro navio tanque - o Murex- para transportar petróleo e cruzar o canal de Suez, abrindo o comércio da matéria prima no extremo oriente. Em 1907, Marcus Samuel haveria de unir-se a Henri Deterding para formar a Royal Dutch Shell (60% holandesa e 40% inglesa). Pela primeira vez, a Standard Oil tinha um concorrente de peso. Começava o reinado do petróleo, o qual haveria de mudar o mundo e alterar o curso da Civilização de uma forma nunca antes vista.

Um dia, quando o petróleo escassear, iremos perceber ainda melhor toda a importância desta substância viscosa que o engenho humano soube extrair das profundezas da terra e do mar onde esteve aprisionado durante milhões de anos. O cavalo tornou-se obsoleto com o petróleo, que deu asas ao homem e permitiu realizar o sonho de Dédalo e a ambição de Ícaro. Ele fez explodir a população mundial, criou as fibras que nos vestem, libertou os bois do jugo do arado, fertilizou e arroteou a terra que nos alimenta. Os objetos que nos integram na teia das comunicações, nos interligam com o mundo e com os outros e transformaram o modo de viver do nosso dia-a-dia são feitos de materiais derivados do petróleo.

O petróleo estimulou a ambição do homem, e esteve na origem de dois sangrentos conflitos que balizaram o século XX. Foi o petróleo que fez as cidades, está a saturar a atmosfera de CO2 e ameaça o equilíbrio que a natureza conseguiu alcançar ao longo de milhões de anos. Hei-de voltar à história do petróleo para tentar mostrar até onde nos trouxe a aventura começada naquele longínquo dia 27 de Agosto de 1858. E, sobretudo, para tentar antecipar e encenar o último ato daquilo que pode ser - ou não! - o prelúdio de um novo alvorecer.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

O Caso BES

"Todo o mundo é composto de mudança, 
tomando sempre novas qualidades"
Luís de Camões


Aquilo que está a passar-se no Grupo Espírito Santo só pode ser entendido como uma consequência tardia da crise que, desde 2008, está a abalar a economia mundial. Naquele ano, por razões várias, começou a verificar-se uma desaceleração do crescimento económico que se repercutiu em primeiro lugar no sistema financeiro e no lugar onde ele, principalmente, está sediado: os Estados Unidos. Os ajustamentos subsequentes obrigaram a reduzir o crédito à economia e a eliminar os excedentes financeiros criados artificialmente, cuja existência, tal como na pirâmide de Ponzi, só é permitida pelo roulement do crescimento.

Um grupo como o GES tinha tudo para sofrer o impacto da crise, e, para mim, só é de espantar o tempo que isso demorou a acontecer. Em países como Portugal, sem recursos naturais, a economia funcionava movida pelos drivers da construção civil e do turismo. O GES estava no coração do processo. Tinha ligações ao governo, financiava as obras públicas que sustentavam o emprego e promoviam o crescimento. Quando se tornou claro que este não era o caminho a seguir - e isso não foi logo evidente para os governantes - os grupos de cariz financeiro entraram em sofrimento. A atração de espaços com forte liquidez, injetada pelos recursos energéticos - nomeadamente os casos de Angola e do Brasil -, surgia como uma via salvadora. Mas também estes países enfrentam problemas de natureza social, e o desenvolvimento dos seus recursos desacelerou. Os ativos não financeiros do Grupo nada produzem e, para além de serviços nas áreas da saúde e do turismo, têm mais caráter especulativo do que valor produtivo intrínseco.

O Grupo teve ainda a seu favor o facto de dispor de um banco que, favorecido pela multiplicação dos depósitos captados aos clientes - uma vantagem arriscada que, como se viu, não era possível manter indefinidamente - podia ser utilizado como fabrica de dinheiro e fonte de crédito. A gestão familiar, que numa primeira fase cria resiliência, torna-se fonte de conflitos quando os elementos familiares - que sucessivas gerações vão multiplicando - se tornam ávidos dos dividendos que vão escasseando.

As ligações da Comunicação Social com o poder económico acabam também por ser relevadas como axiomas neste caso: vemos o principal colunista do Expresso (MST) emudecido sobre o assunto, ao que parece, preso em dependências familiares e incapaz de encontrar isenção - como lhe competia - para fazer uma fria análise do caso. E assistimos, na TVI, ao patético malabarismo de Marcelo, amigo de Ricardo, que, mais preocupado com a opinião de que com a verdade, se esforça em explicar e justificar o injustificável.

A grande lição a extrair deste caso prende-se com a evidência de que a política está submetida ao poder económico, e demonstra que a economia está dependente do crescimento, o qual, em ultima análise, está sujeito às leis da Física e às leis da Natureza que o limitam. Os estragos que o caso BES vai provocar em Portugal, na sua política e na sua economia, ainda estão por avaliar. Não deixa, contudo, de ser uma boa oportunidade para refletirmos sobre nós e sobre o nosso futuro comum.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

O Mundo e a Transição

Faz esta semana um ano que foi editado o Mundo em Transição, o livro em que foram reunidos alguns dos textos publicados neste blog. Os textos - e devo isso à preciosa ajuda de um amigo - acabaram por ficar agrupados de uma forma lógica e coerente, o que confere ao livro uma certa unidade de pensamento. Tive algumas reações simpáticas ao livro, umas inesperadas e outras até surpreendentes. Mas, num país onde se editam 10,000 títulos por ano, abordando um tema não necessariamente popular, e nas actuais condições do mercado editorial, o livro não foi - nem eu esperava isso - um êxito de livraria.

O Mundo em Transição acabou por ser um livro de divulgação, com um pendor didático, que foi colher ideias a uma corrente de pensamento em expansão, de raíz americana, que se interroga sobre o futuro da nossa civilização. A ideia forte desta corrente bebe da obra que disseminou essa linha de pensamento : Limits to Growth, publicado em 1972, que congregou um movimento que não mais deixaria de ganhar expressão. A questão dos limites e da impossibilidade do crescimento contínuo é pois a questão central do livro. Nas últimas décadas, já depois da publicação do Limits to Growth, ganhou força a questão das alterações climáticas que, por ainda estar mal estudada, não tinha sido abordada em 1972.

A questão da energia fóssil e do seu previsível esgotamento tem sido amplamente debatida, sobretudo a partir da viragem do século, gerando um amplo movimento de especialistas que dissecaram o tema e deixaram demonstrado que o esgotamento das reservas de carvão, gás natural e petróleo é apenas uma questão de tempo. Foi também estabelecida a relação entre energia e crescimento que os economistas, parecendo acreditar que o dinheiro significa riqueza, teimavam - e teimam! - em ignorar.

Inspirado pelos trabalhos de Joseph Tainter, procurei assinalar no Mundo em Transição os perigos do futuro e alertar para o delicado problema da complexidade das redes e organizações que suportam a nossa civilização. É uma armadilha extremamente perigosa, que poderá provocar danos irreversíveis quando a complexidade, por ser anti-económica, tiver de ser reduzida ou já não puder ser aumentada.

Aludi ao problema demográfico cuja solução aponta para a forçosa necessidade de estabilizar a população. É uma ideia já consensual e que reabilita Malthus, mas se torna paradoxal na medida em que estabilizar a população significa criar dois problemas aparentemente insolúveis: um deles, as assimetrias entre países pobres - altamente prolíferos - e países ricos a definhar em termos de vitalidade; o outro tem a ver com o envelhecimento dos seres humanos incompatível, a prazo, com a vitalidade e o futuro da espécie. O planeamento da fertilidade é algo que ofende as leis da natureza e pode ser, a prazo, a causa da degeneração e extinção do homo sapiens.

Para mim, a parte mais original do Mundo em Transição tem a ver com a condenação desta economia que nos governa e que, por ser predadora e cega relativamente aos danos ambientais, em nada contribui para a solução dos graves problemas civilizacionais que enfrentamos. Antes pelo contrário, só os agrava. O reforço da Globalização - falo da ampliação dos acordos de comércio livre e da parceria do Atlântico Norte – é uma exigência da economia, e a decisão dos políticos de a implementar só se compreende porque a política obedece cegamente à economia, e nada pode fazer contra ela.

A mensagem final, inspirada em Tim Jackson, de que é possível prosperar sem crescimento, baseia-se na recusa em aceitar o colapso. Ela é uma via estreita que não deixa margem para erros e vai obrigar a decisões corajosas e muito inconvenientes. Aliás, só possíveis de tomar quando a sustentabilidade se impuser à economia e fechar todos os caminhos de saída. Então, sobre os escombros do tsunami, que se seguirá ao abalo, poderá surgir a redenção da Luz.


segunda-feira, 7 de julho de 2014

O Sol

A energia total do cosmos já estava presente no momento do big bang. Em última análise, todas as formas de energia são nucleares pois estão relacionadas com as ligações das partículas no núcleo dos átomos. No processo de fusão nuclear, que ocorre nas estrelas, liberta-se uma grande quantidade de energia sob a forma de radiações. Também – é o que ocorre nas centrais nucleares – se liberta energia na cisão nuclear dos átomos de certos elementos chamados isótopos. Todo o processo evolutivo do Universo – desde a formação de estrelas, ao aparecimento dos planetas e à origem da vida – implica trocas de energia. E tudo evolui no sentido do aumento da complexidade: a complexidade organizada que é a vida e a complexidade desorganizada ou o caos que é resultado do aumento contínuo da entropia universal.

Também na Terra, considerada como uma parte do sistema solar, as duas formas básicas de energia disponíveis derivam dos isótopos radioativos – a energia nuclear – ou da fusão nuclear que ocorre no Sol – a energia solar. O Sol é a principal fonte de energia ativa que atua sobre a superfície da terra em particular sobre a biosfera. As outras formas de energia – eólica, carvão, petróleo, etc – derivam dela. E o futuro da Humanidade está dependente da capacidade que a nossa espécie tiver para capturar e aproveitar a seu favor a energia solar.

O carvão e os outros combustíveis fósseis incorporam a energia solar acumulada durante milhões de anos. Foi o Sol que fez desenvolver os organismos que se acumularam e decompuseram nas jazidas de petróleo, que fez crescer as plantas que originaram a turfa e a antracite, e é o Sol que produz os alimentos que sustentam as espécies animais. Quando um dia os homens se confrontarem com a escassez dos combustíveis fósseis terão de procurar no Sol a energia para preservar a sociedade organizada. O futuro da Humanidade estará, como sempre esteve, ligado à energia solar. Quando estiver esgotado o tesouro fóssil terá de voltar a colher-se essa energia no dia-a-dia, como acontecia na pré-era fóssil, mas agora necessariamente em quantidades muito superiores para manter a grande complexidade técnica e social entretanto criada.

A produção de energia elétrica pelo efeito fotovoltaico será a forma privilegiada de a capturar e a rede elétrica será a forma de a distribuir. Vão ter de melhorar-se as formas de a armazenar para que possa ser usada quando for precisa, faça sol ou faça chuva.

Uma sociedade baseada na energia solar será muito diferente da atual baseada nos combustíveis fósseis. O fim do motor de combustão interna terá fortes implicações na agricultura e na mobilidade. O motor elétrico não tem, em rapidez e em potência, a resposta do motor de combustão interna, tão vantajosa para trabalhos pesados ou para movimentar grandes cargas. As grandes obras de engenharia tais como estradas, barragens, ou arranha-céus, ficarão muito condicionadas. Em particular, o sector da aeronáutica sofrerá um grande impacto, pois não existem alternativas energéticas ao jetfuel capazes de propulsionar – de forma conveniente - as aeronaves da atualidade.

Vistas as coisas no plano económico, uma redução da energia disponível provocará um retrocesso civilizacional. Mas as aquisições da ciência, da informática e das comunicações poderão compensar essa perda. Afinal, a Internet permite uma nova forma de mobilidade muito menos consumidora de energia e a realidade virtual poderá levar-nos a todos os lugares sem sair das nossas casas.

Na Era Solar, a economia será forçosamente de outro tipo. Será uma economia de racionalização e de eficiência. Será mais frugal e mais vegetariana, e o consumo deixará de ser o motor do crescimento e do desenvolvimento. Haverá uma rigorosa planificação demográfica e uma grande parcimónia na utilização dos recursos. Os valores da democracia, da liberdade e dos direitos do homem darão lugar uma política nova, onde o coletivo terá primazia sobre o individual. Terá de ser uma sociedade mais igualitária, governada por outros valores e com outros objetivos que não sejam o ter de crescer a todo o custo.