segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A Constituição

Passados quase 40 anos sobre a aprovação da Constituição que nos rege, e confrontados com as notícias que dão conta da decisão do Tribunal Constitucional de declarar a não constitucionalidade de algumas normas que o Governo pretendia adotar, parece ser este um bom momento de revisitar a nossa Lei Fundamental,  e tecer sobre ela algumas considerações.

Trata-se de um  documento extenso, mal conhecido pelo comum dos cidadãos, que enumera os direitos e deveres dos portugueses e estabelece a organização e as normas de exercício do poder político e económico.  Produzida, votada e aprovada pela Assembleia Constituinte eleita em Abril de 1975, na época que se seguiu ao 25 de Abril, a Constituição da República Portuguesa reflete o ambiente que se vivia em Portugal naquele período, e incorpora aquilo que  viria a designar-se por conquistas de Abril. Num país acabado de sair de um regime colonialista, repressivo, injusto e totalitário, não admira que a Constituição valorize e expresse os aspetos que em tudo contrariavam o antigo modo de governar .

A Constituição da República Portuguesa procura conciliar as duas correntes que, na época da sua aprovação, estavam em confronto: a corrente socialista, que advogava uma via orientada para uma economia planificada e uma democracia centralizada do tipo da que existia nos países então designados por socialistas – afirma a decisão do povo português (...) de abrir caminho para uma sociedade socialista, diz-se no Preâmbulo –, e uma via liberal inspirada na social democracia, claramente defensora de uma economia de mercado do tipo ocidental. A vigilância do Conselho da Revolução, a força expressiva das organizações de poder popular e a pressão dos meios de comunicação, controlados maioritariamente pela esquerda, condicionaram o debate. O resultado final acabou por ser uma constituição que, ao tentar conciliar o inconciliável, se traduziu num documento cheio de contradições: ambígua, excessivamente detalhada, salpicada de doutrina avulsa.

No seu artigo 80º, que se ocupa dos princípios fundamentais da organização económica, diz taxativamente que a organização económico-social assenta no princípio da subordinação do poder económico ao poder político democrático, e esta é, porventura, a sua maior contradição. Porque na realidade – na economia liberal que acabou por se impor, sobretudo após à adesão à EU – o poder económico sobrepõe-se ao poder político, e nada adianta postular o contrário. Em defesa daquele princípio pode até invocar-se uma subtil diferença entre poder económico e poder da economia. Mas o que está em causa é o poder da economia que, em última análise, se identifica com o poder económico.

Em momento algum do texto se faz a defesa explicita da economia de mercado, mas defende-se a livre concorrência e os direitos dos consumidores. No Artigo 80º, alinea d), advoga, sem a impor ou tornar obrigatória, a propriedade pública dos recursos naturais e dos meios de produção, de acordo com o interesse colectivo, mas admite a propriedade privada. Não esclarece, contudo,  se a terra – o nosso maior recurso – é entendido como um recurso natural e, como tal, deve ser, ou não, coisa pública.

O direito ao trabalho é defendido, postulando no artigo 58, 2 alínea a), que compete aos Estado promover a execução de políticas de pleno emprego. Ora, esta é uma  questão delicada que numa economia de mercado tem mais a ver com o desempenho da economia do que com a política. Sabemos hoje – na altura não era tão claro – que política de pleno emprego é sinónimo de crescimento económico. Esta acabou por revelar-se outra grande contradição, pois uma política de pleno emprego pode obrigar o Estado a dirigir investimentos para esse fim, e, desta forma, ter de limitar alguns dos direitos constitucionais considerados inalienáveis.

No titulo III, que se ocupa dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, ao longo de todo o clausurado, entre o artigo 58º ao artigo 79º, só se fala praticamente de direitos e quase não se fala de deveres, os quais são vagamente referidos num sentido lato, ao contrário dos direitos sempre explicitados e detalhados. Direitos que são sempre assegurados pelo Estado. Até a qualidade do ambiente é um direito que compete ao Estado assegurar. E, neste domínio, não se menciona o dever concreto  dos cidadãos de não poluírem o solo, a água ou o ar, do dever de reciclarem os recursos escassos, de economizarem energia ou protegerem a biodiversidade. Cito ainda, como mero exemplo, que o Estado tem de assegurar aos portugueses a liberdade  de aprender e de ensinar, mas nada se diz sobre o elementar  dever de aprender e de ensinar, que são a  base da cidadania e do progresso pessoal e social. A solidariedade e a segurança social são garantidos pelos Estado. Não se deixa espaço para a solidariedade entre pessoas e ignoram-se ostensivamente os princípios universalizados da cultura cristã como o amor ao próximo, a caridade e a compaixão.

Ao Tribunal Constitucional compete fiscalizar, quando isso lhe for solicitado nos termos previstos, a conformidade das leis com a Constituição. Em muitos casos terá de interpretar artigos, terá de escolher opções, resolver conflitos entre normas. E a experiência mostra que o tem feito com as posições dos seus treze juízes repartidas entre essas escolhas, o que revela a subjetividade das normas e  mostra que existe uma  fronteira esbatida entre o que é juízo e inclinação política.

Um dia o Estado não poderá assumir esta pesada carga de assegurar todos os direitos que a Constituição garante aos portugueses. Alguém, ou algum direito, irão ser preteridos em favor de outros. Nesse dia perceberemos que os bem intencionados deputados constituintes, inspirados pelos generosos capitães de Abril, não ofereceram aos portugueses o futuro risonho com que sonharam. As contradições virão ao de cima, vai ter de colocar-se, de novo, a tónica nos deveres, vão ter de procurar-se outros valores.

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