segunda-feira, 5 de maio de 2014

As Sementes da Democracia


Não há machado que corte a raiz ao pensamento,
não há morte para o vento...
Manuel Feire/Carlos Oliveira

Durante os vinte séculos que precederam a Era Cristã, floresceram na parte leste do Mediterrâneo civilizações onde conviveram diferentes povos: os eólios, os jónios, os aqueus e os dórios. Tinham em comum a língua e a religião, e eram providos de um pensamento criativo, fecundo e curioso. A cultura, as obras literárias, artísticas e monumentais que estes povos nos legaram, formam aquilo que ficou conhecido como a Civilização Grega. Terá sido o mais importante contributo para o progresso da Civilização Ocidental, que haveria de estender-se primeiro à Europa, e depois a todo o planeta.

Percorrer a Grécia atual é sentir a emoção do reencontro com essas nossas raízes culturais e civilizacionais. Foi sobretudo na Grécia do período clássico - o famoso século de Pericles -  que o homem se libertou de crenças e preconceitos sociais e religiosos e, pela primeira vez de forma sistemática, se interrogou sobre o mundo que o rodeava. Foi ali, durante esse mesmo período, quando deixaram de existir os condicionalismos psicológicos, educacionais e religiosos que anteriormente aprisionavam a mente humana, que nasceu o conceito de Liberdade tal como hoje o entendemos. Na medida em que questionava até o próprio conhecimento - só sei que nada sei! -, a Filosofia, nascida na Grécia, é a expressão máxima da Liberdade do pensamento humano. A forma de governo que foi adotada em Atenas no início do século V (AD), no período de reconstrução que se seguiu à destruição da cidade provocada pelas Guerras Persas, representa um avanço civilizacional extraordinário. Seria necessário esperar mais de vinte séculos pela Independência Americana e pela Revolução Francesa para se recuperar o princípio de que o poder dos governantes reside na demos e só dela emana.

Como se alcançou tão extraordinário momento é algo que ainda hoje podemos sentir viajando pela Grécia. Favorecidas pela geografia que lhes abria o mar para novas culturas e novas rotas comerciais, pela acidentada orografia que as protegia das invasões e dos ataques inimigos, pela amenidade do clima que convidava à discussão nas ágoras e nos areópagos, as cidades gregas reuniram as condições para a ocorrência da mutação civilizacional que foi o aparecimento da democracia. Nesse processo, a mitologia e a escrita desempenharam um papel importante. A mitologia grega contextualiza uma religião aberta que aproxima os homens dos deuses. Entre uns e outros não se criaram barreiras intransponíveis. O homem podia aspirar a ser um deus, e os deuses sentiam e sofriam como os homens, podiam ser coléricos ou ciumentos, ter arrebatamentos e paixões.

A língua e a escrita dos gregos tiveram uma grande importância na difusão das ideias, na consolidação do seu pensamento e na estruturação das suas crenças. Nos primórdios, em Creta e em Micenas, a escrita grega era pictográfica, fazendo lembrar os hieróglifos egípcios, onde certamente se inspirou. Foi nessa escrita que se gravaram as famosas tábuas de argila descobertas no palácio de Cnossos, em Creta, que o arqueólogo Arthur Evans revelou ao mundo. E o genial Michael Ventris, que as decifrou, demonstrou que elas tinham por base a fonética e a língua grega. Foi nesse período - chamado de período arcaico - que têm raízes as grandes lendas e mitos que lhe estão associados: as lutas de titãs e a criação do mundo, a guerra de Tróia, a Odisseia, Hércules, o Minotauro, Dédalo e Ícaro, os Argonautas e tantos outros.

A Ilíada de Homero - e em certa medida a Odisseia - grafada já na nova escrita baseada no alfabeto dos fenícios, sintetiza a cultura grega e representa para eles a mesma referência de crenças e valores que a Bíblia representa para os judeus. Mas, ao contrário do pensamento judeu que é teocêntrico, nos gregos tudo é humano, e tudo se realiza à escala humana. Isso é bem visível na escultura, onde se exalta o corpo humano dos jovens rapazes nus (os korai) ou das jovens raparigas (as kouroi) discreta e pudicamente vestidas com as suas longas túnicas. Nunca os judeus representaram assim os seus heróis. Na renascença italiana, seria Miguel Ângelo quem haveria de esculpir no mármore, à maneira dos gregos, o jovem David!

Com as suas contradições, as suas guerras, as suas ambições, a sua diversidade, o mundo grego representa um modelo que pode servir para representar o mundo atual. Estudar aquela cultura e os seus caminhos é estimulante, e pode ajudar-nos a compreender o mundo de hoje e antever o seu destino. As dimensões são diferentes, a Ática e o Peloponeso deram lugar aos novos continentes - América e a Ásia à cabeça - e os mares Egeu e Jónico são agora todos os oceanos da terra. Mas, ao contrário do mundo dos gregos que eles imaginavam infinito, o nosso tem as fronteiras à vista. E, em cada dia que passa, tomamos disso dolorosa consciência.

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