segunda-feira, 28 de setembro de 2015

As Casas de Bistagon

Foto de Maria da Paz Braga
Na manhã do passado dia 20 de setembro, muito cedo, partimos do Hotel Dwarikas em Katmandu, numa carrinha. Íamos ter o nosso primeiro contacto com o trabalho da missão Obrigado Portugal, nós também somos Nepal, na aldeia de Bistagon. Éramos quinze voluntários, quase todos portugueses, entre eles médicos, arquitectos, advogados, um veterinário, jovens generosos que não ficaram indiferentes ao apelo da missão. Uma voluntária catalã, a Maria Boix, que estava ali há dois meses partiria no dia seguinte. E já se pressentia a emoção da despedida que antecederia a sua partida.

Chegámos a Chapagon, depois de uma autêntica aventura de duas horas para percorrer vinte quilómetros, aos solavancos, por caminhos incríveis, com um trânsito infernal onde predominam as motorizadas e o código rodoviário se resume ao vale tudo. Chapagon é uma pequena localidade de ruas térreas e casas de  tijolo situada no Vale de Katmandu, no coração do Nepal. Cada porta da rua principal é uma loja onde tudo se vende: frutas e legumes, tecidos, sapatos, materiais de construção, utensílios de toda a espécie.  No ar um cheiro inconfundível do garam masala - o condimento local -, misturado com o cheiro de excremento de vaca. Nas ruas de terra batida, poças de lama  - de uma cor ocre e que se cola à sola dos sapatos - são a marca das chuvas do final da monção. Um pouco por toda a parte ainda se vêm amontoados destroços e montes de ruínas a recordar o tremor de terra do dia 25 de Abril passado.

Mas para chegarmos ao o nosso destino final, Bistagon, uma pequena aldeia próxima de Chapagon ainda  falta percorrer uns escassos dois quilómetros de um caminho de terra em terreno acidentado. Entramos agora no âmago do Nepal rural. Predominam aqui os campos de arroz - a cultura da monção - que já começa a amarelecer e será colhido dentro de um mês.  Pendurado junto às casas, já se vê a secar o milho, acabado de colher. Montes de malaguetas a secar ao sol ou já ensacada esperam para ir para o mercado ou servirão para confecionar  o dal bhat, o prato típico  local.

As casas de Bistagon são simples e contruídas de  adobes crús. Muitas ruíram e muitas famílias vivem  em abrigos improvisados, muitas vezes partilhando o espaço com vacas e cabras.  Recebe-nos o Permashor Mahat , um jovem aparentando cerca de 30 anos, fluente em inglês, que é o interprete da missão. A nova casa de  Permashor já está acabada, é uma das 22 que a missão Obrigado Portugal está a construir naquela localidade.

Enquanto a maior parte dos voluntários inicia o trabalho no estaleiro do bambú ou nas fundações de novas construções, outros levam-nos a visitar as outras casas da missão que  estão espalhadas pela aldeia, umas em pequenos socalcos umas, outras encravadas entre montes de tijolos ou de construções arruinadas ou ameaçando ruína.  Caminhamos por pequenas veredas de chão lamacento. Em certos pontos, temos de subir algumas encostas mais íngremes e temos de segurar-nos para não escorregar e cair. Uma parte das novas casas em construção está numa extremidade da aldeia sobre uma espécie de promontório que abre sobre uma vista espetacular de campos de arroz plantado em socalcos. A vegetação envolvente é exuberante típica dum clima tropical húmido. A cor das bainhas das nossas calças e dos sapatos começa a confundir-se com o amarelo da terra .

Cruzamos com pessoas, saudando sempre com as mãos postas e dizendo namasté. As mulheres são bonitas, têm uma postura altiva, vestindo os seus trajes típicos onde predomina o vermelho.  Hoje não há escola, é o dia de aprovação da nova constituição do país. Magotes de crianças deambulam por toda a aldeia, sempre cumprimentando e sorrindo. Algumas, como são o caso da Ruska e do Sameer recebem um carinho especial dos voluntários que retribuem afetuosamente. Numa das casas, já construída, uma senhora mais velha convida-nos a entrar e aceitamos o convite.  O chão aqui é de barro, o que não impede que deixemos os sapatos à entrada. Está com duas crianças de tenra idade - seus netos, presumo - enquanto a filha trabalha a terra no campo exterior. Abençoa-nos ungindo-nos com  a tikka na testa, uma mistura de iogurte, vermelhão e grãos de arroz.

O ambiente da aldeia é de uma ruralidade primitiva. Todo o trabalho é manual, pois os terrenos em socalcos e com parcelas diminutas não permitem a entrada de vacas, nem de de alfaias mecanizadas. Não existem animais de carga  - não vi nenhum burro em Bistagon. As mulheres transportam nas costas pesadas cargas que prendem com uma cinta  à volta da testa .

As casas que os voluntários portugueses da missão projetaram e estão a construir foram pensadas de forma a serem o melhor compromisso entre o custo e as suas funcionalidades. Têm dimensões de 6x4 metros, tem fundações nos quatro cantos de onde se levantam pilaretes. Toda a estrutura das paredes e telhado é feita em bambú previamente tratado. Na parte interior para revestir as  paredes aplicam-se várias camadas de uma argamassa feita de barro amassado com esterco de vaca.  O chão é revestido de cimento ou barro e a cobertura do telhado é de chapa de zinco ondulada. A construção é anti sísmica, as casas podem durar vários anos e estão pensadas para evoluir para habitações permanentes se os proprietários assim o entenderem.

Todos os custos dos materiais e o essencial da mão de obra são suportados pela Missão. Mas houve que enfrentar e ultrapassar problemas de vária natureza: quais as famílias beneficiárias das casas, a obrigatoriedade dos proprietários contribuirem com horas de trabalho, a escolha do local exato da implantação da casa, etc... Bistagon, como qualquer aldeia em qualquer parte do mundo, é uma pequena amostra da sociedade, com os conflitos de interesses, os dramas, as invejas, as quezílias familiares.

Na hora do almoço a reunião foi na casa da Babita, mãe da Ruska, uma simpática nepalesa que todos os dias confeciona para os voluntários o obrigatório dal bath.  Bhat é o arroz que pode ser substituído pelo feijão ou pelo milet e dal é uma sopa de lentilhas que leva cebola, alho, gengibre, pimenta, tomate e tamarindo, condimentada com as especiarias do garam masala - uma mistura moída contendo grãos de pimenta preta e branca, cravinho, louro, canela, cardamomo preto, castanho e verde, noz-moscada, anis e sementes de coentro, cominho e açafrão.

Estávamos ali, a oito mil quilómetros de Lisboa, rodeados de crianças, desfrutando da simplicidade da vida. Eu estava a reviver o ambiente duro e austero da minha meninice. E fazia comparações, avaliava as diferenças, e tentava perspetivar o futuro daquelas crianças...

1 comentário:

  1. Obrigada pelo seu testemunho tão real e assertivo que me transporta de novo para lá e alivia um pouco as saudades.
    Quem lá esteve, deixou um pouco de si mas
    trouxe aquela terra, aquele povo, aqueles
    meninos e aqueles sorrisos colados ao coração.
    Obrigada pelo seu filho fantástico, ser humano
    ímpar, com quem muito aprendi e que nos enche de orgulho.
    Namasté!

    Maria da Paz Mascarenhas

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