segunda-feira, 29 de junho de 2015

Ensinar a Descobrir

O Nepso (A Nossa Escola Pesquisa a Sua Opinião) é o programa baseado numa metodologia de ensino inovadora que a Fundação Vox Populi está, desde há 5 anos, a levar com êxito a dezenas de escolas portuguesas. Professores e alunos candidatam-se a realizar um projeto de investigação tendo como base um estudo de opinião. Estudar o bullying, perceber as razões do insucesso escolar, entender as causas da crise, implementar comportamentos de cidadania, são alguns dos temas já tratados no Nepso. O Rato de Biblioteca é outro programa da Fundação através do qual se procura ensinar os alunos a pesquisar, criticar e conciliar a informação disponível e oriunda de diferentes fontes. No ano letivo que agora terminou, o tema sugerido pela Fundação para o Rato de Biblioteca foi A Origem das Coisas. E as surpresas foram muitas.

No ensino tradicional, os alunos são preparados para dar as respostas convencionais dos manuais escolares. Tanto no Nepso como no Rato de Biblioteca procura-se estimular os alunos a partir à descoberta das respostas. A fazerem perguntas e a questionarem o mundo à sua volta. O resultado é a aquisição de conhecimento, fruto de um trabalho em equipa. O professor deixa de ser o sabe tudo para ser o condutor da pesquisa. Nestes programas, tudo começa com a escolha do tema. Quando o professor, com os seus alunos, escolhem um tema de pesquisa, eles iniciam, em conjunto, uma caminhada, partem para uma espécie de aventura. Não há temas bons nem maus. Logo no início, debruçam-se e começam a explorar e a contextualizar o tema: perceber os conceitos, o significado das palavras, aprender o que outros já estudaram, identificar as perguntas que ainda não têm resposta. Às vezes, nesta fase ainda preliminar, a vastidão do que encontram por debaixo da parte visível do "iceberg" deixa-os surpresos. E anima-os a prosseguir.

Com o Rato de Biblioteca procuramos estimular a pesquisa da informação que circula em grandes quantidades, sobretudo na Internet, e que é um convite ao copy-paste acrítico. Saber usar a informação, filtrá-la, compará-la, relacioná-la e transformá-la em conhecimento, é o principal objetivo deste programa. Em cada ano é sugerido um tema. Há dois anos foi "Nós portugueses quem somos", no ano passado foi "Os portugueses e a sustentabilidade". Este ano, como já disse atrás, o tema foi A origem das coisas.

O acompanhamento destes projetos tem sido para a Fundação Vox Populi e, para mim, pessoalmente, uma extraordinária experiência. A convivência com professores e alunos, a envolvência com o ambiente escolar, coloca-nos cara a cara com o futuro. Porque falar da educação é falar do futuro. Quando se desmorona o edifício da educação, caem os alicerces do nosso futuro coletivo. Voltar à escola devia ser uma obrigação para todos aqueles que atingem a idade da reforma. Isso far-nos-ia perceber quanto envelhecemos ou sentir quão jovens ainda somos!

Eu dediquei uma boa parte da minha vida profissional ao estudo e à produção de informação, e isso permitiu-me perceber que existem diferenças entre informação, conhecimento e saber. A informação acumula-se, degrada-se e perde-se. Pode ser boa ou má, pode ser certa ou errada, pode ser útil ou inútil. O conhecimento é a informação processada e digerida. É o resultado da interação entre a inteligência e a informação. Não evolui com a quantidade de informação processada, mas com a experiência e o refinamento do processo de a tratar e criticar. Se a informação é a matéria prima, o conhecimento é a ferramenta.

O saber, vejo-o como estando um degrau acima do conhecimento. Constitui uma espécie de mutação pessoal, algo que nos dá uma nova qualidade e nos transforma enquanto indivíduos. O saber não se ensina, não se transmite como a informação através de um sistema de vasos comunicantes. O saber constrói-se num processo lento e laborioso, à custa de tentativas, de sucessos e de fracassos. Quase se poderia dizer que a informação está nos neurónios, o conhecimento está nas sinapses, e o saber está nos genes. Porque o homem sábio atingiu um patamar superior no processo da evolução.

O Nepso e o Rato de Biblioteca são uma caminhada de professores e de alunos. São ferramentas que nos ajudam a subir um degrau na escada do saber. Na próxima quarta feira, dia 2 de julho, marcamos encontro em Ponte de Lima com quase mil professores e alunos para a festa do Nepso e do Rato de Biblioteca. Para espalhar alegria, para partilhar saberes, para sentir emoções, para alimentar a Esperança no futuro!

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Um Longo Caminho

Foi há cerca de seis anos que comecei a publicar textos neste blogue. Um tempo que passou veloz, em que muita coisa aconteceu e se percorreu um longo caminho. Em 2009, estava a generalizar-se a consciência sobre o pico do petróleo, a teoria de que as reservas de petróleo são limitadas e que um dia a sua extração começará a diminuir. Na peugada de Hubbert King surgiram diversos estudos de geólogos, engenheiros petrolíferos e outros analistas ligados aos assuntos do crude. De entre eles, destacaram-se o irlandês Colin Campbell e o francês Jean Lahérrère que, em março de 1998, tinham publicado na revista Scientific American um estudo seminal, The end of Cheap Oil, sobre as perspetivas de produção de petróleo para os anos vindouros. Uma nova geração de estudiosos, provenientes das mais diversas áreas, desde a sociologia à história, passando pela filosofia e pela antropologia, começavam a debruçar-se sobre as implicações da escassez dos recursos energéticos e a divulgar as suas conclusões. A internet permitia difundir a informação e fomentava a troca de pontos de vista. Foram os anos do despertar de consciências para a importância crucial da energia fóssil, o verdadeiro motor da era industrial. Recuperaram-se as ideias do Limits to Growth, publicado em 1972. Matt Simmons tinha acabado de publicar o Twilight in the Desert alertando para o iminente esgotamento das grandes jazidas da Arábia Saudita. De forma consensual, o diagnóstico para os anos seguintes era, claramente, pessimista. No blogue The Oil Drum, um fórum de discussão que foi uma referência para muitos, surgiram análises que pela sua acutilância e pertinência muito contribuíram para alterar de forma irreversível a minha visão do mundo.

A questão energética é central para a sociedade industrial. O século XX foi o século do petróleo e da mobilidade. O petróleo, tanto na Europa e Ásia Menor como no Pacífico, tinha desempenhado um importante papel nos dois conflitos mundiais. No final da II Guerra Mundial, os Estados Unidos firmaram acordos com a Arábia Saudita para assegurar o controlo das maiores reservas conhecidas. No período que se seguiu a 1945, o grande desenvolvimento económico, as transformações sociais e a febre da urbanização ficaram a dever-se à abundância energética. O grande dilema era que o crescimento, que a economia exigia, obrigava a dispor dessa energia de forma continuada e crescente. Em 1973, depois do embargo dos países árabes, constatou-se que só a disponibilidade de petróleo barato poderia assegurar esse crescimento. Nessa altura, os Estados Unidos, que já não eram auto suficientes, focalizaram toda a sua atenção no Médio Oriente. Começaram a preparar a ocupação do Iraque, considerado uma espécie de eldorado petrolífero, com potencialidades de produção semelhantes às da Arábia Saudita. E o pretexto para a conseguir iria surgir em setembro de 2001.

Marion Hubbert King, em 1956, foi o primeiro a alertar para a finitude das reservas de combustíveis fosseis e para o seu previsível esgotamento. Ora, como a economia exigia mais e mais energia, esta previsão era inconveniente. O engenheiro da Shell foi desacreditado e os seus avisos ignorados. Como resposta, os prospetores desenvolveram novas técnicas de pesquisa e os engenheiros começaram a cavar mais fundo e a rapar tudo o que ainda sobrava nas antigas jazidas abandonadas. Perfurou-se nas profundezas dos oceanos, esventrou-se a terra no Canadá, poluíram-se rios em Atabasca, enfrentaram-se os climas hostis do Alaska e do Ártico. Pelo petróleo, fizeram-se guerras, engendraram-se golpes de estado, minou-se até ao colapso a economia do antigo bloco de Leste. Na América, espremeu-se até à ultima gota a rocha xistosa do Texas e do Dakota. Entretanto, a necessidade de crescer conduziu à globalização e acelerou o despertar da China. E, assim, a ilusão do eterno crescimento era continuamente alimentada. Albert Bartlet ensinava que as consequências do crescimento exponencial não são bem percebidas pela mente humana. E a ameaça das alterações climáticas ia pesando sobre o destino da Civilização Industrial. A crise financeira de 2008 foi na sua essência uma crise de crescimento. Pouco a pouco, as pessoas começaram a tomar consciência que a Idade de Ouro - que se acreditava perpétua - poderia chegar ao fim.

A partir desta tomada de consciência, ganhou expressão uma corrente de pensamento orientada para as questões à volta do futuro da humanidade, e para o destino da espécie humana. Eu bebi dessas ideias: a filosofia, a antropologia, a astronomia, passaram a ser o centro dos meus interesses. Vi-me confrontado com as paradoxias - a origem da matéria, a origem da vida, a origem da inteligência, o destino do homem - que são as questões centrais do ser humano e que, na minha opinião, nunca serão cabalmente respondidas pelos mortais. Mas, cedo percebi que a humanidade se encontrava num processo de crescimento exponencial e que a economia comandava esse processo. A rapidez com que tudo estava a acontecer tornava mais difícil a perceção dos malefícios desse crescimento e camuflava as suas consequências. No entanto, pressentia-se que os riscos associados eram muito elevados.

Passados seis anos, continuo a perguntar-me onde estamos e para onde vamos. Resisto a partilhar, com algum otimismo, a generalizada crença de que, afinal tudo isto é normal, que não estamos perante o fim da história. Hesito em confiar que o homem mais uma vez vai encontrar remédio para todos os males. Continuo convencido que os pressupostos do Limits to Growth continuam válidos. E que as leis da física vão opor-se aos princípios da economia. Os números, os gráficos, os indicadores mostram que estamo-nos a aproximar dum turning point civilizacional.

À primeira vista, o acontecimento mais provável será um colapso económico provocado pela ausência de crescimento. Mas, a economia tem hoje um grande poder de adaptação a situações adversas. As soluções que encontra são aquilo que vulgarmente se designa de uma fuga para a frente. A resposta da economia estará no desenvolvimento da tecnologia, no reforço da economia digital, na promoção do consumo favorecida por novos acordos de comércio - como o TTIP e outros acordos regionais. Afinal, um aumento da complexidade, um reforço da globalização, a continuação da exploração dos recursos e o aumento da produtividade à custa do sacrifício da biodiversidade e do equilíbrio ecológico!

A pressão demográfica e os seus efeitos são outro fator de instabilidade a ter em consideração no futuro próximo. Grandes zonas do planeta - confinando com zonas economicamente mais desenvolvidas e de baixa natalidade - estão a ficar sobrepovoadas. São exemplos disso as pressões na margem africana do Mediterrâneo sobre a Europa do Sul, do Bengladesh sobre a Índia, do México e da América Latina sobre os Estados Unidos. A escassez de recursos tenderá a ser contrariada pelo aumento da eficiência na sua utilização e pela procura de fontes alternativas - energia solar, renováveis, acumuladores de grande capacidade. Porém, o problema persiste. O pico do petróleo foi relegado para segundo plano com a ilusão do shale oil americano. Mas, no essencial nada se alterou: acabou o petróleo barato, está a haver desinvestimento na prospeção, o petróleo ainda não tem substituto no sector da mobilidade. Existe muita incerteza, muita desinformação sobre o estado das reservas e sobre o grau de esgotamento das grandes jazidas... Pressinto que seremos, muito em breve, confrontados com um novo choque de graves consequências...

A economia vai continuar a agravar as desigualdades sociais entre países e dentro de cada país. Muitas das conquistas sociais dos países desenvolvidos - proteção na saúde, no desemprego, direitos assegurados na educação, etc. - vão ser reduzidas à medida que a taxa de criação de riqueza for diminuindo, à medida que a esperança de vida for aumentando e à medida que a criação de novos postos de trabalho se reduzir. Será também este um um fator de instabilidade, gerador de conflitos sociais.

Na minha opinião, o maior risco é o ambiental. Trata-se de um problema crónico que vai agravar-se. O crescimento urbano vai continuar a reduzir a disponibilidade de terra arável. Algumas megaurbes estão próximo da rutura, com problemas nas redes de saneamento e de abastecimento de água. A qualidade da água e do ar estão ameaçadas pela poluição. A concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera vai aumentar. A introdução da manipulação genética nas sementes, o uso imoderado de fertilizantes e pesticidas vão ter consequências na saúde das pessoas e na qualidade dos solos agrícolas. A extinção de espécies em terra e no mar vai destruir equilíbrios conseguidos ao longo de milhões de anos!

Passados seis anos não posso dizer que estou mais otimista... Creio que, em geral, estamos todos mais realistas...

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O Óscar

Neste passado e chuvoso domingo de junho um grupo de vinte e nove pessoas, entre as quais oito crianças, convidados pela Fundação Vox Populi, foram de autocarro visitar uns insólitos imigrantes. Entre eles o Bruno, o Miguel e o Óscar. Daquele grupo de sul americanos confesso que gostei particularmente do Óscar - por ser dócil e ter um olhar meigo. O Óscar e os amigos foram parar à Benfeita, uma aldeia de xisto perdida entre Coja e o Piodão, por causa da globalização. Vieram dos Andes, não sei se do Perú se da Bolívia, onde existem em grande número e são venerados pelos habitantes locais. A tal ponto que estão representados na bandeira do Perú.

O Óscar recém tosquiado, fotografado na
localidade de Benfeita
O Oscar é um alpaca. O nome científico desta espécie é vicugna pacos. Trata-se de um mamífero ruminante estreitamente aparentado com a vicunha - que ainda vive no estado selvagem - e, de forma um pouco mais distante, com o guanaco e com a lama. Todos estes animais pertencem à família dos camelídeos. Como estas espécies são originárias e vivem na cordilheira dos Andes, em altitudes superiores aos 4000 metros, para se adaptarem à escassez de oxigénio, o seu sangue tem uma elevada percentagem de hemoglobina que no caso dos guanacos pode ser quatro vezes superior à do sangue dos humanos. O corpo das alpacas é revestido por uma lã de excecionais características: leve, suave, comprida, fácil de lavar e de fiar, e tem uma grande capacidade isoladora. Na tosquia que é feita na primavera, cada animal dá cerca de quatro quilos dessa apreciada lã.

O Óscar e os amigos foram trazidos para a aldeia da Benfeita por uns ingleses que os albergam e tratam nas terras onde há 50 anos portugueses, hoje emigrados - quem sabe, em algum subúrbio poluído da Inglaterra -, arroteavam socalcos em que se cultivava o milho, e onde se produzia azeite e vinho. A água ainda hoje corre cristalina nesses pendores da serra do Açor, à espera de voltar fertilizar as terras úberes das várzeas que ladeiam as ribeiras.

A desertificação das aldeias de xisto ocorreu no pós guerra, durante o período de emigração para a Europa e para as cidades do litoral. Os terrenos agrícolas estão hoje abandonados. Algumas casas recuperadas são usadas como efémeras residências de verão e não são sustentáveis no médio prazo. Outras em ruínas são, sobretudo, habitadas por velhos que ainda ali vivem. A economia local, que criava valor e fazia prosperar, desapareceu. Então, atraídos pela beleza natural e pelo vácuo populacional, começam a aparecer por ali um novo tipo de ocupantes: estrangeiros do centro e do norte da Europa, marginais da economia de consumo. A escassa população local olha-os com desconfiança : estão linguística e culturalmente desenraizados; têm poucas condições para educar os filhos; resistem com dificuldade ao ambiente socialmente hostil, e muitos deles acabam por partir.

A visita às alpacas, terem assistido à tosquia do Óscar e terem manuseado e feltrado a lã de alpaca, foi, quer para os adultos e quer para as crianças que participaram na excursão do domingo, uma oportunidade de sair da rotina da cidade. Entretanto, começam as férias, e muitas das crianças deste país preparam-se para o despreocupado tempo da praia e para o alheamento da televisão e dos jogos de computador. Longe dos dramas que se vivem noutras latitudes, mas que já se vislumbram bem perto das fronteiras da velha Europa e ameaçam agitar este doce e despreocupado remanso lusitano.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A Sanfona



O mestre-violeiro - luthier em francês, não encontro em português melhor designação para fabricante de instrumentos musicais de corda - já tem as mãos afeitas ao fabrico de bandolins, cavaquinhos, violinos, guitarras clássicas e guitarras portuguesas. Para ele, a confeção destes instrumentos não tem segredos. Conhece as minuciosas técnicas para produzir sons com a máxima riqueza harmónica, e sabe quais as madeiras mais adequadas a cada parte do instrumento: o abeto da flandres para a frente da caixa, o pau santo, o mogno ou madeira de pereira para o fundo e para as abas. Utiliza cola feita à base de gelatina animal e, no envernizamento, prefere a goma laca natural aos produtos sintéticos. Os grandes instrumentistas portugueses preferem os seus instrumentos e ele tem a certeza que nunca os desiludirá.

A ideia de construir uma sanfona portuguesa persegue-o desde que a viu representada em figuras de presépio do século XVII. Atraiu-o também a doçura da melodia e a sonoridade do instrumento. Há centenas de anos que não se construía uma sanfona em Portugal; não existia instrumento antigo que lhe servisse de modelo. A sanfona de cordas, também conhecida por viela de roda - não confundir com a sanfona que é no Brasil a designação de acordeão -, era na Idade Média um instrumento tocado nas igrejas, na corte e nos palácios da nobreza. A decadência económica das famílias, e a dificuldade em a manter e preservar, fê-la cair nas mãos dos cantores de rua. Em seguida, substituída nas igrejas pelo órgão, caiu no esquecimento e quase desapareceu.

A sanfona baseia-se no princípio da corda friccionada. Uma roda resinada, e acionada por uma manivela, friciona as cordas que emitem um som contínuo. É como se fosse um violino em que a roda, fricionando as cordas, desempenha o papel do arco. As seis cordas têm funções diferentes: os dois bordões e as duas cordas rítmicas fazem o acompanhamento de forma contínua, ao mesmo tempo que um teclado modela as notas nas duas cordas melódicas centrais. O som produz-se no interior da caixa de ressonância, e já alguém a comparou a uma catedral em miniatura, lembrando que uma catedral é a caixa de ressonância do coro que entoa o canto gregoriano.

Durante cinco anos, o mestre-violeiro investigou, experimentou cordas, concebeu a caixa de ressonância mais adequada às cordas escolhidas. Depois desenhou as peças delicadas que têm de funcionar como o mecanismo de um relógio: as teclas com os seus martelos feitos em madeira de ácer, o estandarte que fixa as cordas, a cabeça com as suas cavilhas, a manivela de latão gravada que aciona a roda suportada pelos seus apoios. Tudo foi feito à mão: primeiro a madeira de pinho de flandres delicadamente moldada com o ferro quente; depois as abas laterais e o fundo em pau santo acabadas com o raspador e com as pequenas plainas que ele próprio fabricou; a seguir uma passagem com a lixa fina, antes da aplicação do verniz natural; finalmente a montagem da roda resinada e a aplicação das cordas de tripa e de aço.

Foi em Almeida, na semana passada, que eu encontrei por acaso o mestre-violeiro. Estava com o filho de oito anos, um menino prodígio que toca violino como um anjo. Ensinou-me que ser luthier é ser humilde, é ser persistente, é construir uma filosofia de vida, ser um consumidor consciente e frugal. Fernando Meireles é o mestre-violeiro, um dos melhores do mundo. Tem a sua oficina em Coimbra, começou sem tradição familiar, apaixonou-se pela arte, procura os materiais certos, as técnicas adequadas que ele próprio aperfeiçoa. Cada instrumento que ele fabrica é uma paixão.

No mundo formatado pela educação do nosso tempo perdem-se talentos, ignoram-se vocações, eliminam-se profissões. Na voracidade da urgência da aprendizagem do português e da matemática na idade que o currículo impõe, e não na idade em que a mente o pede, os alunos são reduzidos a peças de uma engrenagem que formata de forma igualitária. Quantos violeiros não se perdem nesse processo? Quantos talentos ficam por desabrochar! Quantas sanfonas ficam por fazer!

Ouça aqui um concerto de sanfona

segunda-feira, 1 de junho de 2015

A Pedra Filosofal

O discurso que o ministro da saúde, Paulo Macedo, fez, no passado dia 21 de maio, no Grémio Literário foi otimista e, se considerarmos as reações da assistência onde se encontravam muitos médicos, até convincente. A mensagem, reproduzida na primeira pessoa, foi a seguinte: numa situação difícil, decorrente de um contexto de crise económica e com restrições orçamentais, corrigimos desequilíbrios, fizemos acordos, pagámos dívidas, empregámos pessoas, melhorámos a qualidade do serviço. De tal forma que, no pós 25 de Abril, o sector da saúde em Portugal foi o que mais progrediu - mais do que a educação ou a justiça -, o que nos coloca, numa comparação mundial, ao nível dos países mais avançados.

Pela boca do orador ficámos a saber que sete milhões de pessoas recorrem anualmente ao SNS (os outros não precisam ou têm alternativa, por exemplo, seguros, ADSE, clinicas privadas, ...); que o SNS em Portugal faz 40 milhões de consultas ano - a que devem acrescentar-se mais 10 milhões se consideramos as consultas de enfermagem -; que faz 500 mil cirurgias; que atende 6 milhões de urgências - urgências que não são atendimento permanente, como acontece nos hospitais privados. Gastam-se em Portugal 3,8 mil milhões de Euros em medicamentos, montante do qual o Estado suporta 2,0 mil milhões, como paga também 700 milhões dos mil milhões de euros gastos em dispositivos médicos. Há médicos de família para 7,5 milhões de portugueses, mas estão em formação médicos que passarão a ser médicos de família, compensando os que se reformam e assim garantindo plena cobertura a curto prazo.

O ministro sublinhou que o sector da saúde (que representa 10% do PIB) tem um forte peso na economia. Referiu, a propósito, que o Estado recruta os médicos recém- licenciados a 100%, que é um caso único no panorama desolador do desemprego jovem. É um sector exportador, contribuindo com 1.100 milhões de euros para o prato positivo da balança comercial. E com um peso significativo na área da investigação e da inovação, ao citar como exemplo os trabalhos desenvolvidos pela Fundação Champalimaud e pelo Instituto de Medicina Molecular.

Mas é em relação ao futuro que ele colocou as maiores interrogações. Nós trabalhamos, diz Paulo Macedo, para que as pessoas vivam mais tempo. Ora, nos próximos 40 anos, os custos com a saúde vão agravar-se entre 50 a 100%, pois continuará a aumentar a esperança média de vida e vai ser necessário continuar a haver inovação. Estamos confrontados com doenças com peso crescente na despesa como a diabetes - que absorve 1% do PIB e afeta 900,000 pessoas -, as doenças crónicas, as doenças oncológicas... Vamos ter de reduzir os custos das infraestruturas de saúde e desenvolver os cuidados continuados e os cuidados de proximidade. Falou nos centros de referência a criar ao nível europeu e no interesse em que alguns deles fiquem sediados em Portugal ou Espanha.

Considerando que no futuro haverá mais pessoas a necessitar de cuidados de saúde e menos pessoas a contribuir para o sistema, a grande questão é a de saber como o sector irá ser financiado. Entende ser urgente a outorga de um pacto para a saúde que venha definir o modelo de financiamento do sector, nomeadamente, qual a percentagem do PIB que lhe deve ser afeta.

Desta conferência decorrem questões importantes, diria até centrais, para o nosso futuro coletivo. Convém que vamos pensando nelas e não metamos a cabeça na areia. Vencer a morte e alcançar a vida eterna foi o desejo permanente do homem pensante e consciente do seu destino terreno. Foi essa aspiração que originou a religião, que justificou os sacrifícios humanos, que esteve na base do culto dos mortos. Foi também essa a grande motivação dos alquimistas na busca incessante da pedra filosofal e do elixir da longa vida. Incapaz de vencer a morte, hoje, o homem preocupa-se em prolongar a vida. E se atentarmos no progressivo aumento da esperança de vida à nascença, aos poucos, está a consegui-lo. A grande questão será a de saber quais os limites para a esperança de vida e qual o preço a pagar pelo seu prolongamento.

No futuro, sabemos que a população do planeta vai ter de estabilizar. Acredita-se ser dez mil milhões de indivíduos a capacidade suportável pelo planeta, capacidade que pode ser atingível no final do presente século. Mas, em termos de crescimento populacional, nós confrontamo-nos com grandes assimetrias regionais. E são esperadas fortes tensões nas fronteiras que separam essas regiões. Veja-se o que se está a passar no Mediterrâneo e na pressão demográfica exercida pelos países do Norte de África.

O aumento da esperança de vida aliado à estabilização populacional vai ter como consequência um envelhecimento da população e uma quebra da sua taxa de natalidade. As consequências desse facto para a economia e para o futuro da espécie estão mal estudadas. Assim, numa situação de crescimento zero, prevejo que não se atingirá o desejado equilíbrio populacional. As ameaças ao rompimento desse equilíbrio vêm do campo da economia, da sustentabilidade ambiental e da vitalidade da espécie. Haverá uma diminuição relativa da idade fértil em relação à idade total, o que implica uma diminuição da capacidade reprodutora. Numa população progressivamente envelhecida a necessidade de cuidados filiais- cuidar dos velhos -,superará a necessidade de cuidados maternais- cuidar dos novos. Só que estes são instintivos - estão escritos nos genes - e aqueles são normativos, dependem das convenções e da ética. Uma contradição às leis da natureza que um dia se colocará à sociedade dos humanos.