segunda-feira, 9 de maio de 2016

O Grande Livro do Vale do Côa


O rio Côa do friso das minhas memórias de adolescente é o rio selvagem e agreste da velha ponte de S. Roque e das curvas da camioneta de carreira para a Guarda. Sempre suspeitei que esta imagem do rio era incompleta e redutora e que havia algo mais para descobrir. Quando, há um par de anos - num gesto simpático da Associação dos Territórios do Côa -, fui nomeado embaixador de Ribacôa, entendi que chegara a altura de conhecer melhor o rio e o território adjacente que me cabia representar e promover. No ano passado, fui com a Paula em peregrinação à nascente do rio na bonita serra de Malcata. E foi num sábado chuvoso do início deste mês de maio, aproveitando uma viagem a terras da Beira,  que resolvemos conhecer um pouco mais do rio na primeira parte do seu percurso, em terras do Sabugal.

Desta vez, ficámos hospedados no novíssimo hotel das Termas do Cró e foi a partir daí que decidimos aventurar-nos a percorrer a pé um pequeno troço da grande Rota do Vale do Coa. A intenção era conhecer a famosa ponte de Sequeiros. Saímos do hotel pelas 10 horas da manhã e fomos deixar o carro junto à igreja de Seixo do Côa. Na aldeia deserta, procurámos informações sobre o caminho a seguir. Um jovem que nos disse conhecer a zona, afinal, nada sabia dos caminhos do rio nem da Ponte de Sequeiros. Com a incredulidade não disfarçada de quem acha que as pessoas da cidade foram feitas para andar de carro e não a pé, uma senhora de meia idade indica-nos o caminho a seguir.

Descemos pela estrada até à ponte que separa as aldeia de Seixo do Côa e de Vale Longo e, antes de chegar à ponte, viramos à esquerda por uma estrada de terra ao longo da margem do rio. Nesta zona, o Côa ainda não corre apertado entre margens pedregosas e escarpadas como acontece no concelho de Almeida.  Entre freixos, choupos e prados verdes,vai  muito caudaloso em resultado das chuvas dos últimos dias. Alguns  trechos são dignos de postais ilustrados. Umas vezes espraiando-se em açudes espelhados, ouras rumorejando em velozes rápidos. Mais adiante, um pontão que ainda permite atravessá-lo mas já não é utilizado, assinala antigos caminhos usados pelos vizinhos destas terras..

Estamos em plena época da floração.A exuberância da primavera  revela-se em toda a sua força: rosmaninhos, dedaleiras, juncos, urzes  e margaridas espalham uma suave fragrância; giestas brancas, xaras, tojos e espinheiros exibem a  sua farta floração; os ramos das moitas de carvalhos começam a rodear-se do suave verde da folhagem; marmeleiros ostentam delicadas flores de um rosa pálido. Em tempos não muito recuados, nas veigas destas margens tudo se cultivava. Restos ferrugentos de noras atestam que aqui se irrigavam culturas, imagino batatas melões, melancias e hortícolas de todo o tipo. Hoje os campos das margens estão incultos e abandonados. Não se vêm sinais de labor na terra.  Apenas umas vacas, surpreendidas pela rara presença humana, interrompem o pasto e olham-nos com curiosidade.

Nessa manhã o tempo deu-nos tréguas, a chuva não apareceu, a temperatura fria da manhã amenizou, a luz filtrada pela calote de nuvens suavizava a claridade do sol e permitia fotografar a natureza. Após uma escassa hora de caminhada surge ao longe a ponte de Sequeiros.  É uma bela obra com três arcos redondos e sua torre portageira de que em Portugal só existe em Ucanha, no concelho de Tarouca, outro exemplar. Parece não haver consenso sobre a história desta ponte, se é romana ou se é medieval, mas sabe-se que na época anterior ao tratado de Alcanizes ficava na raia que separava Portugal de Leão e Castela

O regresso foi feito pela margem direita, em direcção a Vale Longo. Na nossa cabeça começamos a imaginar os alunos das escolas de Almeida, do Sabugal e de Vila Nova de Foz Côa a explorar os 200 Kms do percurso do rio. O plano é simples: grupos de 5 a 10 alunos ficam responsáveis por pequenos troços (5 a 10 kms). Cada grupo tem de caminhar ao longo do rio, estudar a geologia e a geomorfologia. explorar a fauna e a flora, desenhar, fotografar a paisagem, identificar e listar o património edificado.  Conhecer os habitantes e os seus costumes, ouvir as suas histórias. Integrar toda a informação na narrativa etnográfica e histórica da região. O resultado final será o grande Livro do Vale do Côa.

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