segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Havemos de Ir a Viana

Se o meu sangue não me engana
Como engana a fantasia
Havemos de ir a Viana
Ó meu amor de algum dia

...O amor é como o vento,
quem pára perde-lhe o jeito

Pedro Homem de Melo


Agosto é o mês das Romarias, porventura a expressão mais genuína do sentimento português. E o Minho é, por excelência, a terra das Romarias onde os rituais religiosos e pagãos se misturam num caldo de culturas de predominância celta. E quem quiser perceber a força que emana destas festas, que se repetem em cada final de Agosto, deve ir a Viana do Castelo e assistir à exuberância da cor, da música, do traje, e do folclore.

Eu tive o raro e grato privilégio de, no verão passado, ter estado no Alto Minho e ter assistido a uma parte dos festejos da Senhora da Agonia. Eu e a minha mulher, acompanhados de um casal amigo, pernoitámos na mítica aldeia de Afife, em casa dos inexcedivéis anfitriões: Zé Prata e Cina. Afife  é única com a sua localização, a sua vegetação luxuriante, as suas casas subindo a encosta, o famoso Casino Afifense, e a Quinta de Cabanas onde corre um rio de águas cristalinas onde eu ainda pude mergulhar as mãos.

Numa bela manhã de verão já a resvalar para o equinócio outonal, na ermida  de Nossa Senhora das Dores, sobranceira à aldeia, com o peito cheio de ar puro e bêbados de horizonte, exprimimos a gratidão do momento e eu recordei intimamente a exaltação de Albert Camus em Tipasa, inebriado por uma luz e em frente de um mar, em tudo semelhantes a estes: Aqui compreendo aquilo que se chama glória: o direito de amar sem limites.

Nas festas de Viana, o cortejo de sábado arrancou com o a percussão poderosa e ritmada dos bombos que é o som que rebenta os ferrolhos com que trancamos a alma e nos leva rapidamente ao êxtase; depois veio a beleza suave e cativante das mordomas vestidas a rigor no seus trajes tradicionais; meninas, aspirantes a mordomas e já trajando como elas, dão-nos a garantia de que  o ciclo não se fechará; o desfile perde ritmo quando nele se enxerta a religião espartilhante; mas termina em crescendo com alegria contagiante das gaitas de foles, com o desfile dos noivos e com a enchente desordenada das Marias, gente comum  que ali vai apenas movida pelo prazer de participar e desfilar.

Perante este deslumbramento, eu lembrei-me dos pastiches carnavalescos em que jovens, grotescamente vestidas imitando salseiros e sambadores,  exibem, sem graça nem sensualidade, os seus corpos enregelados na frialdade de fevereiro.  Tão longe do sorriso sensual das mordomas, inspiradoras de poetas de prosadores e pintores!

Portugal não terá futuro se impedir que as  raízes culturais mais profundas deixem de alimentar os seus filhos. Se queremos sobreviver como povo, partamos, pois, à redescoberta da seiva com que temos de fazer desabrochar  o nosso orgulho de ser e de nos sentir portugueses.
...Os pecados têm vinte anos,
os remorsos têm oitenta
Pedro Homem de Melo

 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A Constituição

Passados quase 40 anos sobre a aprovação da Constituição que nos rege, e confrontados com as notícias que dão conta da decisão do Tribunal Constitucional de declarar a não constitucionalidade de algumas normas que o Governo pretendia adotar, parece ser este um bom momento de revisitar a nossa Lei Fundamental,  e tecer sobre ela algumas considerações.

Trata-se de um  documento extenso, mal conhecido pelo comum dos cidadãos, que enumera os direitos e deveres dos portugueses e estabelece a organização e as normas de exercício do poder político e económico.  Produzida, votada e aprovada pela Assembleia Constituinte eleita em Abril de 1975, na época que se seguiu ao 25 de Abril, a Constituição da República Portuguesa reflete o ambiente que se vivia em Portugal naquele período, e incorpora aquilo que  viria a designar-se por conquistas de Abril. Num país acabado de sair de um regime colonialista, repressivo, injusto e totalitário, não admira que a Constituição valorize e expresse os aspetos que em tudo contrariavam o antigo modo de governar .

A Constituição da República Portuguesa procura conciliar as duas correntes que, na época da sua aprovação, estavam em confronto: a corrente socialista, que advogava uma via orientada para uma economia planificada e uma democracia centralizada do tipo da que existia nos países então designados por socialistas – afirma a decisão do povo português (...) de abrir caminho para uma sociedade socialista, diz-se no Preâmbulo –, e uma via liberal inspirada na social democracia, claramente defensora de uma economia de mercado do tipo ocidental. A vigilância do Conselho da Revolução, a força expressiva das organizações de poder popular e a pressão dos meios de comunicação, controlados maioritariamente pela esquerda, condicionaram o debate. O resultado final acabou por ser uma constituição que, ao tentar conciliar o inconciliável, se traduziu num documento cheio de contradições: ambígua, excessivamente detalhada, salpicada de doutrina avulsa.

No seu artigo 80º, que se ocupa dos princípios fundamentais da organização económica, diz taxativamente que a organização económico-social assenta no princípio da subordinação do poder económico ao poder político democrático, e esta é, porventura, a sua maior contradição. Porque na realidade – na economia liberal que acabou por se impor, sobretudo após à adesão à EU – o poder económico sobrepõe-se ao poder político, e nada adianta postular o contrário. Em defesa daquele princípio pode até invocar-se uma subtil diferença entre poder económico e poder da economia. Mas o que está em causa é o poder da economia que, em última análise, se identifica com o poder económico.

Em momento algum do texto se faz a defesa explicita da economia de mercado, mas defende-se a livre concorrência e os direitos dos consumidores. No Artigo 80º, alinea d), advoga, sem a impor ou tornar obrigatória, a propriedade pública dos recursos naturais e dos meios de produção, de acordo com o interesse colectivo, mas admite a propriedade privada. Não esclarece, contudo,  se a terra – o nosso maior recurso – é entendido como um recurso natural e, como tal, deve ser, ou não, coisa pública.

O direito ao trabalho é defendido, postulando no artigo 58, 2 alínea a), que compete aos Estado promover a execução de políticas de pleno emprego. Ora, esta é uma  questão delicada que numa economia de mercado tem mais a ver com o desempenho da economia do que com a política. Sabemos hoje – na altura não era tão claro – que política de pleno emprego é sinónimo de crescimento económico. Esta acabou por revelar-se outra grande contradição, pois uma política de pleno emprego pode obrigar o Estado a dirigir investimentos para esse fim, e, desta forma, ter de limitar alguns dos direitos constitucionais considerados inalienáveis.

No titulo III, que se ocupa dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, ao longo de todo o clausurado, entre o artigo 58º ao artigo 79º, só se fala praticamente de direitos e quase não se fala de deveres, os quais são vagamente referidos num sentido lato, ao contrário dos direitos sempre explicitados e detalhados. Direitos que são sempre assegurados pelo Estado. Até a qualidade do ambiente é um direito que compete ao Estado assegurar. E, neste domínio, não se menciona o dever concreto  dos cidadãos de não poluírem o solo, a água ou o ar, do dever de reciclarem os recursos escassos, de economizarem energia ou protegerem a biodiversidade. Cito ainda, como mero exemplo, que o Estado tem de assegurar aos portugueses a liberdade  de aprender e de ensinar, mas nada se diz sobre o elementar  dever de aprender e de ensinar, que são a  base da cidadania e do progresso pessoal e social. A solidariedade e a segurança social são garantidos pelos Estado. Não se deixa espaço para a solidariedade entre pessoas e ignoram-se ostensivamente os princípios universalizados da cultura cristã como o amor ao próximo, a caridade e a compaixão.

Ao Tribunal Constitucional compete fiscalizar, quando isso lhe for solicitado nos termos previstos, a conformidade das leis com a Constituição. Em muitos casos terá de interpretar artigos, terá de escolher opções, resolver conflitos entre normas. E a experiência mostra que o tem feito com as posições dos seus treze juízes repartidas entre essas escolhas, o que revela a subjetividade das normas e  mostra que existe uma  fronteira esbatida entre o que é juízo e inclinação política.

Um dia o Estado não poderá assumir esta pesada carga de assegurar todos os direitos que a Constituição garante aos portugueses. Alguém, ou algum direito, irão ser preteridos em favor de outros. Nesse dia perceberemos que os bem intencionados deputados constituintes, inspirados pelos generosos capitães de Abril, não ofereceram aos portugueses o futuro risonho com que sonharam. As contradições virão ao de cima, vai ter de colocar-se, de novo, a tónica nos deveres, vão ter de procurar-se outros valores.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O Conseguimento

A Presidente da Assembleia da República, que é a segunda figura do Estado, foi amplamente visada nas redes sociais por ter introduzido um neologismo no nosso vocabulário: conseguimento. Na verdade, ela usou a palavra inconseguimento com o vago sinónimo de incapacidade ou frustração. Fê-lo de um modo tão desastrado que o vocábulo passou a tresandar a chacota, evoca-se como anedota, e, de tão mal tratado que foi, dificilmente encontrará espaço para se afirmar no léxico do discurso dos nossos pensadores e muito menos dos nossos políticos. E, no entanto, é um substantivo que merece que lhe seja atribuído um significado, pois para ele não é fácil encontrar um sinónimo.

Conseguimento deriva de conseguir. O efeito de conseguir algo coisa será o conseguimento. Ora tal como de impedir deriva impedimento, de cumprir deriva cumprimento e de sentir deriva sentimento, nada obsta a que de conseguir derive conseguimento.

Conseguir significa obter algo, alcançar um objetivo, uma meta ou uma posição. Mas conseguir não se refere apenas ao momento de alcançar ou obter o que se deseja, pois o conceito inclui o esforço e a ação desenvolvida até atingir o objetivo. Conceito que está próximo do significado de manage to get ou de manage to obtain dos ingleses. Conseguir implica, pois, vontade, diligência persistente e um caminhar sempre orientado na direção ao pretendido, contornando obstáculos, derrubando muros, afirmando valores. Se, por exemplo, o Governo de Portugal conseguir cumprir as metas do deficit  orçamental a  que se propôs – contra tudo e contra todos, contestação social, Tribunal Constitucional, oposição, etc. – estaremos perante algo que é mais que um cumprimento, que é, de facto, um conseguimento.

Precisamos, pois, urgentemente, de um substantivo para traduzir o cumprimento esforçado , continuado, planeado e diligente de um propósito ou de um objetivo difícil de cumprir. Por mais que eu me esforce por encontrar uma palavra que tenha este significado só me ocorre o maldito conseguimento. Claro que eu posso usar o infinito do verbo – o conseguir – e substantizá-lo, mas isso satisfaz-me menos que o substantivo derivado.

O homem é educado para conseguir: conseguir acabar o curso, conseguir um bom emprego, conseguir ter sucesso, conseguir enriquecer. Para uma ave, fazer o ninho, ou para o leão, caçar a presa, não é conseguimento, É comportamento  instintivo, é natural, não exige planeamento e é o que se espera desses animais. Mas pode sê-lo para o homem que constrói a sua casa ou cria uma empresa. Afinal, o progresso é o resultado de sucessivos conseguimentos que fizeram a Civilização Humana.

Os animais transmitem aos seus descendentes o conhecimento que lhes permite sobreviver. Nós, humanos inteligentes, transportamos o passado para o futuro. Carregamos o conhecimento e os bens que acumulamos. Deixamos aos nossos filhos o conhecimento mas também as coisa que acumulámos, para o bem e para o mal: as cidades, as armas, as bombas, as desigualdades, o dinheiro, as dividas. E deixamos-lhe as leis as regras que fizemos para nós mas que esperamos eles cumpram e respeitem. Afinal, deixamos-lhes tudo aquilo que conseguimos, e pedimos-lhe que consigam mais.

O conseguimento e a urgência de conseguir cada vez mais coisas, está a enredar-nos na complexidade, obriga-nos a gerir o futuro e rouba-nos o presente que é onde reside a felicidade. Conseguiremos encontrá-la?

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A Guerra Económica

As sanções que, a propósito da situação no leste da Ucrânia e após o abate do avião da Malaysian Airlines, os Estados Unidos e a União Europeia decretaram contra a Rússia são o exemplo de uma nova forma de guerra que utiliza uma nova arma: a guerra económica. É a globalização e a dependência entre países que permite utilizar este novo tipo de armas e as torna eficazes. A guerra económica é uma guerra suave; não implica derramamento de sangue, não é formalmente declarada, nem sequer implica a rotura de relações diplomáticas entre os beligerantes. Os estrategas desta nova guerra não são militares, são economistas apoiados nas mentes brilhantes que estudam e aplicam a teoria dos jogos.

 Tal como acontece na guerra clássica, uma guerra económica pretende enfraquecer o inimigo, visa afetar a sua economia, reduzir ou eliminar o o crescimento, procura atingir sectores vitais e estratégicos. O objetivo é provocar a escassez de bens, fomentar o desemprego e com isso favorecer a contestação e a agitação social, visando, como última consequência, criar problemas ao poder estabelecido e eventualmente provocar o seu derrube.

Porque o sistema global é interativo e interdepedente, numa guerra deste tipo o agressor também perde, ou seja, o efeito das sanções económicas afeta também quem as decreta. Se os objetivos do agressor não forem plenamente conseguidos este acaba por ser um jogo de soma negativa em que todos perdem. Só nações ou grupos de nações economicamente fortes podem utilizar esta arma, considerando que os danos causados ao país mais fraco são, para ele, proporcionalmente muito mais gravosos do que os sofridos pelos agressores.

A crise da Ucrânia, que levou o Ocidente a decidir implementar estas medidas sem precedentes contra a Rússia, mostra quanto está em jogo neste conflito. A Ucrânia, futuramente integrada no bloco “ocidental”, isola a Rússia e cria, a leste, um escudo de proteção para a Alemanha, reforçando o conceito da parceria Atlântica, que está a ser negociada entre a Europa e os Estados Unidos e cuja concretização é o almejado resultado final desta guerra. Tal parceria só faz sentido se assentar num eixo EUA-Alemanha, enfraquecendo a ameaça - para muitos natural- de um eventual reforço da ligação da Alemanha com a Rússia.

A Alemanha será, aliás, o país que mais vai perder com esta guerra económica. A Rússia é um grande cliente e um grande fornecedor da Alemanha, e uma esperada quebra nas transações bilaterais pode aumentar o desemprego em algumas centenas de milhares de trabalhadores alemães. Se os fornecimentos de gás natural vierem a ser afetados, então as consequências para a economia alemã poderão ser ainda mais gravosas.

O sector energético russo também vai ser impactado, pois um dos objetivos das sanções agora decretadas visam o seu sector petrolífero. A Rússia, o maior produtor mundial, precisa da tecnologia ocidental para manter a sua produção de crude e para desenvolver novas explorações no Ártico. Uma quebra de produção de petróleo na Rússia terá como resultado um aumento do preço da matéria-prima e pode contribuir para uma recessão económica  generalizada, que não interessa a ninguém. Outra consequência desta guerra pode ser o reforço de um bloco russo-chinês com incidência no sector energético. E pode também resultar, como efeito colateral, um enfraquecimento da América como banqueiro do mundo. Aliás a Rússia já deu sinais de procurar alternativas ao Banco Mundial e de criar outra referência para o preço do petróleo em alternativa ao dólar. Para isso terá de contar com os países emergentes - em particular a China -, e com o apoio de outros países produtores de petróleo, nomeadamente do Irão.

Tal com há 100 anos, as tensões acumulam-se entre as novas potências. Há 100 anos o conflito que as libertou, mudou o mapa da Europa. Estaremos agora a alimentar um conflito que irá alterar o mapa do mundo?