quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Guerra e Paz

Se perguntarmos ao cidadão comum se concorda com a existência de guerras, a resposta será, invariavelmente, a negativa. Contudo, na história da Humanidade, desde os tempos mais recuados, existe um interminável rosário de conflitos e de guerras a demonstrar que eles são inerente às sociedades humanas. Nos grupos nómadas de caçadores-recoletores havia as guerras tribais, onde os guerreiros lutavam corpo a corpo ou usavam as lanças da caça. Mais tarde, criaram-se exércitos organizados servidos por armas, cavalos e carros de combate. No século XIV, a pólvora, com a espingarda e a artilharia, veio alterar a forma de combater. No século passado, os combustíveis fósseis, sobretudo o petróleo, trouxeram a guerra mecanizada e a aviação. Mais recentemente, surgiu a guerra eletrónica com armas comandadas à distância e visando interferir com os sistemas de comunicação. Desde Hiroshima, as armas nucleares, com um efeito destruidor cego e massivo, pesam como uma permanente ameaça sobre o nosso futuro como espécie, e são, porventura, o fator mais dissuasor de uma nova guerra global.

Faz agora precisamente 100 anos que a Europa estava em estado de guerra. As tropas do Corpo Expedicionário Português aprontavam-se em Tancos para partirem para França. Iam participar numa guerra que não era a sua e sobre a qual nada sabiam.  A maior parte das praças vinha das áreas rurais do mais profundo de Portugal, sobretudo das regiões mais populosas do Minho, de Trás-os-Montes e das Beiras. Depois de muita discussão e de muita hesitação Portugal acabava por entrar na guerra ao lado da Entente Cordiale, integrado na organização militar inglesa a combater na frente da Flandres. A I Guerra Mundial foi devastadora. Terminou sem um um claro vencedor.  A Alemanha foi condenada ao pagamento de elevadas indemnizações aos vencedores, mas não houve responsabilização nem criminalização dos vencidos. Quando o armistício, que impunha condições que os alemães consideraram humilhantes, estava a ser assinado na carruagem de Compiègne começava a germinar a semente que viria a originar a II Guerra Mundial, ainda mais devastadora que a Primeira.

Acredito que esta guerra em dois atos foi a última guerra Global. Creio também que ela não poderia ter sido evitada. As tensões acumulavam-se por toda a Europa: O Império Austro-húngaro uma monarquia dual assente nas elites, formado em 1867, era uma estrutura anacrónica sobrevivente do antigo regime que enfrentava fortes sentimentos independentistas ou autonomistas dos muitos grupos étnicos: alemães, húngaros, checos, eslovacos, polacos, ucranianos, eslovenos, sérvios, croatas, romenos e italianos; a Alemanha e a Itália unificadas no final do século XIX procuravam afirmar-se como novas potências; o Império Otomana estava em desagregação; a Rússia czarista alimentava o sonho de um grande Império eslavo; a França, que ainda não se tinha recomposto das derrotas de Waterloo  e da guerra Franco-Prussiana, queria desforrar-se. À Inglaterra, senhora de um vaso império, não interessava a guerra, mas tinha de a enfrentar se ela se desencadeasse. A revolução industrial estava a mudar o mundo. Já se sabia que o petróleo - que não existia na Europa - seria o motor da economia, e todos olhavam para o Mar Cáspio e para o Médio Oriente como áreas estratégicas. Os Estados Unidos, distantes, ainda estavam adormecidos e não tinham ambições de dominar o mundo. A agricultura estava a dar lugar à fábrica e as elites ligadas à posse da terra estavam a ser substituídas pelas novas elites do poder industrial. Por tudo o que se disse, na ausência de um forum moderador, a guerra era inevitável. Faltava o rastilho, que surgiu em Serajevo no dia 28 de junho de 1914, com os assassinatos do arquiduque Francisco Fernando e da sua esposa Sofia

A guerra foi um flagelo em qualquer sociedade e em qualquer época. Sempre andou de mãos dadas com a fome, a peste e a morte, os outros cavaleiros do Apocalipse. Mas as guerras têm uma outra face: serviram a economia, e, paradoxalmente, trouxeram mais segurança à humanidade. Com efeito, as guerras funcionam nas sociedades como as infeções num organismo vivo. Elas provocam o aparecimento de anticorpos, aumentam as defesas do organismo infetado e acabam por protegê-lo contra novas infeções. Também as guerras provocam o aparecimento de leis e formas de organização com o objetivo de  evitar novas guerras. A criação da Sociedade das Nações no final da I Guerra Mundial, da ONU, após a II Guerra Mundial, e até mesmo o ideal subjacente à União Europeia são a prova disso. O mundo é hoje mais seguro do que era no passado. Nunca foi tão baixa a probabilidade de um ser humano morrer de morte violenta. Só a guerra nos faz amar a paz, da mesma forma que só a doença nos faz aspirar à saúde.

Nos dias de hoje, as tensões voltam a acumular-se. A luta pelas fontes energéticas do Médio Oriente, o fundamentalismo religioso que alimenta o terrorismo, as pressões demográficas que provocam migrações em massa, a crise financeira que se desenha no horizonte, como consequência do anémico crescimento económico, são sinais perturbadores. No entanto, muita coisa mudou no último século. Um confronto direto entre potências nucleares não é possível, pois tal, a acontecer, seria uma guerra sem vencedores. Os Estados Unidos, que no pós guerra, se envolveram em guerra na Coreia, no Vietnam e no Iraque, optam hoje por uma estratégia de não envolvimento direto nas operações terrestres -"no boots on ground" , deixando essa tarefa para outros. Nos países do Ocidente já não existe a motivação do patriotismo nem religiosa para fazer guerras. Combate-se por dinheiro e o salário dos combatentes está associado ao risco da sua intervenção.  E, apesar disso, muitos começam a acreditar que só uma guerra - a guerra que não pode existir!- virá libertar as tensões e trazer uma nova ordem política económica e social. Um dilema angustiante...

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