segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O Caderno em Branco


Foi uma vaga reminiscência associada ao nome Bigotte e à Guarda que, no dia 19 de Janeiro, me levou ao Grémio Literário para assistir a uma sessão cultural. Ora, isso aconteceu no dia em que na RTP decorria o último debate presidencial. Acabei por trocar a feira de vaidades e o deserto de ideias por uma interessante conferência sobre literatura e crítica literária. Um velho escritor, Eugénio Lisboa, apresentava a obra de outro velho escritor, João Bigotte Chorão. Para mim, eram ambos praticamente desconhecidos. Porém, o nome Bigotte trazia-me á memória alguma coisa do meu tempo de estudante na Guarda. Como quem expia a culpa de ter andado desatento das pessoas importantes da minha cidade, penitencio-me agora disso, segurando as pontas dos fios a elas alusivos, sempre que passam ao meu alcance. Assim, a modos de quem constrói uma teia, tento agora deslindar esses fios para ver se, mais velho, ainda consigo perceber o que me escapou na meninice.

João Bigotte Chorão, num discurso pausado e cativante, falou do seu gosto pela literatura e pela leitura. Recordou a forma como o seu pai lhe lia, em complemento de outros lidos nas aulas, textos de autores escolhidos. E fez referência a um seu professor do Liceu normal de D. João III, em Coimbra, esclarecendo que se chamavam normais os Liceus onde os professores aprendiam a ser professores. Ao ouvir o nome de Domingos Romão Pechincha, reconheci que ele me era familiar, pois terá sido, no meu tempo, professor de português do Liceu Nacional da Guarda. Então, depois do que ouvi acerca dele, fiquei com pena de não ter sido seu aluno. Na verdade, não guardo muito gratas recordações dos meus mestres do Liceu da Guarda. Algumas excepções foram Carlos Costa, professor de Geografia, que me fez viajar por todos os mares e me fazia sonhar com países longínquos; Artur de Sousa Ramalho, a quem ouvi, pela primeira vez, falar em ecologia; Francisco Pissarra, professor de Filosofia, espécie de irmão mais velho, que nos guiou - a mim e a mais um pequeno grupo -, na aventura de editar o Riacho, um jornal juvenil; e Adriano Vasco Rodrigues, eclético e motivador, naquela altura ainda jovem e irreverente.

João Bigotte Chorão contou no Grémio que o professor Pechincha entregava aos alunos um caderno em branco onde eles poderiam escrever o que quisessem. E confessou, que foi a apreciação que aquele professor fez dos seus escritos nesse caderno, que muito o motivou para continuar a escrever. Esta história mexeu comigo. Porque ando a magicar, desde há uns tempos a esta parte, que se pode aprender mais num caderno em branco do que num livro cheio de fórmulas e esquemas. É que no caderno em branco os alunos tiram de dentro deles alguma coisa. Afinal, na etimologia da palavra, educação significa extrair e não introduzir. Educação vem de ex-ducere, que, traduzido à letra, poderia ter dado extraduzir, o movimento de dentro para fora. Exatamente o oposto de introduzir, o movimento de fora para dentro, que está na base do método que se impôs como paradigma do nosso sistema educativo.

O meu pai nunca me leu livros. Aliás, na nossa casa da Guarda não havia livros. Que me lembre, só tínhamos lá em casa A Velhice do Padre Eterno, do qual eu sabia recitar de cor inúmeros poemas e que o meu pai, anticlerical e do contra, muito se orgulhava de possuir. Mas havia a Biblioteca do Liceu, a Biblioteca Municipal e as Bibliotecas itinerantes da Gulbenkian. Foi nelas que encontrei muitos dos livros que mataram a minha sede de ler e de aprender. Também não tive a sorte de um professor Pechincha me ter posto à frente um caderno em branco, onde poderia ter vertido os poemas e as teorias que inflamavam o meu espírito juvenil. Em contrapartida, e "gracias a la vida, que me ha dado tanto", encontrei nos amigos, na vida profissional e na família um interminável fólio branco, onde fui escrevendo, e quero continuar a escrever, com perseverança e entusiasmo, um hino à alegria de viver...



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