segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Eça de Queirós

Já passaram 114 anos sobre a morte do grande romancista e a obra que nos deixou continua a atrair a atenção de leitores, literatos e outros estudiosos. Ainda hoje, os seus livros são reeditados e, os mais representativos, adaptados ao teatro e ao cinema. As personagens dos seus romances - que sugerem uma tipologia social – fazem parte da nossa história e da nossa cultura. Pensamentos, apreciações e comentários, retirados dos seus escritos, são frequentemente citados e circulam na net, plenos de atualidade por encaixarem a preceito nos protagonistas e nas situações da nossa vida política e social. De onde vem a força desta escrita e a atualidade deste escritor?

Eça foi, acima de tudo, um atento e perspicaz observador de Portugal e do mundo. Da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX deixou-nos, enquanto romancista, um retrato cru e fiel. Dos conflitos e dos meandros da política mundial deixou-nos, enquanto jornalista, análises minuciosas e vaticínios acertados. A sua infância ficou marcada pela ausência de uma família que lhe deu o nome, mas lhe negou o aconchego do lar. O carinho tê-lo-á ele encontrado na ama que o amamentou em Vila do Conde e nos avós paternos que, perto de Aveiro, o acolheram e educaram na meninice. Ao contrário da mãe, fria e ausente, a figura e a personalidade do pai acompanhou-o e influenciou-o pela vida fora. A singularidade do seu nascimento fez dele um outsider e deu- lhe a autonomia afetiva que lhe conferiu distanciamento e independência crítica. A ironia, em que Eça revela argúcia e inteligência, foi a marca desse distanciamento.

O lustro de Coimbra foi o tempo de aprendizagem e de gestação, estimulada pelo fermento da cultura francesa e pelo contacto com amigos, dos quais se destacou Antero de Quental, que exerceu nele uma forte impressão. Lisboa, onde viveu durante algum tempo depois de terminado o curso, foi a descoberta da grande cidade, o contacto com a política e com a sociedade. Em Évora, como diretor e único redator do Distrito de Évora foi destilando o seu jeito para a crítica e apurando a mão para a escrita. A viagem ao Egipto, onde assistiu à inauguração do Canal de Suez, e o deslumbramento da Terra Santa abriram-lhe a primeira janela para o mundo e marcaram-no para sempre.

Leiria, onde desempenhou o cargo de administrador do distrito, foi o palco do seu primeiro romance. No Crime do Padre Amaro, o livro que ele trazia no ventre, ousa pôr em pratica o realismo como escola literária e abordar os temas tabú da religião e do sexo. O estilo da prosa, que irá apurar nos romances subsequentes, evidencia já o arrojo da inovação tão bem caraterizado por Ernesto Guerra da Cal, o autor galego que mais profundamente estudou a sua linguagem e o seu estilo. Já nessa primeira obra se mostra a prosa criativa em que os adjetivos geradores de contrastes, conferindo tonalidades e melodia à narrativa, parecem desempenhar o papel da luz nos quadros dos pintores impressionistas.

A primeira experiência consular foi em Cuba, a partir daí não deixaria nunca mais de ser um expatriado, primeiro em Inglaterra e depois em França. Nunca fez amigos estrangeiros, pois o seu campo de observação estava em Portugal e o universo da sua ficção foi sempre português. Três romances, laboriosamente escritos e dolorosamente revistos, sempre na busca da perfeição, constituem o esqueleto da sua obra: O Crime do Padre Amaro, a explosão e a vitalidade da juventude; O Primo Basílio, o grande ensaio de estudo e caracterização de personagens e apuramento do estilo; Os Maias que são a sua obra prima, longamente pensada e amadurecida. Nestes três romances não existem heróis, apenas pessoas, enredadas nos seus defeitos e atormentadas nas suas dúvidas. Amélia d'O Crime do Padre Amaro e Luísa d'O Primo Basílio são os personagens centrais da ação, motivadas pelo fogo da paixão a pela força do enleio amoroso. N'Os Maias a arquitetura da narrativa ganha outra dimensão: a figura central é Afonso da Maia, o patriarca da família, onde, como num quadro, converge o ponto de fuga de toda a trama. Não será por coincidência que todas estas figuras centrais dos seus romances, incapazes de resolver ou superar as paixões - casos de Amélia e de Luísa - ou abandonar as convicções - caso de Afonso da Maia -, morrem no final dos romances.

Eça foi um eterno insatisfeito, parecia hesitar entre o que era e o que gostaria de ter sido. As suas opções pessoais, raramente afirmadas na primeira pessoa, oscilavam entre o espírito progressista do Cenáculo na juventude e o pendor conservador dos Vencidos da Vida, na idade madura. A sua personalidade parece flutuar entre o laicismo e a religião, entre a república e a monarquia, entre a cultura e a aristocracia, entre a vida familiar e a vida social, entre a tradição e a civilização. Fradique Mendes é o seu alter-ego, um contraponto paradoxal de si próprio que, tal como os espelhos das feiras, refletem as imagens invertidas e deformadas.

Morreu em Paris, aos 55 anos, no primeiro ano do século XX. Se não tivesse morrido tão novo, podemos imaginar como teriam sido os anos da sua velhice, depois de regressado a Portugal. Os seus últimos escritos sugerem-nos um Eça a viver em Tormes, à semelhança dos retiros de Herculano ou Lev Tolstoi, rendido à natureza, inspirado pela vida dos santos e procurando as coisas simples da vida.

Eça libertou-se do tempo e foi um visionário. Foi um artista que deu um novo fôlego à língua portuguesa. Para muitos, depois de Camões, ele foi o nosso maior escritor de todos os tempos.


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