segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Carta de Natal


No dia de Natal, durante o alvoroço dos presentes, entre as minhas prendas, nada mais do que a biografia de Marcelo Rebelo de Sousa, do jornalista Vitor Matos, que já vai na quarta edição. Por sorte, eu já tinha recebido, oferecido pelo editor, o livro "Sampaio da Nóvoa, Evidentemente a Liberdade" de Fernando Madaíl. E,assim, posso agora ajuizar melhor sobre os candidatos antes de tomar a minha decisão, pois tenho a convicção de que um deles será o próximo presidente da República. Acredito que as chances favorecem Marcelo que, logo na primeira volta, terá mais votos do que  Cavaco teve há 5 anos atrás, e de que  Sampaio da Nóvoa não irá superar a votação de Manuel Alegre nas anteriores eleições. Se assim for, de nada valerá o meu voto. Mas convém não desvalorizar o poder do voto democrático e lá irei eu cumprir  o dever cívico - agora com mais comodidade, depois que a Junta de Freguesia do Lumiar trouxe as urnas para a escola que fica junto à nossa porta. Porém, estou com muitas dúvidas. Marcelo Rebelo de Sousa, acho-o inteligente de mais para ser verdadeiro - o aforismo é de Pessoa -, constrói esquemas mentais tão elaborados que não tardará a perder-se e a contradizer-se a si próprio; Sampaio da Nóvoa está ainda muito verde, parece enredado na euforia da maioria de esquerda e ainda não percebeu as contradições - a ideia foi expressa por Cavaco - entre a economia e a ideologia. A candidata Marisa Matias apresenta-se com ares de atriz de telenovela, sem ideias políticas e parece assentar-lhe bem a referência do VPV relativamente a Catarina Martins quando se referiu ao sucesso do BE como a vitória da insignificância; o ex-padre Edgar Silva do PCP não traz para a campanha ideias próprias, nem precisa, pois Cunhal já tinha dito tudo o que havia para dizer - e tão disse-o tão bem que o discurso dele, reciclado, ainda hoje arrasta muita gente. O irreverente estatístico Paulo Morais - que eu conheço de ginjeira! - dispara para tudo o que é sítio, na sua ânsia de protagonismo pessoal. Henrique Neto, acredita que é dono da verdade, é uma reedição requentada de Nobre e será apenas um candidato na primeira pessoa. Restam mais dois ou três que não ficarão para a história. E - já me esquecia! -  ainda temos Maria de Belém a quem, sinceramente, ainda não ouvi uma ideia com princípio meio e fim - e que aparece na corrida para subtrair ao Marcelo os votos de alguns católicos e moderados do centro ou da esquerda que não se reveem nos outros candidatos. É assim que as coisas andam por Lisboa, onde o governo de esquerda, no gozo da graça dos seus primeiros 100 dias, promete um tempo novo, sem austeridade, e até já fala em retoma, em crescimento, e convida os jovens emigrados a regressar - a ver vamos! Agora andam todos indignados com a falência do Banif - à procura dos buracos por onde se esfumou o dinheiro -  e com a defesa do Estado Social - alguns não sabem bem do que falam!- após a morte de um jovem que, por ser fim de semana, não foi tratado como devia no Hospital de S. José. Nas vésperas de Natal, estivemos na Baixa para ver o espetáculo de luz, apoiado pela CML e pela Coca-Cola, que passava no Terreiro do Paço. Em dois ou três anos, animada pela vaga de turistas, a Baixa mudou - parece a reedição da movida que em tempos ocorreu em Madrid -, há esplanadas sem fim na Rua Augusta e no Terreiro do Paço e o pastel de belém já tem um concorrente de peso: o pastel de bacalhau. Ando a ler um livro sobre o Eça, com histórias pouco conhecidas do escritor trazidas pelo especialista  Campos de Matos; e comecei a ler um livro muito interessante sobre a vida de Alexandre Herculano - que mal conheço e que é uma personagem cativante - que viveu no segundo e terceiro quartéis do século XIX, numa época que também conheço mal. Com votos de Bom Ano. LQ

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O Lado Escuro do Universo


O século XX abriu-nos portas para uma nova compreensão do Universo. Sabemos hoje que o nosso planeta não passa de um pequeníssimo ponto azul - a expressão é de Carl Sagan - perdido nos confins de uma galáxia, a Via Láctea, que está, ela própria, perdida nos confins de um Universo cujas dimensões e natureza se apresentam ainda difusas. Nomes como Edwin Hubble - que identificou  miríades de novas galáxias -  e Albert Einstein - que relacionou o espaço e tempo - aportaram contribuições decisivas para nos ajudar a compreender o Universo. É espantoso o avanço ocorrido neste domínio, considerando que há até apenas quatro séculos - até Galileu Galilei -  ainda se considerava a Terra como estando no centro do Universo.

E as novas descobertas não param de nos surpreender. Para explicar a coerência do movimento de rotação das galáxias foi necessário admitir a existência de uma partícula vastamente espalhada no espaço e com características diferentes das da matéria conhecida. Trata-se daquilo que foi designado dark matter que aparece, em português, traduzido algumas vezes por matéria escura outras vezes por matéria negra. Essa nova matéria não interage com a matéria visível não emite luz mas tem gravidade o que faz com que deflita a luz que nos chega de galáxias distantes. Esse facto faz com que as aglomerações de matéria negra, ao curvar a trajetória da luz,  funcionem com lentes gravíticas que permitem assinalar a sua presença e fazer o seu mapeamento no universo.

A descoberta da continua expansão do universo foi outra das descobertas das primeiras décadas do Século XX. As galáxias estão a afastar-se uma das outras , isto é, o universo expande-se em todas as direções. Isso mesmo foi demonstrado porque esse afastamento produz um fenómeno designado por redshift - desvio da luz para o vermelho - que faz com que o comprimento de onda da luz emitida por essas galáxias se apresente desviado para a zona vermelha do espectro. Inicialmente pensava-se - era essa a lógica do Big Bang, a explosão inicial que originou o Universo - que essa expansão estaria a reduzir-se e que chegaria um momento em que ela terminaria e, a partir desse momento, o Universo se passaria a contrair. Mas a conclusão das observações científicas foi a oposta: o Universo não só está a expandir-se como essa expansão está a acelerar. Para explicar este fenómeno foi necessário introduzir o conceito de black energy, a energia escura também conhecida por energia cinzenta.

De acordo com as conclusões dos astrónomos, da massa total do Universo 20% são de matéria escura e 75% são de energia cinzenta o que deixa apenas 5% para a matéria visível aquela que nos é  familiar. São muita e enormes as implicações destas descobertas. Sabemos que nada é estável e que tudo está relacionado. O lado escuro do universo faz também parte de nós, teve e terá tido um papel decisivo na criação da vida e na evolução dos seres vivos. Fazendo um analogia com o se humano, a matéria visível é como o nosso consciente, a matéria invisível é o nosso inconsciente.

Temos a sensação de que estamos perto de encontrar a teoria de tudo, a fórmula que unificará as forcas electromagnética, gravítica e nucleares. Mas quando isso acontecer não teremos ainda todas as respostas. A explicação do como nunca será suficiente para aqueles que procuram a justificação do porquê. Seguramente. continuaremos  à procura do alfa e do ómega que são o princípio e o fim de tudo.

Mas não vale a pena desesperar. Procuremos as respostas possíveis e essas só podem ser dadas pela intuição ou pela fé, cuja origem está no inconsciente, o nosso lado escuro. Tal como diz um amigo meu: Não temos outro destino que não seja sermos. Simplesmente. Os poetas sabem-no, ou intuem-no.  Bom Natal 

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A Voz dos Sábios e o Futuro

Sobre o futuro da Humanidade são muitas as interrogações e muitos os foruns - foi o caso de um recente encontro de personalidades na Fundação Champalimaud - onde esse futuro se debate. A velocidade das mudanças, consequência do rápido desenvolvimento científico e tecnológico e do reforço da globalização, alterou - e está a modificar - o nosso modo de viver. Mudanças que nuns estão a provocar desorientação - onde é que este progresso nos vai levar? - e noutros a dar lugar à incerteza - será que estamos a seguir no caminho certo?

A grande maioria das pessoas vê nos avanços científicos e tecnológicos a evidência de que o engenho do homem tudo pode, e de que ele será capaz de vencer os desafios do futuro. Acredita que, como resultado desses avanços, as coisas só podem melhorar no futuro. Com os surpreendentes progressos nas ciências médicas estaremos muito perto de aumentar a longevidade até aos 120 anos. Num futuro próximo, será possível fundir seres humanos com robots e poder-se-á fazer o backup do cérebro humano num computador e reativá-lo mais tarde. Um dia, o homem irá viajar no espaço e colonizará outros planetas. É a concretização do velho sonho da imortalidade do ser humano que, creem muitos, vai ser possível realizar-se. Como resultado destas conquistas e desta crença, Deus foi relegado para segundo plano. O homem parece acreditar que a divindade está ao seu alcance...

Num curto espaço de tempo, à escala cósmica, a espécie humana - a única dotada de inteligência!– deu saltos evolutivos espetaculares. Tudo começou com a linguagem; depois, foi a escrita e a imprensa e, já no nosso tempo, a internet. Com a linguagem nasceu a organização social. Com a escrita, criaram-se ferramentas: o estilete, a argila mole, a tinta e o papiro. Com a imprensa, nasceu a comunicação de massas, surgiu a tipografia, o panfleto e o livro. A internet é suportada por uma panóplia de novas ferramentas: a rede elétrica, a rede de comunicações, os computadores, os smartphones. Com os registos escritos e os registos digitais podemos acumular o conhecimento adquirido em cada geração, preservá-lo, e transmiti-lo para as gerações seguintes. Estamos perante capacidades adquiridas pela espécie, que as integra, e que passam a fazer parte do seu processo evolutivo no sentido que lhe deu Charles Darwin.

Ora, estes saltos estão associados a um aumento da complexidade das ferramentas e a uma crescente dependência do seu uso. Particularmente com a internet, a complexidade assenta numa sofisticada base tecnológica e energética - falamos dos suportes, da eletricidade e das ondas hertzianas que transportam os sinais digitais. E o processo de inovação continua e parece não ter fim à vista. Avizinha-se a época da internet das coisas, esperam-se grandes avanços da ciência na computação, nas comunicações, na saúde, na eficiência energética e na produção alimentar.

Vivemos um tempo de limites, numa encruzilhada evolutiva. O homem é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do sentido evolutivo. Nesta situação, não pode haver lugar para erros, pois, os erros pagam-se caros. Preocupamo-nos com a longevidade dos indivíduos e, em termos evolutivos, o que interessa é a longevidade da espécie. Ao longo da história da vida na terra muitas espécies se extinguiram. As causas dessas extinções tiveram a ver com o desaparecimento ou escassez do seu recurso principal, ou com o aparecimento de novos predadores, mas tiveram também a ver com a excessiva especialização que reduz a sua capacidade de adaptação. Quando, como resultado do processo evolutivo, uma espécie adquire uma nova capacidade, já não existe caminho de retrocesso, isto é, a natureza não aceita a desevolução. Essa é a nossa principal vulnerabilidade, e o maior risco que enfrentamos como espécie - apenas uma entre tantas! - é o de entrar num cul-de-sac evolutivo.

No programa Prós e Contras da semana passada os sábios convidados pela Fundação Champalimaud - António Damásio, Fernando Henrique Cardoso, Manuel Castells, Jorge Sampaio e Leonor Beleza - vieram falar destas coisas. Realçaram a divergência entre caminhos da ciência - caminhos de esperança - e os caminhos da política e da economia - caminhos de descredibilidade e de desencanto. Damásio, o mais incisivo entre eles, falou da inteligência artificial e da possibilidade, no futuro, de ser possível fundir homens com robots, logo acrescentando que as máquinas não têm consciência e, por isso, não sentem nem o prazer nem a dor, sentimento que é apanágio dos seres vivos. Que não existe ética sem prazer, sem sofrimento e sem dor. E concluiu que só podemos melhorar o estado do mundo, depois de o compreender. Aqui, acrescento eu: para compreender o mundo temos de perceber o nosso destino, e a isso a ciência nunca dará resposta. Estamos muito longe de o alcançar, se é que algum dia o conseguiremos.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Alterações Climáticas

A Conferência das Nações Unidas sobre as alterações climáticas, que esta semana reúne em Paris representantes de quase todos os países do planeta, ocorre pela vigésima primeira vez desde a Cimeira da Terra, realizada no Rio de Janeiro em 1992. Na sessão inaugural, estiveram em Paris os líderes dos principais países do planeta, o que mostra a importância atribuída a esta questão. Na verdade, o problema das alterações climáticas já não pode ser ignorado, nem relegado para segundo plano, tal o impacto que pode vir a ter sobre o nosso próximo futuro coletivo. Mas, estamos muito longe de encontrar soluções e reunir consensos.

No essencial, estamos perante um dilema. Se continuamos a lançar para a atmosfera gases com efeito de estufa a sua temperatura média vai aumentar, e as consequências, possivelmente irreversíveis, daí decorrentes - extinção de espécies, subida do nível dos oceanos, ocorrência de fenómenos climáticos extremos, escassez de água potável, prejuízos na agricultura, deslocações de populações - terão fortes impactos na economia. Mas, se deixarmos de fazer essas emissões vamos pôr em causa o crescimento, e com isso agravar o desemprego, criando condições para o ressurgimento de uma nova e severa crise económica que todos querem evitar.

As alterações climáticas provocadas pela atividade humana são, já hoje, um fenómeno de indiscutível evidência. Elas surgem como consequência direta ou indireta do uso dos combustíveis fósseis, que se iniciou com a Revolução Industrial no início do século XIX e se acelerou durante o século XX, sobretudo, após o final da Segunda Guerra Mundial. Energia, economia e alterações climáticas estão correlacionadas. Existe a convicção amplamente difundida de que a mitigação do aquecimento global estará na adoção generalizada de formas não poluentes de produção de energia. Isso tem vindo a ser feito com recurso à energia nuclear, à energia hídrica, à energia eólica e à energia solar. Estas duas últimas formas têm vindo a ganhar importância na geração de energia elétrica, e são promissoras. Mas, elas ainda não fizeram infletir, a nível mundial, a tendência sempre crescente do aumento do consumo da energia fóssil. É certo que nos países da OCDE já se verifica a estagnação ou até a uma diminuição desse consumo. Porém, isso está a ser conseguido por virtude de uma desaceleração do crescimento económico, e pela deslocalização de muitas indústrias poluentes para fora daquele espaço geográfico.

Sinceramente, não vejo saída para o dilema. A consciência da gravidade do problema já é importante, mas, só por si, isso não chega. Não será a consciência das alterações climáticas que reduzirá o consumo de combustíveis fósseis; mas, sim, a sua escassez. Grandes zonas do planeta - nomeadamente a Índia, a China e o Paquistão - estão longe de atingir os consumos energéticos per capita dos países ocidentais. O petróleo, pela sua importância na mobilidade será o mais sensível. Quando a China atingir a capitação no consumo de petróleo da Coreia do Sul ou do Japão, será necessário extrair, a nível mundial, mais 30% de crude para responder ao excesso de procura.

Em 1997, os objetivos de Kyoto em reduzir as emissões de CO2 falharam. Em 2009, a conferência de Copenhaga ficou longe dos seus propósitos. Em 2015, os delegados à Conferência de Paris pretendem limitar a 2º Celsius o aumento médio da temperatura global até 2100. O sucesso desta Conferência só será avaliado daqui a algumas dezenas de anos. Possivelmente, tarde demais.


segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Impressões de uma Viagem pela Europa

Os franceses da região de Lille parecem ignorar que há cem anos, muito perto dali, nas linhas das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, se jogava o futuro da Europa e do Mundo. Aparentam um ar grave e triste. Parecem felizes nas superfícies comerciais a transportar carrinhos de mão, abarrotados de compras, e nos restaurantes aquecidos devorando suculentos pratos de carne: filets, côtelettes, rotis e cassoulets.

Atravessa-se a França de carro e as cidades ficam-nos ao lado: Rouen, Amiens, Le Mans, Tours, Angoulême ... As auto estradas são canais assépticos que só revelam a monotonia da paisagem e camuflam a atividade humana. Eu ainda conheci a outra França, das pequenas aldeias balzaquianas, das mobillettes e das pessoas levando na mão as longas baguettes de pão.

Para o viajante ou o turista de hoje o digital domina tudo. Já não precisamos de mapas nem de guias. Com um smartphone e as facilidades do roaming estamos conectados com o mundo inteiro.

Na noite da meseta, o céu volta a ganhar a dimensão e o mistério que a luz elétrica e o néon das cidades lhe roubou há muito. Até a Lua grande, que já a começou a minguar, não consegue esconder o esplendor da bela constelação de Orion. E o esbranquiçado dos aglomerados da Via Láctea deixa voar a nossa imaginação para o infinito, e remete-nos à nossa insignificância.

Na judiaria de Hervas, tento compreender o drama provocado pelo Édito de Expulsão promulgado pelos Reis Católicos. Muitos judeus foram dali empurrados e vieram povoar as terras da raia portuguesa: Belmonte, Trancoso e Castelo Rodrigo. Imagino que alguma daquelas casas teria sido ocupada por um dos meus antepassados de Mata de Lobos. A Inquisição é, ainda hoje, algo que escapa ao meu entendimento.

Nas primeiras horas após o nascer do Sol, a Estremadura espanhola tem uma beleza estonteante: milhafres e águias elevam-se no ar, impulsionadas pelas correntes ascendentes do ar que o Sol começa a aquecer. A terra, esbranquiçada pela geada, reflete a luz solar e brilha como um espelho. A vista espraia-se por um horizonte sem fim com farrapos de neblina alongando-se sobre os vales.

Já depois de Cáceres, na berma da estrada jaz uma coruja das torres que, imagino, não terá escapado a tempo do choque com um carro a alta velocidade. É um animal que tinha um significado muito especial para as populações rurais. Chamavam-lhe rasga mortalhas, porque o seu grito agourento faz lembrar o ruído rouco do rasgar de um tecido.

Em Estremoz, havia feira Gastronómica de Caça e Pesca. Com ar de sofreguidão, as famílias aglomeravam-se à espera de lugar na entrada dos restaurantes que serviam migas e outras especiarias. Ficavam indiferentes ao trabalho do Eduardo, um taxidermista que na sua banca exibia patos, perdizes, pombos, estorninhos malhados e tordos. Confessou-nos que trabalhava aquela arte, com amor, desde os onze anos de idade. E nós logo ali imaginámos a coruja das torres conservada pelo Eduardo para ficar como recordação desta memorável viagem pela Europa.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Os Genes e as Circunstâncias

Foi uma lição magistral que, no passado dia 19 de Novembro, o professor Manuel Sobrinho Simões veio proferir ao Grémio Literário na sessão de abertura do novo ciclo de conferências sob o tema: Que Portugal queremos ser, que Portugal vamos ter. Manuel Sobrinho Simões é um médico, um cientista e um professor que expõe as suas ideias de um modo informal, e com a simplicidade que carateriza os verdadeiros homens de ciência.

O nosso território, começou por dizer, faz parte da área ocupada durante mais tempo pelo homem de Neandertal, onde permaneceu num longo período que vai desde há 300,000 até à sua extinção, há 15,000 anos. Terá mesmo havido aqui cruzamentos entre o homo neandertal com o homo sapiens. Após o final da última glaciação, ocorrido há 17,000 anos, o norte da Europa, voltou a tornar-se habitável e foi repovoado por povos oriundos do sul da Europa - da península Ibérica, da península Itálica e dos Balcãs - e do norte de África. Nessa altura haveria uma grande homogeneidade genética no continente europeu. Mas desde há 700 anos, a Europa central, uma zona de passagem, passou a ter uma grande disseminação genética, ao passo que no periférico e isolado ocidente da península Ibérica foram os imigrantes que trouxeram novos genes. Por isso, não espanta que 3% dos nossos genes provenham de povos subsarianos e 2% de ameríndios. Genes que foram introduzidos, curiosamente, por via feminina, a mostrar que as famílias aceitavam melhor a incorporação social das mulheres mestiças trazidas pelos imigrantes do que a dos homens.

Mas, os genes são o passado e não são tudo, há que ter em conta as circunstâncias. E para ilustrar isto mesmo, citou os estudos do brasileiro Sérgio Pena que mostraram que apenas no tempo de três gerações, tribos de índios caçadores passaram a ser agricultores, com as transformações físicas que essa mudança implicou. E não é verdade que os genes não mudaram e nós estamos a ficar mais gordos? Tal como o passado, o nosso futuro terá a ver com os genes, mas terá muito mais a ver com as circunstâncias: o sítio onde vivemos, a nossa educação e com a nossa cultura. Aquilo que hoje somos resulta da nossa periferia. Somos os mais periféricos da Europa. Temos um país acidentado, fomos insuficientemente romanizados, somos um país de minifúndio. Tivemos a escravatura até muito tarde e desvalorizámos o trabalho - sedimentou-se a ideia de que só trabalha quem não sabe fazer mais nada. A Inquisição deixou marcas profundas e terríveis. Com a Inquisição destruímos o valor do conhecimento e aumentámos a desconfiança entre portugueses.

No 25 de Abril éramos ainda um país de analfabetos. Nos últimos 40 anos evoluímos muito. Aumentámos a nossa auto estima, é certo, mas isso aconteceu num período de tempo muito curto. Em 1974, a nossa literacia era equivalente à da Suécia em 1830.Não criámos novas elites e conservámos muitos dos estigmas antigos. A resposta que damos ao minifúndio é familiar ou corporativa - somos todos primos uns dos outros.

Temos muito pouca tradição de avaliação e sem avaliação é muito difícil melhorar. Também não temos tradição de recompensa/castigo porque nos refugiamos na tribo ou no clube. Porém, para vencer o minifúndio e o individualismo temos de reforçar as instituições. Nós somos péssimos em termos de nos associarmos em volta de um objetivo, de fazer as perguntas certas. Isto tem incapacitado a sociedade, que se revela incapaz de fazer reformas. Não temos sido capazes de reformar a justiça ou a administração interna, nem capazes de reformar a universidade e o ensino superior. Com excessivo número de faculdades e cursos - uma vergonha! -, ou a tentativa de misturar o ensino técnico com a universidade - um disparate! - não reforçamos o valor institucional, mas reforçamos o valor individual. A fuga de uma geração qualificada de jovens é, em última análise, o resultado da ausência ou da fraqueza das nossas instituições.

Quando abordou o problema da saúde foi para dizer que estamos a ficar muito velhos. Estamos a curar o cancro e as doenças cardiovasculares e respiratórias. As pessoas vivem mais tempo mas ficam com problemas neuro-cognitivos, e a precisar de apoio que não temos condições para lhes dar. Isto poderia ser uma boa oportunidade de criar empregos em pequenas unidades de cuidados paliativos. Mas só pensamos em criar emprego em coisas grandes; somos megalómanos.

Na Europa, com o consumismo, o crédito barato, as rendas, desvalorizamos o trabalho e estamos a acabar com as profissões exigentes. A propósito, referiu que, nos dias de hoje, nenhum inglês esperto escolhe ser médico! As profissões são a coisa mais importante para um país se manter saudável. Em Portugal, vamos ter de depender mais da evolução da Europa do que de nós próprios. Temos limitações geográficas, económicas e muita dependência externa. Acima de tudo, temos de apostar no conhecimento, superar os grandes defeitos educacionais, melhorar a nossa capacidade de understanding, isto é, não aprender superficialmente, mas conhecer com profundidade a razão de ser das coisas e o que está por debaixo (under).

Esta palestra trouxe-me uma outra à memória, proferida pelo jovem Antero de Quental, há quase 150 anos, quando nas Conferências do Casino elencou as causas da decadência dos povos peninsulares no século XVI: 1) O catolicismo saído do Concílio de Trento, dogmático e limitador das liberdades, 2) O absolutismo que anulou o antigo poder local, fomentou intrigas e produziu ociosidade; 3) A expansão resultante das descobertas e das conquistas que trouxe riqueza, mas não gerou indústrias nem desenvolvimento.

Sobrinho Simões confessou que se considera pessimista na análise mas otimista na ação. Lança uma nova luz e uma nova esperança. Na minha leitura, a luz está na Europa e a esperança na Educação.


segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Direitos e deveres

Na Europa medieval, no plano social, os direitos e os deveres das pessoas estavam sobretudo consignados na prática religiosa. A religião cristã - e creio que o mesmo se passa no islamismo - é, na sua essência, uma religião de deveres. Deveres não só para com Deus, mas também para com o próximo. Na sua pregação, Jesus Cristo não incitou os seus seguidores a reivindicar direitos, mas pregou a virtude, a caridade e o amor do próximo como deveres a praticar. Os Dez Mandamentos e as Obras de Misericórdia são disposições de deveres.

Nessa época, os Estados não concediam direitos nem asseguravam qualquer tipo de assistência às pessoas. Direitos sociais não se invocavam nem se reivindicavam. O apoio na doença ou nas provações resultava da prática da caridade que era vista como um dever pelo homem religioso ou pelo humanista. As Misericórdias, as ordens mendicantes e hospitaleiras organizaram-se para regular os direitos e os deveres, ou seja, para distribuir a caridade pela necessidade. Em épocas mais recentes - na esteira das ideias da Revolução Francesa e das convulsões sociais pós Revolução Industrial -, surgiram centros cívicos, associações de benemerência e associações mutualistas com o mesmo papel.

No plano assistencial, o Estado moderno substituiu-se a tudo isso. Os cidadãos dispõem hoje de direitos consignados nas leis - falo da educação, da assistência, etc.. As sociedades modernas marcadas pelo consumismo e pela abundância energética são sociedades de direitos. Todos queremos partilhar das benesses dessa abundância. Estou a falar do Estado Social.

Mas as organizações de pendor religioso e as posteriores organizações cívicas e de pensadores livres impunham - e proclamavam! - deveres que o Estado hoje não impõe nem proclama. Na verdade, os únicos deveres que o Estado hoje nos impõe é o de não infringir as leis - um dever passivo -, e o de pagar impostos. Reivindicar direitos é a palavra de ordem na política e está generalizada em muitas outras organizações. Assegurados os elementares direitos à liberdade e à livre de expressão da opinião, conquistaram-se o direito à reforma, à assistência na doença, na velhice e no desemprego. Reivindicam-se novos direitos para as crianças, para os mais velhos, para os doentes, para os menos capazes, para as mulheres. Os políticos, nos seus discursos, sabem que a promessa de mais direitos conquista mais votos do que proclamar a exigência de deveres. Por isso, não espanta que na nossa lei fundamental a palavra direito apareça 149 vezes e a palavra dever apareça apenas 11. No plural, direitos surge 116 vezes e deveres 41.

Na nossa sociedade, na nossa educação, às vezes até nas relações profissionais e familiares, está a perder-se o velho sentido do dever. E, o que é mais grave, estão a desaparecer os sistemas de valores subjacentes ao sentido do dever. Ora, uma sociedade que assegura aos seus elementos o direito de aprender e não exige o dever de ensinar, que assegura o direito a respirar ar puro e a beber água despoluída, mas não exige o dever de não poluir, que assegura o direito a usufruir a coisa pública, mas não exige o dever de a preservar, essa sociedade, repito, está condenada ao fracasso.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Pensar o Mundo, Pensar a Europa, Pensar Portugal.


Pensar portugal

Olhando para o mundo que nos rodeia, vemos um mundo cada vez mais global – suportado por uma economia exigindo um crescimento contínuo e exponencial. Por outro lado, vemos um planeta finito, esgotado e poluído, que impõe limites ao crescimento. A necessidade de conciliar estes duas realidades é o maior desafio que, num futuro próximo, se colocará à Humanidade...A economia de mercado está suportada por um sistema financeiro que vive do crédito, ou seja, que é alimentada pela expectativa de criação de riqueza no futuro. O crescimento, por permitir pagar as dívidas, é condição necessária à própria existência da economia de mercado. Sem crescimento, ou com um crescimento reduzido, a dívida deixa de poder ser paga, e o sistema entra em colapso. Vimos acontecer isso em 2008.

A resposta natural da economia de mercado para manter o crescimento é dada pelo reforço da globalização. Acessoriamente, pelo aumento da eficiência na utilização dos recursos, e pela ilusão de que tecnologia pode resolver todos os problemas... Ora, a prazo, a economia ficará sem respostas para manter o crescimento. A globalização tem os seus males: uniformiza gostos, impõe produtos transgénicos, tende a eliminar a biodiversidade, destrói o pequeno comércio e a pequena indústria. O aumento da eficiência vai confrontar-se com o paradoxo de Jevons que postula que o aumento da eficiência no consumo de um recurso acaba por aumentar o consumo desse mesmo recurso. E a ilusão tecnológica  – chamo-lhe ilusão porque a tecnologia, tal como os catalisadores na química, não influencia o resultado final, só acelera o processo – aumenta a complexidade dos sistemas, torna-se mais cara de manter, e, mais tarde ou mais cedo, acaba por ter retornos nulos ou negativos. Além disso, o acréscimo de complexidade tem a agravante de aumentar a probabilidade de ocorrência de cisnes negros, acontecimentos com fraca probabilidade de ocorrência mas de grande impacto (Nassim Taleb).

Pensar a Europa e Portugal na Europa

As mudanças estruturais da economia portuguesa provocadas pela nossa entrada na Europa são irreversíveis. A agricultura tradicional foi reduzida ao mínimo – há quem ache que com sucesso – para se ajustar aos princípios da Política Agrícola Comum (PAC); o tecido industrial praticamente desapareceu pela lógica do mercado aberto e pela abolição do protecionismo; os barcos pesqueiros foram abatidos. Portugal foi transformado num país de eucaliptos e de turismo. Sobreviveram os serviços que não exigem grandes investimentos e um frágil cluster tecnológico, reconhecido além fronteiras, a demonstrar a qualidade da nossa massa cinzenta e a nossa criatividade. Qualquer reflexão tem de levar em conta esta realidade.

Foi a Europa que desenhou este país tal como ele é hoje, e isto foi feito no interesse e na lógica da Europa. Por isso, Portugal não pode ser, agora, abandonado à sua sorte. E parece que está a ser. Portugal, na Europa, não pode nem deve ser um parceiro menor. Apesar da sua dimensão económica, ele é uma peça do puzzle que é este espaço com o qual partilha uma moeda e uma estratégia. Para ter voz, Portugal necessita de ter a autoridade que vem do rigor, da disciplina e do trabalho. A Europa, enquanto espaço económico integrado, não pode falhar. Se a Europa falhar, nós falharemos também.

Mas a  Europa não tem gente, não tem indústria não tem energia.  Tem a cultura, mas de que lhe vale a cultura?  O simples custo de a preservar pode ser demasiado elevado. Tem um serviço social sem paralelo no mundo, mas que, sabe, não poderá manter. Está empenhada em reduzir a poluição, em aumentar a eficiência energética,  e aposta nas energias renováveis.  Mas nesta cruzada, a Europa faz o papel do cavaleiro da triste figura, esgrimindo com lanças contra moinhos de vento, quando a Coreia do Norte aponta armas nucleares ao Ocidente, e a China polui em quatro meses o que a Europa, esforçadamente, deixa de poluir  em 10 anos! Mas o maior perigo para a Europa são as hostes de famélicos que se perfilam e espreitam nas suas fronteiras preparados para abocanhar a presa, ou o que dela restar, ao mais pequeno descuido.

A Europa já não lidera o Mundo, mas quem o lidera? A América, afogada nas sua responsabilidades de guardião da ordem global, que tem de manter um exército longe do seu território, e faz lembrar o decadente  Império Romano dos séculos e III e IV? A China que carrega o peso de uma civilização milenar, e tem de gerir as contradições  entre a sua cultura e o modelo económico que o Ocidente lhe impôs? A Rússia que perdeu o seu tempo e o seu espaço, e que hesita entre aliar-se à China ou à Europa? Todos estes protagonistas sabem que a resposta ainda não é definitiva, mas todos eles pressentem que o futuro do mundo se joga no Médio Oriente,  no eixo que vai de Israel  ao Paquistão.

Pensar Portugal

Na nossa vida pessoal, mas também na existência coletiva dos povos, é sempre bom, de vez em quando, parar por um momento para olhar à nossa volta e refletir sobre o caminho que trilhamos. E, se necessário, arrepiar esse caminho e escolher outro. Em Portugal, entendo eu, estamos agora a sentir essa necessidade. É um tempo propício para avaliar o presente, pensar o futuro e colocar interrogações. Como é que chegámos a esta crise? Como é que vamos sair dela? Poderemos ir mais longe, e questionar a nossa identidade, o nosso lugar no Mundo e o nosso destino coletivo. A verdade é que Portugal não está bem. Vamos, pois, olhar para este país como se de um “doente” se tratasse, fazer o diagnóstico, arriscar o prognóstico e receitar o tratamento. Depois escolher o caminho da cura, e enfrentar com ânimo, e sem vacilar, a tarefa de o percorrer.

O diagnóstico

Como referi no ponto inicial, esta crise mundial é, na minha opinião, a consequência da incapacidade de sustentar, de forma continuada, a taxa de crescimento que o atual modelo económico mundial exige para se manter. A globalização, que é um produto do capitalismo global inspirado nas doutrinas de liberalismo económico, criou o enquadramento organizativo que se impôs no pós guerra, e vigorou nos últimos 65 anos. Até aqui funcionou bem, pois permitiu um crescimento elevado do PIB mundial, destronou as experiências das economias “socialistas”, centralizadas e planeadas, permitiu inúmeras façanhas tecnológicas e descobertas científicas admiráveis. Foi a causa do forte acréscimo da população mundial, proporcionou a uma grande parte dessa população elevados níveis de conforto e bem-estar, permitiu construir e consolidar o “Estado Social e Democrático” que conhecemos e apreciamos na Europa.

A globalização, ao favorecer esse crescimento exponencial da população e da produção, criou uma enorme pressão de procura sobre os recursos naturais: terra arável, água potável, matérias-primas, produtos alimentares e energéticos. Mas, porque esses recursos são finitos, a partir dos anos 90, o mundo começou a pressentir a sua escassez, e a economia passou a confrontar-se com essa realidade. Fatores como o despertar da China e da Índia, com uma grande avidez de matérias-primas para suportar o seu acelerado crescimento, só serviram para aumentar essa pressão de procura e evidenciar o risco de ruturas no abastecimento. Ora, de todos os recursos em risco de escassez, o petróleo é o mais sensível pelos efeitos diretos que produz na economia e, por não existir alternativa que o substitua, nomeadamente na mobilidade.

Associadas a este quadro de escassez de recursos, não podemos ignorar as alterações climáticas provocadas pelo Homem, as suas previsíveis e alarmantes consequências, mas que são desvalorizadas ou consideradas como um problema de menos importância pelos agentes económicos. Todavia, os seus efeitos são percebidos como sendo longínquos e difusos, ao contrário da crise financeira, que sendo o sintoma e não a doença, está muito mais próxima de nós e afeta as decisões económicas do nosso dia-a-dia. Crise financeira que é tão valorizada face à míngua do crédito, que chega a ser considerada a causa da atual recessão económica e não uma sua consequência.

O prognóstico

Embora estejamos, no que à crise diz respeito, perante uma pandemia, e não sendo Portugal um caso isolado, é sobre o nosso país que incide este prognóstico. É que a perspetiva de evolução futura do nosso país é muito sombria.

Apesar da ilusão de abundância que o conjuntural baixo preço do petróleo provoca, não tenhamos ilusões: a energia abundante e barata está a chegar ao fim, e embora as soluções energéticas alternativas sejam boas, são caras e insuficientes. O aumento da eficiência energética leva apenas a um maior consumo global da energia. A retoma é uma ilusão, e o buraco da dívida afunda-se com mais dívida. O “deficit” das contas públicas vai custar muito a reduzir, a divida vai crescer, e com ela as dificuldades de a pagar.

As obras públicas e o investimento público e privado vão afrouxar. O consumo vai reduzir-se e, com isso, os serviços que o suportam, tais como a grande distribuição, a publicidade e o marketing. O turismo flutuará ao sabor da conjuntura, mas, tendencialmente, irá contrair-se; o desemprego no sector, que é fortemente empregador, vai aumentar. A mobilidade vai reduzir-se, os combustíveis, a prazo, vão aumentar de preço e o automóvel vai ficar mais difícil de manter. E mais grave que tudo isso, o Estado Social, que foi criado pela prosperidade do pós-guerra, não poderá manter-se nos moldes atuais.

Começa a generalizar-se a crença de que alguém há-de vir para nos salvar! A consciência da gravidade da situação, sem solução à vista, ameaça conduzir-nos ao desespero. Portugal está mais pobre, sem estratégia, e muitos perguntam: o que fazer?

A receita

“Para grandes males, grandes remédios”, diz o ditado popular, e que se aplica ao nosso caso. Em primeiro lugar, aconselharia os governantes a falar verdade aos portugueses. Ao falar verdade, as pessoas começam a preparar-se para o pior e aceitam melhor a adversidade. Explicar o que está mal, e por que está mal. Explicitar a nossa dependência alimentar e energética, explicar o pico do petróleo, a insustentabilidade do Estado Social.

Como tratamento de continuidade, receitaria o ELP, sigla de Economizar, Localizar, Produzir. Com esta receita, bem aplicada, vamos voltar a cultivar os nossos campos, a reativar a pequena indústria e comércio local, a diminuir a nossa dependência do exterior, e com isso reganhar a independência que estamos a perder. Claro que tem de existir a clarividência necessária para contrariar a desertificação do nosso interior rural, o que exige medidas ousadas sobre o regime da propriedade da terra. Na verdade, o problema do envelhecimento e da não reposição da nossa população ativa é o mais grave que enfrentamos.

Mas acima de tudo há que mudar a atitude das pessoas. Temos de ser mais exigentes com nós próprios. Os portugueses precisam de trabalhar mais e melhor, com mais empenhamento, mais rigor e menos corrupção. Reduzir as gorduras da administração central e local, desconfiar dos subsídios fáceis, orientar a educação para o rigor, mas também para a cidadania. Optar por uma alimentação mais saudável, mais amiga do ambiente, que produza corpos mais sãos e menos obesos– como eu já ouvi alguém dizer, temos de satisfazer o estômago e não a boca. Reduzir fortemente a mobilidade, abandonar a cultura do automóvel particular e da televisão alienante. Desenvolver o orgulho de ser português e de pertença à Comunidade.

Insisto na prioridade da educação: quando a globalização tiver esgotado o espaço de crescimento, quando os recursos tiverem de ser racionados e forem impostos limites às emissões poluentes, vai ser necessário mudar a educação pois a que temos hoje - desenhada com outros pressupostos -  de pouco nos servirá. Vamos precisar de mais cidadania e de menos matemática; vamos ter de voltar a utilizar mais as mãos e de aprender a reciclar; vamos ter de redescobrir a medicina antiga, baseada em produtos naturais; vamos ter de aprender que a verdade nem sempre é aquilo que a televisão nos diz. Acima de tudo, vamos ter de atribuir à educação o seu papel essencial de ensinar a descobrir. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Educação

O envolvimento que, através dos projetos da Fundação Vox Populi, tive nos últimos anos  com o nosso sistema de ensino, permitiu-me ter dele um melhor e mais direto conhecimento. Esse facto tem despertado a minha atenção para este sector. Com o decorrer do tempo, vou consolidando a convicção de que, para assegurarmos um futuro de prosperidade aos nossos jovens, devemos-nos focalizar sobretudo no tema Educação. São duas as questões com que temos de nos confrontar: como educar e para quê? E, para elas, urge encontrar as respostas.

A educação e o sistema de ensino ensino que a suporta, aquela nos seus propósitos e este na sua organização, são sempre pensados no pressuposto que o mundo não muda. Educamos as nossas crianças para a realidade presente e não para a realidade futura, que é aquela em que elas irão viver. Ora, tendo em conta que tudo está a mudar muito depressa, existe um grande risco de que, o mundo - pensado à imagem do mundo de hoje - para o qual educámos os nossos jovens, seja muito diferente do mundo em que eles irão viver. Desse,  já hoje notório,  desajustamento decorrem muitas das angústias, das incertezas e da desorientação que grassa nos jovens.

A minha geração - que é a geração nascida nos anos do pós guerra - viveu numa época de grande abundância e de grande crescimento. Foi uma época marcada por transformações económicas e sociais, na qual muitas pessoas de classes mais baixas ascenderam às novas elites que nesse período de euforia consumista e tecnológica se formaram. Essas novas elites resultaram e  refletiram  o sucesso económico das grandes empresas, o poder dos novos media,  a importância do desporto e do entretenimento.  A principal condição para ascender às novas elites foi a educação que funcionou como um elevador social. Nesta época, embalados pela euforia do crescimento, e acreditando que ele continuaria indefinidamente, educámos os jovens para a competição e para o sucesso:  sucesso nas empresas, sucesso  na política, sucesso desportivo e sucesso académico.

A crise de 2008 trouxe-nos para uma encruzilhada. O crescimento atenuou-se. A revolução digital anuncia extraordinárias mudanças na nossa forma de viver. Vamos interiorizando a ideia de que quando o crescimento estagnar muita coisa terá de mudar. Nasce a consciência das incertezas e dos riscos do futuro, relacionada com a sustentabilidade da economia e dos recursos. Para muitos, começa a consolidar-se a crença que o  mundo do futuro será mais rural, mais frugal,  que a alimentação será mais vegetariana e que haverá menos mobilidade.

Quando a globalização tiver esgotado o espaço de crescimento, quando os recursos tiverem de ser racionados e forem impostos limites às emissões poluentes, vai ser necessário mudar a educação pois a que temos hoje - desenhada com outros pressupostos -  de pouco nos servirá. Vamos precisar de mais cidadania e de menos matemática; vamos ter de voltar a utilizar mais as mãos e de aprender a reciclar; vamos ter de redescobrir a medicina antiga, baseada em produtos naturais; vamos ter de aprender que a verdade nem sempre é aquilo que a televisão nos diz. Vamos, acima de tudo, ter de atribuir à educação o seu papel essencial de ensinar a descobrir. 

O homem novo que a nova educação terá de produzir é o Homem da Transição. Não pode ser o homo economicus mas tem de ser um homem consciente dos limites do planeta, vivendo em harmonia com a natureza, preocupado com a humanidade como um todo. Tem de ter a humildade que resulta da consciência da sua insignificância cósmica. E tem de encontrar o equilíbrio necessário entre o material e o espiritual. Só assim encontrará a prosperidade e a felicidade, afinal duas palavras com o mesmo significado

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Oráculo

Confesso que gostava de saber prever o futuro. E desse modo poder surpreender-me com a antevisão onírica dos amanhãs que cantam. Surpresa sim, porque os últimos anos fizeram de mim um pessimista. Não totalmente desesperançado, é certo, mas muito cético. Olho à minha volta e vejo tantos escolhos no caminho da espécie que as probabilidades de um fracasso civilizacional me parecem muito grandes e parece-me muito pequena a esperança de continuar a haver prosperidade na sociedade dos humanos. Vejo a Europa sem recursos, sem energia, sem gente,- sobretudo sem gente! -, adormecida e obesa em resultado do sucesso consumista dos últimos 60 anos, cada vez mais enredada na burocracia de uma construção labiríntica. E vejo o meu país também ele envelhecido e acomodado, sem alma nem rumo, nem sonhos de quinto império.

Vejo os recursos do planeta esgotarem-se paulatinamente; vejo a poluição  tornar o ar irrespirável, contaminar as nascentes e envenenar os alimentos que comemos; vejo o planeta ameaçando revoltar-se para repor os equilíbrios que estão a ser destruídos pelo homem. Como saída para este estado de coisas, a economia - o monstro que nos governa! - apenas sugere uma fuga em frente. Para o implacável crescimento, aponta apenas o caminho do reforço da globalização. No nosso ocidente, (a Europa e a América),  a dívida sufoca os países mais pobres, o famigerado crescimento - que todos anseiam e prometem e ninguém contesta!-, tarda em aparecer. Indignada, a classe média conta os tostões das reformas, vê a vida a andar para trás e vê os filhos e netos partir em frente á procura de emprego, em remotos destinos...

Desacreditada está a social democracia que nos prometeu o paraíso e que agora corta salários e pensões. No espectro político, o centro esvazia-se, as posições extremam-se. Revivem-se os tempos de frentismo, a lembrar os anos 30 do século passado, tempos esses que  não foram prenúncio de coisa boa. As fronteiras da Europa, onde há espaço e dinheiro, são a porta do eldorado para as gentes dos pobres e massacrados países que ainda há meia dúzia de anos faziam revoluções e anunciavam  a democracia ao virar da esquina.

Eu gostava de prever o futuro... Perceber como se vai desatar este nó de produzir cada menos e querer gastar cada vez mais; saber que destino espera os sitiantes da Europa quando as fronteiras  se fecharem - porque se irão fechar! ; que caminho vão escolher  os britânicos quando votarem a saída ou a permanência na União Europeia - num país em que ser de esquerda é ser patriota, prevejo que o voto será pela saída. Gostava de saber se os catalães vão ou não separar-se do Reino de Espanha, enfim, saber como vai terminar o conflito da Síria onde americanos, russos, iranianos e tudo o resto, dançam à volta de uma fogueira armadilhada.

Afinal, pessimista confesso, eu até teria muitas boas razões para ser  otimista. Devia estar feliz porque em Portugal há mais telemóveis do que pessoas, porque posso sintonizar quase duas centenas de canais de televisão, por já ter o último modelo do Iphone, por estar a chegar ao nosso país a netflix americana, por ver o Marcelo já com um pé na presidência da república, por ver finalmente uma maioria de esquerda a governar Portugal e a austeridade a ter os dias contados.

Eu gostava de prever o futuro para saber se se vai reconstruir uma aldeia - com um templo e uma escola - no sopé dos Himalaias para albergar os meninos do Campo Esperança, em Kathmandu. Gostava, sobretudo, de saber como vai ser a minha aldeia dentro de 20 anos, depois de morrer o último habitante.


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Viajando pelo Centro e Norte

Em viagem pelo país - segunda-feira na Lousã, terça-feira em Braga - para acompanhar o germinar de sementes lançadas em projetos  Nepso (A Nossa Escola Pesquisa a Sua Opinião) da Fundação Vox Populi,  realizados em anos letivos transatos. Professores e alunos levam a investigação a sério e surpreendem as suas comunidades com ideias e propostas de ação baseadas nas conclusões dos estudos por eles realizados.

Na Lousã, os alunos da professora Berta Bem-Haja foram, na segunda feira passada, apresentar aos vereadores da Autarquia local, o trabalho do Nepso, realizado no ano letivo transato. E para representar a Fundação Vox Populi, eu e a Paula, convidados pela autarquia, não podíamos deixar de estar presentes. Aliás o tema do trabalho, pela sua importância e atualidade,  era convidativo: A Alimentação Saudável.

O objetivo do trabalho consistiu em comparar as crenças dos encarregado de educação, no que respeita à alimentação, com as suas atitudes e com a prática efetiva no dia a dia. Não espanta, por isso, que a quasi totalidade dos encarregados de educação considerem que uma refeição deve ter uma sopa mas só 30%  a incluam assiduamente nas refeições. E muitas outras foram as conclusões de um inquérito de 80 perguntas fechadas, feito em papel, por auto preenchimento, e conduzido  junto de uma expressiva  (e muito significativa! ) amostra de 580 encarregados de educação.

O trabalho foi apresentado pelo Francisco, pela Ema, pela Laura e pela Mariana, os jovens alunos que realizaram o trabalho -  quando frequentavam a  turma C do 9º ano, e  agora já a frequentar o 10º ano. Os vereadores presentes, a começar pelo Presidente da Câmara, mostraram surpresa pela qualidade do trabalho realizado, que muito elogiaram, declarando o interesse da autarquia em apoiar o plano de ação proposto pelos alunos.

Na hora do almoço foi um agradável convívio com os alunos, com o vereador da educação Helder Bruno e com a Professora Berta, onde mais uma vez ficou patente o papel da professora, o entusiasmo destes jovens e o interesse da autarquia em o apoiar estas iniciativas.

Da Lousã, continuámos para Braga onde fomos assistir, no dia seguinte,  à tomada de posse dos membros dos órgãos sociais de uma recém criada associação antibullying que nasceu pela mão do professor Paulo Costa. Tudo começou pela participação, já há alguns anos, no Nepso, deste professor com os seus alunos  com um projeto em que o tema escolhido foi o bullying.

A determinação do professor coordenador não deixou cair o trabalho feito, que os alunos prosseguiram de várias formas - através de conferências, colóquios, sensibilização dos media. etc, - e que culminou, passados alguns anos, com a constituição da associação juvenil que conta com o envolvimento de toda a comunidade e até da autarquia. Ideia que já está a ser replicada noutras localidades.

É gratificante ver os frutos do trabalho realizado. Estes exemplos são um forte estímulo para prosseguir a caminhada iniciada há seis anos.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Esquerda, Direita e a Quadratura do Círculo

O conceito de esquerda, centro e direita, para designar o posicionamento político dos partidos, parece remontar à assembleia legislativa que se reuniu em França nos anos que se seguiram à revolução de 1789. Na sua aceção inicial tinha a ver com a posição que os deputados dos diferentes grupos ocupavam na sala dos debates. Foram tempos conturbados, inspirados pelas ideias que tinham estado na origem da independência americana. Tempos que haviam de abrir caminho à modernidade e à democracia.

Atualmente, nas democracias ocidentais, esquerda e direita agregam eleitores e suportam grupos políticos - os partidos - que divergem entre si nos planos político, económico, social, cultural e laboral. Ser de direita é ser conservador; ser de esquerda é ser progressista; a direita privilegia a estabilidade e a ordem; a esquerda privilegia o movimento e a mudança. Historicamente a direita era monárquica e a esquerda republicana; a direita era religiosa, tradicionalista e rural, ao passo que a esquerda era agnóstica, progressista e urbana. A direita é associada aos patrões e empregadores e a esquerda aos empregados e assalariados. De alguma forma, a direita está associada à preservação do poder pelas elites que o detêm. A esquerda congrega os aspirantes a substituir as elites no poder.

No tempo da Revolução Francesa, a esquerda era predominantemente constituída pela burguesia e pelo baixo clero que se opunham ao poder e aos privilégios da nobreza e do alto clero. O século XIX e a Revolução Industrial trouxeram as ideias marxistas teorizadas à volta da dialética entre o capital - detentor dos meios de produção - e do trabalho do proletariado. Com a vitória da revolução bolchevique na Rússia czarista, em 1917, Lenine levou à prática estas ideias. Foi adotada uma nova economia - a economia socialista - em que o Estado era o detentor da propriedade da terra e dos meios de produção; a produção era planificada e não estava sujeita à concorrência baseada na lei da oferta e da procura.

No Ocidente, durante uma grande parte do século XX, a direita confundiu-se com o capitalismo e os valores da tradição cristã, e a esquerda com os princípios do marxismo-leninismo e a economia socialista. Foi o tempo da guerra fria. No período do pós guerra, o contributo de novos fatores de produção - a tecnologia e a energia - deram origem a um forte surto de desenvolvimento que criou nos países ocidentais uma ampla classe média. Foi com o apoio dessa classe media que vingou a social democracia, uma forma mais suavizada de capitalismo, que visava corrigir pela via fiscal as desigualdades sociais e promover o desenvolvimento do estado social nas áreas da saúde, da educação, e da proteção na velhice, no desemprego, nas situações de incapacidade e de pobreza.

A crise de 2008 - afinal uma profunda crise do capitalismo! - com o acentuar das desigualdades sociais, o aumento do desemprego e os cortes nas pensões, nos salários e nos benefícios do Estado Social ameaçou a classe média. Isso criou uma generalizada reação de indignação contra essa política. Muitos passaram a acreditar que só a esquerda poderia preservar o sistema e as regalias que a social democracia - numa alternância pendular do poder entre o centro e a direita – tinha criado, mas não conseguia manter. Essa indignação fez nascer uma nova esquerda que, de alguma forma, se aproxima do conceito de direita naquilo que historicamente a caracterizava, isto é, a defesa dos privilégios adquiridos e a manutenção da ordem e da estabilidade.

A classe proletária há muito definhou na Europa. A nova esquerda não discute a propriedade privada, e já ultrapassou a discussão centrada na dicotomia capital-trabalho. As ideias de Marx e de Lenine estão obsoletas e já não arrastam multidões. A indignação - traduzida numa revolta contra a austeridade e aquilo que ela implica - é, em si mesma, a grande bandeira da esquerda. Vimos isso na Espanha, na Grécia, e, embora em menor escala, também em Portugal. Esquerda que, numa expressão mais radical, chega mesmo a afirmar-se de anti capitalista, mas receando advogar a falhada economia socialista. Não existem referências, nem heróis, nem casos de sucesso que sirvam de exemplo para este movimento. Com o anunciado fim da Cuba de Fídel de Castro - vencida pela globalização - acabou a última referência do socialismo como nós o entendíamos na nossa juventude. Até o pobre Alex Tsipras, convertido à direita - algo que tínhamos visto no Brasil com Lula da Silva -, já não conta como referência.

Na minha juventude, ser de esquerda era acreditar naquilo que nós chamávamos a construção do homem novo. Era acreditar numa sociedade mais solidária, mais justa e mais igualitária. Na minha opinião, os novos caminhos da esquerda - entendida como a ideia de movimento e mudança - só podem ser os caminhos da Transição e da Esperança. Com todas as profundas transformações que essa opção implica. Parece que ainda estamos muito longe disso. Até lá, viveremos num labirinto, de crise em crise e de governo em governo, como que a tentar resolver o problema da quadratura do círculo.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Desenvolvimento e Luz

Por ocasião do aniversário da Asta, fui convidado a falar na Cabreira sobre o tema "Desenvolvimento e Luz". O texto que se segue resume o essencial da minha apresentação.

Na natureza, tudo flui, nada é permanente.  No Universo, nada é estático. Essa foi uma lição que aprendemos no longo caminho do percurso da civilização. Lição que veio contrariar as verdades sobre a criação,  absolutas e definitivas do Génesis e dos mitos das religiões antigas. A ordem que nos foi oferecida pela mitologia e pela Bíblia está  hoje generalizadamente contestada . E nada está definitivamente arrumado. As verdades de hoje serão negadas pelas verdades de amanhã.

Desde Edwin Hubble que ficámos a saber que o Universo - este Universo, pois começa a aceitar-se a teoria que ele será apenas um de muitos! -  teve um princípio  que ocorreu com o big bang,  há cerca de 14 mil milhões de anos!.  Com Darwin e a “Origem das Espécies” aprendemos que o homo sapiens apenas existe há alguns escassos milhões anos e que ele não é mais do que o elo de uma cadeia evolutiva, um aperfeiçoamento adaptativo a partir de outros primatas, eles próprios um outro elo dessa cadeia que se iniciou com os animais unicelulares.

Existiu, pois, um princípio de tudo, e tudo está em constante mudança. Podemos até falar de uma mudança com um sentido… caraterizado por uma crescente complexidade. Duma massa homogénea inicial, o plasma, começaram a formar-se as partículas atómicas, e o elemento mais simples o hidrogénio. Depois formaram-se as estrelas onde se deu a fusão nuclear e o hidrogénio se transformou em hélio. Em algumas estrelas, as partículas elementares e os átomos leves agregaram-se em átomos pesados e nelas se formaram os elementos químicos, entre eles o carbono, o oxigénio e o silício. Ao fim de algum tempo, por acumulação de energia, essas estrelas - as supernovas - explodiram, e projetaram esses elementos no espaço à sua volta. E foi essa poeira cósmica das supernovas que originou os planetas e outras estrelas. E que fez a Terra, onde surgiu a Vida. E é dessa poeira que nós, humanos, somos feitos.

É  na permanente busca do sentido da mudança e na apreensão do seu significado - algo que sempre nos escapa! - que reside a principal razão da angústia existencial dos humanos. Subimos a encosta da montanha carregando o peso da existência, e, chegados ao cume, vemos a pedra rolar de novo até ao vale. E recomeçamos a subir de novo, carregando outra vez e outra, o mesmo peso. É a história de Sísifo e do absurdo de Albert Camus, que nos diz que mais penoso que o esforço da subida é  a angústia da descida. A descida é o sem sentido  uma espécie de percurso ilógico e absurdo.

O sentido das mudanças - do desenvolvimento se quiserem -  é um  problema (na verdade, o problema) metafisico essencial do ser humano. As questões metafisicas subjacentes, que são aquilo que eu designo por paradoxias porque não têm resposta, nem têm explicação.  Elas  estão o centro das religiões que as dogmatizam, na impossibilidade de as explicar. A Ciência aproxima-se da explicação e explica o como - nalguns casos - mas não explica o porquê.

De onde vimos e porque estamos aqui?

Na tentativa de interpretação da criação feita pela Física, nada se diz do porquê. Esse é, tem sido, sobretudo um assunto do foro da Religião. Ou do domínio da Metafísica, para os que não aceitam a explicação trivial e dogmática das religiões. Ora, a Metafísica é um labirinto que tem uma porta de entrada, mas não tem uma porta de saída. Todos os filósofos que se debruçaram sobre o tema partilham, com Álvaro de Campos/Pessoa, a angústia de quem espera que se "abra uma porta ao pé de uma parede sem porta". E esse é o preço de querer usar a inteligência para indagar sobre as causas últimas dessa mesma inteligência. Porque a inteligência é ela própria também uma paradoxía, e uma paradoxia nunca explicará outra.

O que é que preside à organização da matéria para criar a vida?

Num momento posterior ao da criação da matéria, surge a segunda paradoxía, a da criação da vida.  O código do ADN, o princípio da reprodução e da evolução, inerentes à vida já estavam presentes no plasma indiferenciado do momento inicial. Ou não estariam? É o segundo big bang, o da explosão da vida. Este segundo principio criador não terá acontecido num único lugar. Na Terra, a vida irrompeu em múltiplos lugares, milhões, biliões, quem sabe. A vida é a matéria organizada, capaz de se reproduzir, de evoluir e de se aperfeiçoar. A lei da vida contraria a lei da entropia, que diz que a matéria tem tendência a desorganizar-se. Qual a força que organiza a matéria, que cria o ADN, que determina a reprodução?

A consciência: como é que um ser vivo se tornou consciente?

Sabemos hoje que a vida surgiu na Terra e evoluiu ao longo de milhões de anos. As primeiras espécies nasceram na água, e passaram para a terra sólida. Algumas desenvolveram-se, reproduziram-se, evoluíram e adquiriram um sistema nervoso. Um dia, uma espécie adquiriu a consciência do ser, da vida e da morte. Como foi isto possível, ninguém explicou. A consciência é um dom extraordinário apenas dado ao ser humano. A consciência do eu e a consciência da morte foi o terceiro big bang, a terceira paradoxía.

O sentido da evolução

Matéria, vida e consciência, são os elos de uma cadeia num processo evolutivo. Mas falta-nos perceber o porquê e o sentido dessa evolução. Se é que ele existe. Será que algum dia o compreenderemos? Esta é a quarta paradoxía e é aquela que mais aflige o ser consciente. Admitir que um dia a espécie humana pode extinguir-se sem ter chegado a entender as paradoxías referidas é o maior dos absurdos.

A Luz como resposta

Até hoje as paradoxias não tiveram resposta. Nem no plano científico, nem no plano metafísico. Quando as construções mitológicas se desmoronam perante a lógica ou a Fé se perde perante as injustiças dos deuses, apenas no resta o sonho e a paixão dos poetas e dos artistas para explicar as paradoxias. Creio que é no sentir dos poetas e na criatividade dos artistas que se intui a resposta. Só uma iluminação vinda não se sabe de onde permite superar a angústia do homem perante o absurdo existencial.

O oposto da angústia provocada pelo absurdo é o êxtase da iluminação espiritual . Pode ser uma redescoberta de Deus. Um Deus porventura diferente daqueles que foram criados pelos homens.   Luz é Amor. No Amor  não há lugar para o absurdo  pois tudo tem resposta. O Amor é a vitória de Eros sobre Thanatos.  Sempre que nasce uma criança, é como se vencêssemos a lei da Morte.

Nada melhor que este espaço sagrado da Asta, com o  ambiente purificador que nos envolve, para procurar a  Luz redentora  que permite alcançar o estado de graça libertador das angústias existenciais.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

As Casas de Bistagon

Foto de Maria da Paz Braga
Na manhã do passado dia 20 de setembro, muito cedo, partimos do Hotel Dwarikas em Katmandu, numa carrinha. Íamos ter o nosso primeiro contacto com o trabalho da missão Obrigado Portugal, nós também somos Nepal, na aldeia de Bistagon. Éramos quinze voluntários, quase todos portugueses, entre eles médicos, arquitectos, advogados, um veterinário, jovens generosos que não ficaram indiferentes ao apelo da missão. Uma voluntária catalã, a Maria Boix, que estava ali há dois meses partiria no dia seguinte. E já se pressentia a emoção da despedida que antecederia a sua partida.

Chegámos a Chapagon, depois de uma autêntica aventura de duas horas para percorrer vinte quilómetros, aos solavancos, por caminhos incríveis, com um trânsito infernal onde predominam as motorizadas e o código rodoviário se resume ao vale tudo. Chapagon é uma pequena localidade de ruas térreas e casas de  tijolo situada no Vale de Katmandu, no coração do Nepal. Cada porta da rua principal é uma loja onde tudo se vende: frutas e legumes, tecidos, sapatos, materiais de construção, utensílios de toda a espécie.  No ar um cheiro inconfundível do garam masala - o condimento local -, misturado com o cheiro de excremento de vaca. Nas ruas de terra batida, poças de lama  - de uma cor ocre e que se cola à sola dos sapatos - são a marca das chuvas do final da monção. Um pouco por toda a parte ainda se vêm amontoados destroços e montes de ruínas a recordar o tremor de terra do dia 25 de Abril passado.

Mas para chegarmos ao o nosso destino final, Bistagon, uma pequena aldeia próxima de Chapagon ainda  falta percorrer uns escassos dois quilómetros de um caminho de terra em terreno acidentado. Entramos agora no âmago do Nepal rural. Predominam aqui os campos de arroz - a cultura da monção - que já começa a amarelecer e será colhido dentro de um mês.  Pendurado junto às casas, já se vê a secar o milho, acabado de colher. Montes de malaguetas a secar ao sol ou já ensacada esperam para ir para o mercado ou servirão para confecionar  o dal bhat, o prato típico  local.

As casas de Bistagon são simples e contruídas de  adobes crús. Muitas ruíram e muitas famílias vivem  em abrigos improvisados, muitas vezes partilhando o espaço com vacas e cabras.  Recebe-nos o Permashor Mahat , um jovem aparentando cerca de 30 anos, fluente em inglês, que é o interprete da missão. A nova casa de  Permashor já está acabada, é uma das 22 que a missão Obrigado Portugal está a construir naquela localidade.

Enquanto a maior parte dos voluntários inicia o trabalho no estaleiro do bambú ou nas fundações de novas construções, outros levam-nos a visitar as outras casas da missão que  estão espalhadas pela aldeia, umas em pequenos socalcos umas, outras encravadas entre montes de tijolos ou de construções arruinadas ou ameaçando ruína.  Caminhamos por pequenas veredas de chão lamacento. Em certos pontos, temos de subir algumas encostas mais íngremes e temos de segurar-nos para não escorregar e cair. Uma parte das novas casas em construção está numa extremidade da aldeia sobre uma espécie de promontório que abre sobre uma vista espetacular de campos de arroz plantado em socalcos. A vegetação envolvente é exuberante típica dum clima tropical húmido. A cor das bainhas das nossas calças e dos sapatos começa a confundir-se com o amarelo da terra .

Cruzamos com pessoas, saudando sempre com as mãos postas e dizendo namasté. As mulheres são bonitas, têm uma postura altiva, vestindo os seus trajes típicos onde predomina o vermelho.  Hoje não há escola, é o dia de aprovação da nova constituição do país. Magotes de crianças deambulam por toda a aldeia, sempre cumprimentando e sorrindo. Algumas, como são o caso da Ruska e do Sameer recebem um carinho especial dos voluntários que retribuem afetuosamente. Numa das casas, já construída, uma senhora mais velha convida-nos a entrar e aceitamos o convite.  O chão aqui é de barro, o que não impede que deixemos os sapatos à entrada. Está com duas crianças de tenra idade - seus netos, presumo - enquanto a filha trabalha a terra no campo exterior. Abençoa-nos ungindo-nos com  a tikka na testa, uma mistura de iogurte, vermelhão e grãos de arroz.

O ambiente da aldeia é de uma ruralidade primitiva. Todo o trabalho é manual, pois os terrenos em socalcos e com parcelas diminutas não permitem a entrada de vacas, nem de de alfaias mecanizadas. Não existem animais de carga  - não vi nenhum burro em Bistagon. As mulheres transportam nas costas pesadas cargas que prendem com uma cinta  à volta da testa .

As casas que os voluntários portugueses da missão projetaram e estão a construir foram pensadas de forma a serem o melhor compromisso entre o custo e as suas funcionalidades. Têm dimensões de 6x4 metros, tem fundações nos quatro cantos de onde se levantam pilaretes. Toda a estrutura das paredes e telhado é feita em bambú previamente tratado. Na parte interior para revestir as  paredes aplicam-se várias camadas de uma argamassa feita de barro amassado com esterco de vaca.  O chão é revestido de cimento ou barro e a cobertura do telhado é de chapa de zinco ondulada. A construção é anti sísmica, as casas podem durar vários anos e estão pensadas para evoluir para habitações permanentes se os proprietários assim o entenderem.

Todos os custos dos materiais e o essencial da mão de obra são suportados pela Missão. Mas houve que enfrentar e ultrapassar problemas de vária natureza: quais as famílias beneficiárias das casas, a obrigatoriedade dos proprietários contribuirem com horas de trabalho, a escolha do local exato da implantação da casa, etc... Bistagon, como qualquer aldeia em qualquer parte do mundo, é uma pequena amostra da sociedade, com os conflitos de interesses, os dramas, as invejas, as quezílias familiares.

Na hora do almoço a reunião foi na casa da Babita, mãe da Ruska, uma simpática nepalesa que todos os dias confeciona para os voluntários o obrigatório dal bath.  Bhat é o arroz que pode ser substituído pelo feijão ou pelo milet e dal é uma sopa de lentilhas que leva cebola, alho, gengibre, pimenta, tomate e tamarindo, condimentada com as especiarias do garam masala - uma mistura moída contendo grãos de pimenta preta e branca, cravinho, louro, canela, cardamomo preto, castanho e verde, noz-moscada, anis e sementes de coentro, cominho e açafrão.

Estávamos ali, a oito mil quilómetros de Lisboa, rodeados de crianças, desfrutando da simplicidade da vida. Eu estava a reviver o ambiente duro e austero da minha meninice. E fazia comparações, avaliava as diferenças, e tentava perspetivar o futuro daquelas crianças...

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

No Nepal



Estou em Katmandu no Nepal. Irei escrevendo no blog quando o tempo e a logística o
permitirem

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Migrantes II


Em épocas recuadas as migrações sempre existiram. Muitas dessas migrações ficaram conhecidas na História pela designação de invasões. Os bárbaros invadiram o império romano; os árabes invadiram a península ibérica; os mongóis invadiram a Rússia; povos germânicos e celtas invadiram os territórios limítrofes para se expandirem. Eram invasores e procuravam conquistar territórios pela força. Mas no fundo eram migrações e na base estava a necessidade de conquistar um espaço vital para a tribo ou para o povo.

O envelhecimento da população, a economia acéfala, predadora e consumista, a falta de ideais, as contradições do projeto de construção, a submissão militar à América, a falta de liderança centralizada e a generosa proteção proporcionada pelo estado social enfraqueceram a  Europa. O espaço europeu ficou altamente vulnerável a ser invadido. Na verdade, a invasão da Europa já começou há muito, de uma forma lenta mas contínua. Os episódios de Malta e de Lampedusa já indiciavam que o surto era para continuar. Acredito que não estava na previsão dos dirigentes europeus esta repentina invasão pacífica e massiva do seu espaço. Por isso a desorientação que ela está a provocar.

Este fluxo de refugiados/migrantes/invasores é apenas uma primeira onda. Neste momento, os refugiados vêm sobretudo da Síria mas a próxima onda pode vir do Paquistão, do Afeganistão, do Egito ou de toda a África subsariana. Quem sabe, se até da própria Índia. E se os ucranianos se entusiasmarem com o exemplo? Essa onde pode tomar a forma de um tsunami imparável. As causas são várias e complexas, mas a principal será o desequilíbrio demográfico e económico entre espaços contíguos. E tudo fica facilitado pela globalização e pela facilidade de transporte. Entretanto, do outro lado do Atlântico, a América assiste e não se pronúncia. América que na sua avaliação da situação na Síria, ao rejeitar apoiar Bashar Al Assad, esteve, como causa mais próxima, na origem da tragédia humana que se vive nas fronteiras europeias. Foi uma visão míope, possivelmente motivada pelo receio da influência da Rússia junto do presidente sírio, que  provocou a escalada do conflito armado e precipitou os acontecimentos.

A questão dos refugiados, migrantes ou invasores - a designação para o caso pouco interessa - é muito mais importante do que pode parecer à primeira vista. Não se trata de pessoas que procuram temporariamente fugir aos horrores da guerra e da fome. São pessoas que deixaram de ter condições de subsistência nos seus países de origem e por isso migram para onde vêm uma solução, um espaço vital. Como é que a Europa vai fazer a integração destes refugiados? Esta é a grande questão. Estas pessoas precisam de trabalho - escasso! - e de assistência  - cara! E têm uma cultura que, sob muitos aspetos, choca com as dos países de acolhimento. Não será um processo fácil, pois não se trata de pessoas dóceis mas de pessoas que rapidamente irão reivindicar direitos. O aspeto religioso não é menos importante. No conflito tribal que se começou a desenhar com o ataque ao Charlie Hebdo, as chances favorecem a tribo invasora, pois os seus elementos reproduzem-se mais, têm menos a perder e têm a crença religiosa e a fé do lado deles.  Os europeus tradicionais - entenda-se, de formatação cristã -, vão jogar tudo na assimilação dos emigrantes/invasores ao modelo ocidental -  modelo político e económico, pois não têm outro. Existem fortes motivos para duvidar que isto possa  ser feito de forma pacífica.

Por outro lado, se a questão for bem gerida, estes refugiados podem ser uma grande oportunidade para a Europa. Esta invasão pode funcionar como uma espécie de transfusão de sangue num corpo moribundo. Tenho a impressão que a Alemanha já pressentiu isso. Existe, desde o tempo do Império Otomano, uma inclinação dos alemães por estes povos de raiz ariana.  Se tivesse vingado o projeto do Kaiser Guilherme II de construir uma via férrea entre Berlim e Bagdad, tudo estaria facilitado neste momento para os refugiados.

Na minha opinião, Portugal deveria tomar uma posição proativa neste assunto pois  precisa destes emigrantes como pão para a boca. Eles poderiam servir para repovoar o nosso interior desertificado e para voltar a ocupar os terrenos agrícolas e as casas vazias e semi abandonadas das nossas zonas rurais. Não acredito que os nossos governantes entretidos com a pequena política tenham visão estratégica para considerar, dessa forma, a integração desta gente. E a oportunidade vai perder-se.

Na Europa, terão de ser os países mais ricos a suportar o principal esforço de integração. Vai haver forte divisão interna - vão extremar-se posições entre conservadores e  progressistas - e poderão ter de ser tomadas fortes medidas restritivas à circulação de pessoas, opostas ao espírito de tolerância que norteou a construção europeia. Os países periféricos, como Portugal,  vão passar a receber menos ajuda pois estes deslocados vão absorver uma parte dela. e os orçamentos não são elásticos. A prazo, o próprio serviço social estará ameaçado e as nossas reformas também. Em suma, a já fraca coesão europeia vai ser posta à prova. E pode acontecer que não resista!

Nada vai ser com dantes,  O futuro será muito diferente daquilo que tínhamos imaginado. E as surpresas vão continuar...


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Migrantes


Em 1845 e nos anos imediatamente a seguir,  viveu-se na Irlanda uma situação dramática que ficou conhecida na História com a Grande Fome. Ela foi o resultado de uma economia rural  precária baseada na posse da terra pelos senhorios ingleses, pelo  excesso populacional, pelo mau governo, e sobretudo pela peste da batata que atingiu o principal sustento dos irlandeses.

Nos anos da Grande Fome, milhões de irlandeses emigraram para a América, para o Canadá para a Austrália.   E fizeram-no em condições muito precárias.  Dos 100 000 irlandeses que viajaram para o Canadá em 1847, estima-se em um quinto os que morreram de fome e desnutrição durante a travessia. Outras fontes referem que atingir uma mortalidade de 30% em alguns dos navios que transportavam estes migrantes era coisa comum.

Para os irlandeses da época da Grande Fome, emigrar era a alternativa a uma morte certa, e, por isso, eles estavam preparados para correr todos os riscos. Como consequência desta emigração massiva, a Irlanda perdeu metade da sua população . Mas as cidades americanas e canadianas cresceram exponencialmente à custa destes emigrantes. De facto, eles ajudaram a fazer a prosperidade da América.

Aquilo que está a acontecer na Europa com os migrantes da África e do Médio Oriente - algo previsível desde há muito! - é um fenómeno de grande impacto económico e social e terá consequências muito importantes para o futuro do Velho Continente.  A onda de migrantes não vai parar, antes pelo contrário vai aumentar. As pessoas que migram não têm condições de subsistência nos seus territórios de origem. Fogem à morte e arriscam tudo para chegar ao destino que imaginam salvador. Nada nem ninguém os vai deter.

A história da Civilização Humana é uma história de migrações. Ao longo dos últimos dez mil anos, elas moldaram a Europa que hoje conhecemos. Com as facilidade de transporte, as migrações ocorrem agora com maior rapidez. Para a Europa envelhecida, acomodada e gasta chegou a hora da verdade. Estes emigrantes são simultaneamente necessários - pela força de trabalho que representam - e incómodos - por ameaçarem o sistema de privilégios garantidos pelo estado social, e por serem vistos como uma ameaça à velha ordem cristã do Ocidente.

Vamos ter de conviver com esta realidade e com as transformações que ela vai trazer consigo. A Europa vai mudar, e Portugal mudará também!

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

As Verdades


Um texto de 2012 reeditado

O cristianismo, que moldou a Civilização Ocidental, é um compromisso entre a mitologia greco-romana e o judaísmo. É como se fosse a Odisseia enxertada na Bíblia, a tentativa de conciliar a forma clara - base do pensamento grego e o conteúdo moralista - base do pensamento judaico. Para mim é claro que um judeu nunca poderia ter escrito a Odisseia nem inventado a geometria. O tempo judeu não caberia nunca nos dez anos que Ulisses viajou de Tróia para Ítaca. E, avessos às formas e às imagens, os judeus nunca foram capazes de retratar o deus de Abraão e de Moisés. Jeová não tem rosto. Ele é o oposto da forma elegante de Afrodite ou da força insensual de Atena.

Costuma-se dizer: para cada um sua verdade. O que é a Verdade e onde está a Verdade?  Todos buscamos e todos desejamos encontrá-la, mas primeiro temos que defini-la. Pesquisando a etimologia da palavra talvez encontremos o fio da meada para conduzir a nossa reflexão. Cada civilização parece ter um conceito diferente de verdade. Vamos olhar para alguns deles, e talvez encontremos algumas respostas para as nossas dúvidas.

Na Grécia antiga, a verdade é aletheia ("a" indica negação e "léthe" significa esquecimento), que é aquilo que se mostra e se revela, na sua forma, aos nossos olhos. Já para os judeus a verdade é emunah  (palavra de onde deriva amen). É a virtude, o que há de vir e que há de cumprir-se. Para os romanos a verdade é veritas que é um conceito quase jurídico. Verdade é o que relata ou traduz fielmente o que aconteceu. Na fórmula "juro dizer a verdade e só a verdade", é o conceito veritas que estamos a utilizar.

Temos, pois, uma verdade para os Gregos (aletheia), as coisas como são e sempre serão, tais como se manifestam no momento presente ao nosso espírito; uma verdade para os Romanos (veritas) que diz respeito aos fatos que foram ocorridos e relatados; e uma verdade para os Hebreus (emunah) relativa às coisas que serão (e que foram prometidas). Em síntese, para os gregos a Verdade vê-se; para os romanos diz-se; para os judeus crê-se.

Mas para nós, que transportamos a herança genética e cultural daqueles povos,  qual é a verdade? A verdade geométrica, a verdade jurídica ou a verdade moral ? Quem são os guias que orientam a nossa vida, os oráculos gregos, os profetas bíblicos, ou as sibilas romanas?

No mundo de símbolos e de sinais que, massivamente, nos envolvem a verdade aparece camuflada. Qual é, por exemplo, a Verdade que está por detrás de um anúncio da Coca-Cola, uma das mensagens mais insinuantes dos nossos dias? Ou qual a verdade por detrás dos discursos dos políticos, dos governantes, dos economistas?  E qual  verdade que os meios de comunicação nos mostram e nos apontam?

Temos, antes de mais, de saber descodificar os sinais, que se tornaram  ilegíveis na complexidade das novas formas de comunicar. Temos de recorrer às virtudes da semiótica, da hermenêutica e da interpretação que estão na base de novos oráculos, e de novas profecias. A verdade possível foi, no passado, reservada aos iluminados, aos escolhidos e às elites. Julgámos que as novas literacias viriam, finalmente, revelá-la. Mas ela parece teimar em camuflar-se.

A ciência foi a nossa esperança de vulgarizar a verdade, mas à medida que exploramos o átomo encontramos novas revelações, e as certezas deixam de o ser para serem incertezas. Ficamos confrontados com os limites do célebre princípio de Heisenberg que diz mais ou menos isto: a busca da realidade mais ínfima torna-se incerta pois a observação interfere com a coisa observada, e altera a própria realidade.

Estamos pois condenados a deambular neste labirinto, onde a verdade se parece esvair como a água por entre os dedos da mão. E a angústia persiste...



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Férias

Em agosto o Transição vai de férias.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

A Alimentação

Com o acelerado crescimento populacional, que prevê mais 2,5 mil milhões de pessoas em 2050 e mais 3,5 mil milhões em 2100, o mundo vai precisar, num curto horizonte temporal, de produzir mais 70% dos alimentos atualmente produzidos. Como isso vai ser conseguido é uma grande incógnita. O alimento é uma necessidade básica de qualquer ser vivo, e por isso a questão não pode ser ignorada.

A lança de caça constituiu para aos homens primitivos uma enorme evolução e aportou uma rica dieta proteica às tribos nómadas de caçadores. No entanto, a grande revolução alimentar ocorreu há cerca de dez mil anos com a domesticação de animais e plantas e com o início do cultivo das terras. Primeiro junto aos cursos de água, depois em zonas irrigadas por elaboradas técnicas de canalização e aproveitamento da água. Na Idade Média, a invenção da charrua de ferro permitiu arrotear e conquistar para a exploração agrícola vastos terrenos antes ocupados por florestas. Foi o sucesso desta agricultura e os excedentes assim criados que esteve na origem da Europa das catedrais, da explosão artística da renascença e do avanço científico e tecnológico da Idade Moderna. Este modelo de agricultura foi exportado para o novo mundo, e juntamente com o trabalho escravo, originou a monocultura e permitiu a produção de alimentos em quantidades nunca antes imaginadas.

Como consequência do crescimento populacional e das lutas anti-escravatura, o modelo ameaçava esgotar-se. Na viragem do século XVIII para o século XIX, Thomas Malthus, um homem esclarecido, alertou para a sua insustentabilidade, dizendo que a população iria crescer mais rapidamente que a produção de alimentos. Mas, logo a seguir, o aproveitamento da energia fóssil iria contrariar Malthus, provocar uma inesperada revolução na agricultura e trazer uma nova prosperidade à espécie humana. A agricultura mecanizou-se, libertou os campos do trabalho escravo, ao mesmo tempo que novos fertilizantes revigoravam a terra desgastada e eficientes pesticidas combatiam as pragas e faziam as mondas. Somado a tudo isto, a ciência - com a genética e a descoberta da cura das doenças -,e a tecnologia- com a cultura intensiva e o aperfeiçoamento das alfaias -, haveriam de operar um milagre - a revolução verde - que criou grandes excedentes alimentares e foi responsável pela Idade de Ouro em que atualmente nos encontramos.

Com a revolução verde, o homem libertou-se da árdua tarefa de trabalhar a terra. Em algumas décadas o sector primário, antes o mais representativo, passou a ocupar uma percentagem de apenas um dígito...Em apenas dois séculos a população mundial cresceu seis vezes, as cidades ocuparam o lugar dos campos, enormes massas populacionais ascenderam aos serviços, nasceu a consumista classe média urbana como motor da economia. Este sucesso teve - e continua a ter! -custos ecológicos e ambientais enormes, que podem ser traduzidos num cortejo de conceitos que começam a entrar no nosso discurso diário: manipulação genética, perda de biodiversidade, criação de animais em cativeiro, utilização de hormonas e antibióticos de crescimento, solos empobrecidos e contaminados, escassez de água, alterações climáticas...

É urgente uma nova revolução alimentar. Selina Juul, uma especialista dinamarquesa em alimentação, fundadora do movimento Stop Wasting Food, diz que se não houvesse desperdícios, possivelmente os alimentos produzidos atualmente seriam suficientes para alimentar a população do futuro. John Vidal, jornalista do Guardian, escreveu que urge encontrar outras soluções para alimentar mais de 2.5 mil milhões de pessoas dentro de quatro décadas - as populações da China e da Índia somadas. Acrescenta ainda, que para enfrentar a escassez de água e de terra arável precisamos de uma  geração de novos agricultores, com novas ideias e cultivando novos produtos. Fala de algas, de carne artificial, de novos cereais e até de insectos. Outros, advogam que a solução virá do mar - estufas marítimas, dessalinização... -, enquanto outros sonham em recuperar vastas extensões de deserto, citando a propósito ambiciosos projetos como o Shara Forest Projet, ou a Great Green Wall of Africa.

Na era do consumidor alterou-se profundamente a nossa dieta alimentar. Vivemos na época dos alimentos processados, do excesso de açúcar, dos aditivos, da carne feita à pressa, do exagero dos produtos lácteos. Consumimos mais alimentos do que aqueles que precisamos para viver. As novas gerações são mais altas e mais atléticas, mas também mais obesas. É muito difícil contrariar este estado de coisas, pois a indústria alimentar é um dos pilares da nossa economia. Argumenta-se, por exemplo, com a importância das bebidas refrigerantes para a economia e para o emprego e quase não se fala dos danos que elas causam à saúde.

Para fugir ao ditado popular, que diz que pela boca morre o peixe, um dia teremos de mudar os nossos hábitos alimentares. E quem sabe se, para tal, não teremos primeiro de mudar de economia.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Ferramentas

Já estamos muito longe da idade da pedra lascada e do machado de sílex. Mas foi com essas ferramentas rudimentares que se iniciou a caminhada do homo sapiens e se construiu aquilo que designamos por Civilização Humana. O progresso civilizacional foi fruto da inteligência e das ferramentas. As mãos e o cérebro fizeram a Civilização.

Neste longo caminho, assistimos à extraordinária capacidade inventiva do ser humano para criar novas ferramentas, ampliar com elas as funções sensoriais, realizar tarefas e explorar os recursos da natureza. Primeiro, com o carro de bois e com o arado, o homem aproveitou a seu favor o trabalho animal; depois, com as velas, aproveitou a força do vento para atravessar os oceanos; misturou o clorato, o carvão e o enxofre para fazer a pólvora e criou as bombardas para fazer a guerra. Fez a máquina a vapor e o motor de explosão para extrair o trabalho que está nas entranhas do carvão e do petróleo. Com o reator nuclear foi buscar a energia do átomo e adquiriu a capacidade de destruir tudo aquilo que antes tinha construído.

Com a permanente invenção de novas ferramentas o homem espalhou-se, subjugou todas as outras espécies e dominou a terra. Cada nova ferramenta representa um salto e uma ameaça. Um salto, pois permite adquirir novas capacidades, explorar novos recursos, alimentar mais pessoas; uma ameaça, pois acelera o esgotamento desses recursos e contribui para aumentar a poluição e acelerar os danos causados à qualidade do ambiente, mormente da água que bebe e do ar que respira.

Apesar disso, uma vez aqui chegado, o homem tomou consciência de que não pode parar, pois a economia pede-lhe emprego e crescimento. Tornou-se lugar comum a crença de que a sobrevivência da Humanidade passa pelos caminhos do progresso e da inovação. Com a inovação mecânica e a inovação elétrica libertou a mulher das tarefas do lar. E já dá para perceber que o homem do futuro terá ao seu dispor novas ferramentas mais complexas e sofisticadas. Falo das ferramentas digitais, resultado da miniaturização, da informática e das telecomunicações, que começam a invadir o nosso dia a dia.

As ferramentas digitais são ferramentas inteligentes munidas de sensores que são capazes de tomar decisões. No sector da saúde vão permitir uma vida mais longa; no sector da energia vão aumentar a eficiência na captação e no consumo dos recursos energéticos tanto dos renováveis como dos não renováveis; no sector alimentar - sobretudo na produção alimentar - vão otimizar a utilização de animais e plantas domesticados e geneticamente aperfeiçoados, transformando-os em meros vetores alimentares humanos, que servirão para monitorizar e tornar mais eficiente o consumo de água potável, tanto para consumo direto humano, como para uso na agricultura e pecuária.

Com essas novas ferramentas, mais sofisticadas e mais complexas, o homem passará a depender cada vez mais delas. Aos poucos vai desaprender a viver de forma natural, tal como a natureza o preparou ao longo de milhões de anos. O aumento populacional e o agravamento das desigualdades sociais - a inovação tende a favorecer em primeiro lugar as elites - vão ser duas das consequências com que as sociedades do futuro vão ter de se confrontar.

Não é fácil prever quais as consequências desta sofisticada inovação para a espécie humana e para a Civilização. Mas acredito que ela não nos vai levar de volta à quietude do Paraíso Terrestre!


segunda-feira, 13 de julho de 2015

Grécia: A Austeridade e a Soberania

A Grécia tem um importante valor estratégico. Situa-se na fronteira leste do futuro espaço Atlântico - uma zona alargada de comércio livre com grande impacto económico - que a Europa e os Estados Unidos se propõem construir com base num acordo chamado TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership). A Grécia é a porta da Europa para o Médio Oriente e controla o acesso ao mar de Marmara e ao mar Negro. Está no caminho dos gasodutos e dos pipelines que hão-de trazer a energia fóssil da Rússia, da Ásia Central e do Golfo Pérsico para a depauperada Europa. Além disso, fala-se que sob as águas do mar Egeu estarão importantes jazidas de petróleo e gás natural à espera de serem exploradas. Por todas estas razões a Grécia é vital para o Ocidente, mas também para os interesses russos - e para um futuro eixo Pequim-Moscovo, que será a resposta natural de russos e chineses ao TTIP. Por isso mesmo, a Grécia é cobiçada por Putin. Alexis Tsipras sabe tudo isso, e acredita que a Europa e os Estados Unidos nunca deixarão a Grécia entregue a si própria.

Mas a Europa está ela própria numa encruzilhada. A crise iniciada em 2008 interrompeu um período de prosperidade e veio demonstrar que o generoso estado social europeu, nascido na euforia económica do pós guerra, não é sustentável no longo prazo. A crise subsequente da dívida soberana grega serviu para fazer, mais uma vez, vir ao de cima os verdadeiros problemas da Europa: o problema económico, o problema social e o problema da governação. Problemas que estão interligados entre si. O problema económico - que tem a ver com a emergência de economias industriais mais ágeis, com a quebra da natalidade e a escassez de recursos - resulta da dificuldade em fazer crescer a riqueza e em manter os orçamentos equilibrados. O problema social, em última análise, radica na crise de valores, no peso crescente de minorias desintegradas, e também na pressão sobre as suas fronteiras das populações que procuram fugir à pobreza, aos conflitos e à sobrepopulação do Norte de África e do Médio Oriente. O problema da governação - talvez o mais urgente no momento que vivemos - é um problema político que resulta da própria organização e da génese da União Europeia. Este último problema está a provocar um permanente conflito entre poder central das estruturas da união e poder nacional dos países.

Na Grécia atual extremam-se os problemas da Europa.É uma zona de entrada de imigrantes indesejados; tem uma economia frágil e insustentável, geradora de deficits crónicos que têm sido financiados pelo FMI e pela União Europeia; e tem um poder rebelde que teima em afirmar a soberania da Grécia e dos gregos. A Europa está perante um dilema: pagar ou não pagar a fatura dos gregos. Até poderá estar disposta a pagar, se o fizer a troco da disciplina orçamental e do sacrifício da soberania. Na mesa das negociações jogam-se os trunfos: do lado da Grécia a ameaça de romper a coesão e a sua valia geopolítica; do lado da Europa, para vergar os gregos, usa-se a tortura financeira e a ameaça do seu prolongamento indefinido. No final haverá acordo. A Grécia vai ficar na Europa e no euro, mas vai ter, no futuro, mais austeridade e menos soberania. De pouco lhe vai servir ter um governo de esquerda ou brandir a arma do referendo.

A União Europeia - paulatinamente construída - foi a saída que a Alemanha, derrotada em 1945, aceitou liderar com o apoio de uma França descaracterizada e nunca reencontrada em si mesma desde Waterloo. Mas, esta Europa que colonizou o mundo, que já teve exércitos, que teve uma religião e construiu fábricas; agora, é um museu. Está na economia global, tem um idioma e uma moeda. Mas não tem ideais, não produz inovação comercializável, nem tem soluções de crescimento fora da economia global. Aceitou abrigar-se sob a liderança americana - mesmo que isso implique virar as costas a Moscovo - tanto no plano económico como militar. Mas a Europa dos países não está morta e ressurge a cada crise. E a Inglaterra escuda-se na sua ilha e acha que terá sempre a última palavra.

A Grécia vai continuar a fazer parte da Europa. Para esta conclusão não é preciso invocar a história, nem a geografia, nem a mitologia. Alexis Tsipras vai ficar na história como o último líder grego que tentou manter a soberania do seu país. E já se terá convencido de que, sem pão, a democracia pouco valor tem!


segunda-feira, 6 de julho de 2015

A Inovação

Carlos Moedas esteve no Grémio Literário no passado dia 25 de junho para encerrar o ciclo de conferências: “Portugal pós - Troika: que Moeda, que Economia, que Futuro?”. Em plena crise grega, tinha criado uma certa expectativa em relação a esta conferência, mas o jovem comissário - o primeiro comissário Erasmus, como ele próprio se definiu - evitou o tema e escolheu falar de Ciência e Inovação.

Começou por falar da Europa, espaço onde uns escassos 7% da população mundial produzem mais de 30% do conhecimento global. No velho continente destacou três particularidades: uma plataforma de convergência e de bem estar, um espaço de conhecimento, e um estado social forte. Algo que todo o mundo gostaria de imitar. Entende que é necessário conservar estas características e explorar aquele pilar - referia-se à inovação e ao conhecimento! -, o único que realmente pode gerar riqueza e promover crescimento. Porque, acrescentou ele, a inovação foi o grande responsável pelo crescimento, sendo-lhe atribuído 62% do crescimento verificado na Europa entre 1995 e 2007.

Não advoga uma inovação, embora sustentada, que apenas sirva para substituir produtos ou aumentar a eficiência na sua utilização. Defende sim, uma inovação criadora de mercado, logo, de emprego. Isto é, novos produtos-verdadeiramente novos! –, e com novas aplicações. Como exemplos desses produtos que, nas últimas décadas, ajudaram a mudar radicalmente a nossa forma de viver indicou: o telemóvel e o computador pessoal. Poderia ainda ter referido a máquina fotográfica digital, o vídeo gravador, o walkman, que muito ajudaram a prosperar o Japão do pós guerra.

Para Carlos Moedas, vivemos plenamente a revolução digital. Comparou a máquina a vapor, símbolo da revolução industrial, com o transístor desenvolvido na Bell em 1940, símbolo da revolução digital. Serviu-se deste dispositivo eletrónico para exemplificar aquilo que ele designou por investigação fundamental, a investigação sistemática realizada dentro de uma empresa com a intervenção de vários especialistas. O palestrante acha que a Europa não tem tido no sector digital o sucesso que tem no sector industrial. E questionou-se sobre as causas desse insucesso, considerando que o que falha na Europa resulta da sua fragmentação, são as barreiras invisíveis entre países.

Depois falou da sua visão para o futuro, da necessidade de uma grande abertura: open inovation, open science e open to the world. Enfatizou o papel dos consumidores como motores da inovacão. É o conceito de user inovation, que pode motivar um engenheiro a descobrir a cura de uma doença. Entretanto, aproveitou para informar que para falar sobre o tema, estará na Gulbenkian, neste mês de julho, o maior especialista mundial da matéria, o professor da Sloan Management Scholl do MIT, Eric von Hippel. Referindo às interações, cada vez maiores, entre o mundo físico e o mundo digital - a internet das coisas! – apontou quatro sectores que, no futuro, serão muito afetados por esta interação entre o físico e o digital: os sectores da alimentação, da água, da energia e da saúde.

A ciência tem de ser open, o conhecimento tem de ser difundido de forma gratuita - não podemos pagar para ler. Sobre o terceiro pilar, a abertura ao mundo, que ele designou de Ciência e Diplomacia, mencionou uma recente visita à Jordânia para visitar o único centro acelerador de partículas no médio oriente. Aí viu irmanados pelo conhecimento árabes e judeus, partilhando uma linguagem comum : a linguagem da ciência. A propósito deste pilar, e citando a obra Os Inovadores de Walter Isaacson, evocou uma filha do poeta Lord Byron, Ada Lovelace, nascida em 1815, colaboradora do inventor do computador Charles Babbage e que foi o primeiro programador da história. Ada anteviu a economia digital e referiu que a Arte - a literatura, a música e a pintura, por exemplo - um dia seria reduzida a números.

Carlos Moedas é um tecnocrata com uma visão simplista das coisas. É um crente da economia liberal, acredita no crescimento ilimitado, e vê na inovação o caminho para o conseguir. A Europa, com a sua baixa natalidade, sem recursos energéticos, começa a enfrentar uma grave crise de crescimento. Ora a inovação, só por si, não vai gerar o crescimento que a Europa necessita para manter o atual nível de conforto e o seu generoso estado social. Além disso, tem o espartilho da fragmentação entre países e uma estrutura de produção de conhecimento essencialmente académica, que é demasiado pesada num sector onde é preciso correr riscos e tomar decisões rápidas...Aquilo que os académicos não sabem ou não gostam de fazer!

O crescimento baseado na inovação pode ser um crescimento limpo e desejável para a velha Europa... mas, duvido muito que vá acontecer...Estou mais próximo de Robert Ayres que considera a energia o mais importante fator de crescimento. E, sobre a inovação, partilho da linha de pensamento de Joseph Tainter: acredito que é muito elevado o risco de, através dela, aumentar a complexidade social e criar condições para aumentar a ocorrência de Cisnes Negros

Uma questão, talvez filosófica, será a de saber se o telemóvel é, afinal, uma coisa boa ou uma coisa má... E o mesmo se pode perguntar sobre a televisão, sobre os jogos de computadores etc... De alguma forma, a Europa se quer ter futuro, tem de ter a coragem de desinovar e reencontrar-se no que é simples e espiritual. Para tornar as pessoas mais fortes, mais humanas e mais felizes.

Julgo que Carlos Moedas ainda não percebeu que o futuro da Europa vai jogar-se em Kiev, na Crimeia e em Lampedusa, e não no Cern ou nos meandros da economia digital.