segunda-feira, 25 de abril de 2016

Notícias

As notícias, que já têm direito a um museu em Sintra, são um fenómeno dos tempos modernos. Foi em 1832 que o escritor, tradutor e jornalista Charles-Louis Havas fundou, em Paris, a primeira agência de notícias (a qual, mais tarde, se transformaria na France Press). Anos depois, dois ex-colaboradores da Havas levaram o conceito a Londres (Paul Reuter) e a Berlim (Bernhard Wolff). A comunicação social, tal como hoje a entendemos, começava a sua extraordinária aventura.

No século XVI, em Veneza, já tinha surgido uma folha mensal: a Gazzeta. Mas a produção e difusão em massa de notícias nasce e acompanha as grandes mudanças trazidas pela revolução industrial. O século XIX é o século de ouro do jornalismo que vê nascer muitas novas profissões: o editor, o jornalista, o repórter, o correspondente, o redator, o revisor, o colunista... Os jornais proliferam por toda a Europa e nos Estados Unidos. Em 1821 surge em Inglaterra The Guardian, e em Nova York são editados primeiro o New York Sun em 1833 e, mais tarde, o New York Times em 1851. Joseph Pulitzer e William Hearst investem na nova indústria e são os protótipos dos magnates da imprensa. São criadas agências de notícias um pouco por toda a parte. Em 1846, na América, são os próprios jornais que se associam para criar a Associated Press.

O homem culto do século XIX é um ávido leitor de jornais. O prezado assinante não dispensa a leitura diária da folha que lhe traz as notícias da sua cidade, do seu país e do mundo. Em Portugal, ninguém melhor do que Eça de Queirós representa esse homem e essa época: ele foi o diretor e jornalista irreverente do Distrito de Évora, foi, juntamente com Ramalho Ortigão, o crítico mordaz das Farpas, foi o repórter atento que noticiou a inauguração do canal de Suez, foi diretor e editor de revistas, foi folhetinista. E foi ainda como correspondente de jornais portugueses e brasileiros que, a partir de Newcastle e de Paris, escreveu crónicas admiráveis, as quais foram reunidas, postumamente, nas Cartas de Inglaterra, nas Notas Contemporâneas ou nos Ecos de Paris.

O jornalismo e a globalização evoluem de braço dado, e, por vezes, confundem-se. A comunicação social é um espelho onde a sociedade se revê. E esse espelho, pelo efeito da reflexividade (tal como a definiu Karl Popper), condiciona o comportamento coletivo, desencadeia paixões, estimula polémicas, incendeia ideais, fomenta revoluções. Com a rádio e a televisão, impulsionados pelo consumismo e pela publicidade, instala-se e floresce o império dos media. As classes influentes na economia, na política, no desporto e no espetáculo passam a existir na comunicação social e para a comunicação social.

Através das notícias vemos e percebemos a sociedade; elas são os nossos olhos e, no complexo mundo globalizado, temos necessidade de notícias para ter referenciais. Sem notícias perdemos o sentido de orientação social. Mas, da mesma forma que os nossos sentidos apenas nos permitem apreender a imagem da realidade exterior, também as noticias não são a realidade social, mas apenas uma representação desta. E tal como os sentidos distorcem a realidade exterior também as notícias, com frequência, deformam e adulteram a realidade social.

Diz-se que Havas e Reuter usavam pombos correios para receber as noticias do estrangeiro que difundiam em França, na Inglaterra e na Alemanha. Mas o telégrafo e, sobretudo, as ondas hertzianas, que levaram a voz e a imagem a todo o planeta, pareciam ser o impulso tecnológico definitivo e insuperável. Mas eis que na última década do século XX advém um novo sobressalto: a Internet. Esta nova forma de comunicar está a interferir no mundo globalizado com a cumplicidade entre a economia e a indústria da comunicação social. A produção da notícia democratizou-se, o comentário pode ser feito pelo cidadão comum, a informação extravasou dos canais tradicionais. Por sua vez, as redes sociais interferem perigosamente com a ordem global.

São as agências noticiosas e os donos dos media que organizam o mundo. Entretanto, criou-se uma preocupante cumplicidade entre a globalização (entenda-se a economia global) e a comunicação social. Elas alimentam-se uma da outra. A comunicação social pode ser incómoda mas é necessária à economia, pois dá-lhe um sentido e alimenta as expectativas que a movimentam. Ela constituiu-se como um novo poder. A sua enorme força e influência, em regimes políticos desestruturados, leva à censura. Nas democracias suportadas pela economia liberal é o poder económico através da dependência laboral, dos lobbies e das agências de relações públicas que, muitas vezes, dita a conveniência ou inconveniência das notícias. Isso coloca os profissionais dos media, mormente os jornalistas, perante um dilema. Serão eles capazes de manter a independência e de o superar? A divulgação das notícias relativas aos offshores do Panamá levam-nos a crer que sim.


segunda-feira, 18 de abril de 2016

ASTA, o Reino Improvável


Imaginem uma aldeia perdida nas terras ingratas e agrestes de Riba-Côa, abrasadas no verão pelo sol das calmarias e endurecidas no inverno pelo frio das geadas. São terras de pastagens magras para cabras e ovelhas, onde cresce a esteva e a giesta  e onde afloram as formas bizarras dos barrocos de granito. Nelas, noutros tempos, cultivava- se centeio nas tapadas de sequeiro  e batatas nas leiras junto às ribeiras, ou nos hortos regados pela água tirada dos poços com recurso às noras ou aos desajeitados picanços ou cegonhas.

Imaginem essa aldeia quase deserta, esvaziada por sucessivas sangrias das suas gentes. Primeiro, no final do século XIX, quando o comboio as levou para a África e para o Brasil. Depois, na segunda metade do século XX, quando saltaram fronteiras atraídas pela prosperidade da Europa em reconstrução. Os mais velhos que ficaram, e ainda guardam as memórias das duras labutas com a terra madrasta, são frugais, rudes e, às vezes, desconfiados. Escondem-se em casas fechadas e defendem a terra herdada - que já velhos deixaram de cultivar - atrás de muros de pedra, que as não protegem de ninguém nem de coisa nenhuma.

Conta uma lenda - todas as histórias belas acabam em lendas! - que, certo dia, um insólito grupo, vindo não se sabe de onde, resolveu preencher o vazio criado nestas terras e voltar a dar-lhes vida. Chegaram  comandados por uma mulher que, à semelhança de Joana d'Arc, vinha montada num cavalo branco e ostentava uma armadura resplandecente. Não usava lança, não trazia arco, nem flechas. A sua arma era a vontade indómita de voltar a fazer renascer a vida. As suas munições eram o amor pelos mais fracos e a crença de que todos somos diferentes e, afinal, todos somos iguais. Os soldados que a acompanhavam não desfilavam em pose marcial, mais pareciam um bando de pardalitos caídos dos ninhos, um de asa derreada, outro coxeando, outro com o pio rouco e desafinado. Mas entoavam cânticos de esperança e enchiam o ar com a alegria dos seus chilreios. Foi este exército improvável que, pacificamente, com a sua felicidade conquistou e ocupou a aldeia.

E o milagre aconteceu. As casas voltaram a ter gente. Nos campos abandonados cresceram de novo batatas, cebolas, feijão... As ferramentas das velhas oficinas de carpintaria voltaram a afagar a madeira. Voltou a ouvir-se o som ritmado dos teares. O barro ganhou expressão e novas formas. A lã voltou a ser fio e a ser tecida. A criatividade produziu arte e beleza. Até os velhos resistentes da aldeia, contagiados pela luz que tudo envolvia, começaram a derrubar os muros e a abrir de novo as portas das suas casas.

A heroína desta lenda imaginada é Maria José Dinis. A Cabreira do Côa a aldeia que revitalizou. A ASTA o reino que inventou. Os companheiros são os príncipes desse reino que dão sentido à lenda.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Portugal de Lés a Lés


Motivos que se prendem com o trabalho da Fundação Vox Populi, levaram-me, na última semana, a percorrer Portugal de lés a lés. Na tarde do dia 6 de Abril, estive, com a minha mulher, na Escola secundária de  Vila Real de Santo António numa sessão de formação com professores locais sobre técnicas de realização de sondagens de opinião.  No sábado, dia 9, encerrávamos um périplo de quatro dias com um jantar em Caminha, num agradável convívio com os meninos do Jardim de Infância.  Para trás ficava  a visita a uma  fábrica de burel em Manteigas, a visita à escola infantil do Corgo em Vila Real (Trás os Montes), uma reunião com o diretor da Escola de Caldas das Taipas, uma reunião com a vereadora da juventude da Câmara de Braga e uma sessão de formação, com professores do Nepso, no Centro Educativo da Facha, em Ponte de Lima.
  
Nestas digressões, evoco o Portugal da minha infância, das aldeias remotas, com agricultores, feiras de gado, tabernas, casas de hóspedes  e casas de pasto. Onde se  conduzia pelas antigas estradas "feitas ao quilómetro", serpenteando por montes e vales. O Portugal de hoje é, numa visão de relance, um país de eucaliptos e autoestradas. É, todo ele, um país urbano. As casas das aldeias, equipadas com todos os confortáveis electrodomésticos e com garagem para o automóvel, em nada diferem das casas das cidades. Nos dias de hoje, já nenhum português ganha a vida amanhando a terra com  a força dos braços e com o suor do rosto. As pensões, de restaurante no primeiro andar, transformaram-se em hotéis de charme ou em casas de turismo em que a estadia se reserva no "booking.com".  As pizzarias os Mc´donalds e os fast food  das grandes superfícies - onde se bebe cocacola e refrigerantes - substituíram as velhas tabernas e casas de pasto onde vendia vinho a granel.

Não ousarei dizer que o Portugal e 2016 é um país melhor ou pior que o Portugal de 1960, que evoco atrás. É um país diferente. Mais confortável, mais civilizado e mais culto. Com escolas mais modernas e mais bem equipadas.  Com muito  do património recuperado e com os centros históricos das localidades limpos e embelezados. Com gente mais obesa - em geral, nos restaurantes come-se mal e em demasia-, e gente mais envelhecida. E mais desesperançada. Nota-se  uma grande desordem urbanística nas novas construções, como se fossem colagens de projetos individuais  sem a preocupação da harmonia coletiva. O velho choca com o novo, o rico destoa do pobre, a nobreza convive com a vulgaridade, o bom e o mau gosto, lado a lado. Sente-se que, na sofreguidão do crescimento e da convergência com a Europa, se queimaram etapas. Tudo mudou demasiado depressa.

Desta viagem pelo Portugal integrado na Europa, recordo alguns clichés: em Vila Real de Santo António  a Escola é moderna e arejada, mas o equipamento ficou a meio; as máquinas das oficinas da antiga Escola Industrial foram vendidas a peso e ao desbarato, e os alunos não têm, agora, condições para poder trabalhar com as mãos; talvez por isso, na fábrica de burel em Manteigas dizem-nos que os jovens não gostam do trabalhar com as máquinas; uma mãe, empregada de um hotel no Minho, queixa-se da qualidade da educação que é ministrada à sua filha de 13 anos; em Ponte de Lima, no dia 8 de Abril, às 22 horas - nós, que em Lisboa nunca vamos ao teatro -,  entramos, por acaso, no velho teatro Diogo Bernardes e assistimos com mais outras sessenta pessoas a uma bem cuidada representação da "Cantora Careca" de Eugene Ionescu.

A educação é o caminho.  A este propósito, repesco do facebook da Câmara Municipal de Caminha o seguinte relato que nos enche de  orgulho e alimenta a esperança. O que ali se escreve, só por si, justificou a viagem:
No passado dia 9 de Abril, as crianças do jardim de Infância de Caminha promoveram um jantar-festa do bacalhau. O jantar continha todas as iguarias gastronómicas ligadas ao bacalhau e que muitos desconheciam como as caras de bacalhau, a língua de bacalhau, os samus, o bacalhau de cebolada, entre outras. As crianças orientadas pelas educadoras Manuela e Conceição  estão a concorrer ao projeto “Rato da Biblioteca” da Fundação Vox Populi com o tema “As outras caras do bacalhau”. Através deste estudo pretende-se que as crianças e a comunidade guardem para o futuro a herança, e a história dos homens - “as outras caras do bacalhau” - que durante todo o século XX andaram à pesca do bacalhau. Pretende-se, ainda, recolher depoimentos dos pescadores que partiam para as águas geladas da Terra Nova e da Gronelândia e das mulheres que ficavam com os filhos. 
Como parceiros na construção do conhecimento, estimulando os mais pequenos investigadores de Caminha, além da já referida Fundação Vox Populi, encontra-se a União de Freguesias de Caminha e Vilarelho, a Câmara Municipal de Caminha, o Museu Marítimo, Museu Navio Santo André,  o Agrupamento de Escolas Sidónio Pais, Pescadores Locais e  Encarregados de Educação.  

segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Querer e o Ser


Quem esperava - como foi o meu caso - que o jornalista Ricardo Costa fosse ao Grémio Literário dissertar sobre o tema do ciclo de conferências "Que Portugal queremos ser, que Portugal vamos ter", viu defraudada a sua expectativa. Ricardo Costa, antes diretor do Expresso e agora o novo diretor da Impresa (Grupo Balsemão), é um jornalista com um raro e apurado sentido de análise política. A esta qualidade alia rigor e independência, esta bem demonstrada pela atitude que tomou quando o seu irmão, António Costa, se candidatou a primeiro ministro. No passado dia 29 de março, no Grémio, escolheu falar sobre a atualidade política e sobre os jogos que a condicionam. O essencial da sua palestra já foi resumido pelo jornalista Silas de Oliveira no renovado site do Clube Português de Imprensa que pode ser consultado aqui.

Os jogos políticos - que são jogos de poder - lembram-me os jogos de estratégia, muito particularmente o xadrez, que jogo desde a meninice e me apaixonou na minha juventude. O jogador de xadrez tem de saber lidar com a multiplicidade das peças, de ter presente a abrangência de todo o tabuleiro, de ser capaz de antever as possíveis jogadas do adversário, de ser perspicaz para avaliar com rigor o risco de sacrificar uma peça e dessa forma ganhar uma vantagem posicional. Além disso, tem de ser psicólogo para não denunciar fraquezas, perseverante para explorar debilidades, ousado para surpreender o adversário com jogadas insólitas ou imprevistas e calculista para saber utilizar o tempo a seu favor.

Os jogos políticos exigem muitas qualidades presentes no xadrez, mas, ao contrário deste, não são jogos de soma zero como aqueles onde uns ganham aquilo que outros perdem. Na política, o contexto e até as regras do jogo mudam continuamente. O tempo, a economia, a conjuntura internacional, e não só, podem alterar as coisas e reduzir ou aumentar o prémio que está em jogo. No final, todos podem ser ganhadores ou perdedores. Os jogos políticos não são um passatempo ou um entretenimento entre jogadores, eles dizem-nos respeito e condicionam o nosso futuro coletivo. Por isso, deveriam sujeitar-se a certas regras - mesmo que se ficassem no plano da ética –, que tivessem como objetivo elevar o valor do prémio e não apenas a sua disputa. Mas, tal só é possível com um compromisso assumido por todos os intervenientes. O "Portugal que queremos ser" é, ou deveria ser, o compromisso consensual entre os jogadores que mais não são do que os políticos que governam os partidos ou nos governam a nós.

No quadro do nosso sistema político-partidário, como compromisso mínimo, existem duas premissas que são aceites - será que são? - por todos: a integração na Comunidade Europeia e a aceitação das regras da economia de mercado. Daqui decorre, implicitamente, a obrigatoriedade de pagar as dívidas que se contraem e o respeito pelos tratados assinados. A aceitação da economia de mercado pressupõe a adesão ao princípio sagrado de que é imperativo fazer crescer a riqueza produzida. E, deste principio, quer se queira quer não, deriva, por sua vez, o primado da economia sobre a política. Existe, é claro, a questão da soberania que ninguém põe em causa. Todavia, um país soberano não pode depender de credores, nem pode mendigar o perdão ou a renegociação da divida. Contudo, tem de ter uma estratégia para a economia e para a sua competitividade, para garantir sustentabilidade financeira, indispensável à defesa do Estado Social, à manutenção da coesão regional – de molde a não deixar desaparecer o nosso abandonado interior – à divulgação da cultura, uma herança e um património de muitos séculos. Na política externa deve merecer destaque o espaço reservado à lusofonia. Além disso, a soberania tem de compaginar-se com os direitos que a Constituição garante aos seus cidadãos, nomeadamente, em áreas tão sensíveis como a educação e a proteção na infância, na doença, na incapacitação e na velhice.

Saí do Grémio Literário interrogando-me sobre se algum político se preocupa verdadeiramente com o Portugal que queremos ser. Veio-me à memória um outro palestrante que recentemente, ali no Grémio, afirmou que muitos políticos trocam as convicções pelas conveniências. E convenço-me de que o tema da conferência esteve ausente do discurso de Ricardo Costa pela simples razão de que "o Portugal que queremos ser" não está presente no tabuleiro de jogo dos nossos políticos. E, como bom jornalista que é, ele não tem de falar sobre o que não acontece; afinal, isso não é notícia. Nesta ordem de ideias, e para nosso descontentamento, "o Portugal que vamos ter" vai continuar a ser mais do mesmo.