segunda-feira, 14 de abril de 2014

A Crimeia

Os acontecimentos da atualidade noticiosa, quer se trate de conflitos armados, acidentes ou catástrofes naturais, obrigam-nos a olhar para o mapa do mundo. A propósito, recordo o professor de Geografia que tive no velho Liceu Nacional da Guarda, entre nós conhecido pelo Carlos Costa, um dos poucos que não tinha alcunha.  Era um professor da velha guarda, tão exigente quanto competente. Recordo-me  que no início duma aula do velho 5º ano nos disse: Abri o livro na página tal, onde está Congo Belga riscai e escrevei República do Congo, que é assim que se chama a partir de hoje. E sempre que um novo país ascendia à independência, nós emendávamos o livro. No final das chamadas, quando o aluno não satisfazia o interrogatório,  costumava sair-se com uma tirada que ficou célebre no liceu e na cidade: E levanta-se um padeiro à meia noite a cozer pão para um burro destes!.

As suas aulas de geografia eram viagens imaginárias pelas montanhas e vales, seguindo as grandes vias férreas, ou simulando rotas de navios navegando ao longo das costas, subindo rios e estuários, dobrando cabos, contornando penínsulas.  E foi Carlos Costa que, numa aula, nos guiou pelo Mediterrâneo Oriental, através das ilhas do mar Egeu,  em direção ao estreito de Dardanelos que conduz ao mar da Mármara, situado entre a Trácia, a oeste, e o antigo Helesponto dos Romanos, a leste. Juntos, atravessámos, depois, o apertado e celebrado Bósforo para, finalmente, entrarmos no Mar Negro com o adjacente mar de Azzoff por companheiro. E foi nessa viagem quando, pela primeira vez, ouvi falar da península da Crimeia.

O Mar Negro, o Ponto Euxino dos gregos, é um importante mar interior que banha a Bulgária, a Roménia - onde desagua o Danúbio, o maior rio da Europa- , a Moldávia, a Ucrânia, a Rússia, a Geórgia e a Turquia. Além do Danúbio, ainda desaguam  nele o Don e o Deniepr. Tem uma superfície que é cinco vezes a superfície de Portugal Continental. Nas suas margens estão situadas importantes cidades como Odessa na Ucrânia, Sebastopool na Crimeia, para já não falar de Istambul, à entrada do Bósforo,  que com mais de 15 milhões de pessoas é a maior cidade da Europa. Na mitologia Grega, o Mar Negro foi o destino da expedição dos argonautas que foram até à Cólquida (a Geórgia atual) na busca do Velo de Ouro. E, ao longo da história, por aqui passaram muitos povos, aqui se fizeram guerras.  O Mar Negro integra uma vasta região que inclui o Mediterrâneo Oriental, que se estende aos antigos domínios do império Otomano e foi o berço da Civilização Ocidental.  É nesta região, que controla o acesso às cobiçadas reservas energéticas do Golfo Pérsico, onde convergem os interesses estratégicos das novas potências: Estados Unidos, Europa, Rússia e China.

Daí a importância das recentes movimentações na Praça da Independência, em Kiev, que derrubaram o presidente Viktor Yanukovych, e tiveram como consequência a realização de um referendo na Crimeia que de facto transferiu o controlo desta província para a Federação Russa. Esta ocorrência, pelas suas imprevisíveis  consequências,  dominou e continua a dominar as notícias dos meios de comunicação. Os Estado Unidos condenaram a ocupação, os europeus concordaram com os americanos. A China mantém-se silenciosa como é seu costume, a Turquia alinhou com a União Europeia, à qual aspira vir juntar-se.

A questão da Ucrânia é fulcral para o futuro da Europa. O que está verdadeiramente em causa é saber qual vai ser o papel da Rússia e qual vai ser o seu relacionamento com a Europa na nova ordem mundial que está a emergir. Nessa nova ordem, os Estados Unidos vêm na Europa o seu principal aliado. A consolidação da aliança passa pela Nato no plano militar,  e pelo TTIP ( a parceria comercial do Atlântico Norte)  no plano económico. Na estratégia americana, a Rússia, que não pertence à Nato, ficará excluída do TTIP. Ora a Rússia, confina a leste com este novo bloco Ocidental. E a fronteira passa pelo meio da Ucrânia.

A Rússia é o maior país do mundo em território, tem vastíssimos recursos naturais nomeadamente energéticos, entre eles carvão, petróleo e gás natural. Étnica, cultural e religiosamente a Rússia pertence ao Ocidente. Excluir a Rússia das alianças, criadas para formatar e sustentar o Ocidente (Nato e TTIP), é isolá-la e deixar-lhe um entendimento com a China como única porta de saída. Os europeus estão conscientes do facto e dos perigos que ele encerra. Isso fica bem patente na opinião pública: sondagens recentes mostram que os alemães e os franceses estão divididos em relação às posições russas na Crimeia. Já os ingleses, que são o porta voz da América na Europa e o seu cavalo de Tróia, alinham pelas posições americanas. A  opinião dos países da Europa do Sul, pobres e desvalorizados, pouco conta neste jogo de interesses.

Com a rápida ocupação da Crimeia, a Rússia de Putin deu um forte sinal de que pretende ter um papel a desempenhar na zona. A sua principal arma é a energia, e vai usá-la com toda a força. Ele sabe que a Europa não tem alternativa ao gás natural russo.  A importação do gás de xisto americano, sugerida por alguns,  é vista pelos especialistas como uma anedota, e o pipeline para chegar às enormes reservas de gás natural do Irão e do Qatar terá de passar pela Síria. Uma das respostas às sanções económicas dos americanos será uma aproximação da Rússia ao Irão, dois dos maiores produtores mundiais de petróleo. Já se comenta que estes países querem abandonar o dólar como moeda de referência nas transações dessa matéria prima. Para isso, poderão vir a criar um novo padrão para o crude (o Uralis), em paralelo ao WTI americano e ao Brent europeu, em que o preço do barril seria cotado em Euros ou Rublos. Uma tal decisão, a ter sucesso, constituiria um duríssimo golpe para a hegemonia da moeda americana no mercado mundial de petróleo.

Não vai ser fácil resolver a questão ucraniana. A Europa depende energeticamente da Rússia, não tem força militar, está dividida e tem muitos problemas internos para resolver. Os Estados Unidos estão conscientes do risco do seu envolvimento num conflito com a Rússia. O silêncio da China é significativo, e isso não quer dizer que não esteja atenta ao problema. As armas já disparam no leste da Ucrânia, naquilo que poderá ser o prelúdio de uma guerra do Ocidente contra o Ocidente. Pode ter-se aberto a caixa de Pandora na Praça da Independência, em  Kiev.

Sem comentários:

Enviar um comentário