terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Visitar o passado para encontrar o futuro

Para falar no ciclo de palestras “ Que Portugal na Europa, que futuro para a União?” esteve, no passado dia 27 de janeiro,  no Grémio Literário o eurodeputado Paulo Rangel.  Foi uma sessão inspiradora, na qual o ilustre palestrante exibiu um grande conhecimento das questões europeias  e uma vasta cultura na área da História e da Ciência Política. Começou por dizer que se assiste a uma grande incerteza na Europa e no Mundo, o  que não o espanta pois essa tem sido a norma ao longo da atribulada história do Velho Continente. História que, na sua opinião, retoma o seu curso normal depois de ter ficado congelada durante o longo período da guerra fria.

Centrando, a seguir, a sua dissertação no conceito de Estado, confronta-nos com uma interrogação:  o que é o Estado? -  para logo nos dizer que é uma  abstração política, na sua opinião a coisa mais parecida com Deus, pois não se vê, é omnipresente e tudo comanda.  E, afinal, o Estado moderno é uma construção recente da Europa, que ocorreu no século XVII, após o tratado de Vestfália que encerrou a guerra dos 30 anos.  Lembra que existência de um Estado pressupõe três condições: um povo, um território e uma soberania. Para o exercício da soberania é, pois, essencial a dimensão territorial do Estado. E é sobre este aspecto que o eurodeputado está a ver ocorrerem alterações, considerando que no mundo de hoje, caracterizado pela facilidade de comunicações, pela economia digital  e pela mobilidade, o Estado tornou-se  permeável e está a desterritorializar-se. Considera que  as pessoas contam mais do que o território e que esta é uma tendência irreversível, pois não se pode "parar o vento com as mãos".

Estas ideias inspiradoras suscitaram a  a minha reflexão e, ajudado por algumas notas soltas, atrevo-me a interpretar o pensamento do conferencista. Pensando num qualquer Estado da União Europeia, damos-nos conta que o poder corporativo das instâncias de Bruxelas vem de cima - das leis, dos consensos, dos princípios -,  mas o poder democrático do Estado vem de baixo, do povo. Ora existe aqui um choque de poderes entre a democracia do Estado e a "politeia" - uso a expressão para definir o conceito de um poder que não está ligado a uma democracia representativa de base territorial - da União. Esta é uma contradição que é inerente à mal resolvida dialética da soberania no processo da construção europeia e que necessita urgentemente de ser superada. O referendum para o brexit é um bom exemplo dessa contradição pois vem colocar uma questão delicada: considerando que a saída ou a  permanência do Reino Unido na União não é um assunto exclusivamente inglês - na medida em que afeta os cidadãos de todos os outros países europeus -, podem os ingleses, sozinhos, tomar uma decisão que não lhes diz respeito só a eles? Qual deveria ser - ou deveria ter sido - o papel das instâncias da União Europeia numa situação destas? Pode argumentar-se com a insuficiência ou a deficiência dos tratados que permitem tal coisa, e, nesse caso, haverá que admitir que estão mal feitos e deverão ser corrigidos.

"É importante investigar o passado, pois isso pode conduzir-nos a descobrir o futuro", foi outra interessante ideia expressa no Grémio. Pois, certamente, encontraremos no tempo passado - anterior ao Estado - formas de governo que podem inspirar-nos para encontrar soluções de governação para o futuro. Evoco, por exemplo,  as Ligas que agregavam as cidades-estado da Grécia Antiga. E penso na importância em trazer para a UE, a experiência agregadora da Inglaterra, acumulada ao longo de séculos - que, ao contrário da França,  nunca se autodenomina de "Estado" - mas que construiu e governou um vasto império, que  uniu quatro Estados e criou a Commonwealth.  Rangel assinalou, a este propósito, que a Inglaterra nunca saiu da Idade Média - e, digo eu, talvez nunca tenha entrado na União Europeia -, e aflorou a suspeita de haver por parte dos  ingleses  ciúmes do sucesso do modelo europeu, liderado pela Alemanha, próximo, na sua concepção e filosofia, das normas e a da constituição inglesas.

Mas a incerteza de que falou Paulo Rangel está muito vinculada às vicissitudes do curto prazo. A construção europeia foi feita à sombra da América, e assentou em três pilares:  o plano Marshall, a Nato e o liberalismo económico (em oposição ao marxismo). Até agora, a aposta da Europa na questão da defesa assentou exclusivamente  na Nato, e, no plano económico, na criação de um espaço atlântico alargado, cujo primeiro passo seria o - agora já improvável - TTIP. A relação com a Rússia pós soviética tem sido ambígua: influenciada, por um lado, pelos interesses americanos e pela memória traumática dos novos membros do Leste , mas influenciada, por outro lado, pela dependência energética do gás russo. Ora, para a Europa, a questão energética é crucial. A única alternativa de abastecimento está no Médio Oriente e concretizá-la passa por manter uma forte presença americana nessa região. A eleição de Trump veio baralhar tudo: é incerto o futuro da Nato, e mais incerta ainda é a manutenção da doutrina Carter que advoga ser o Médio Oriente uma zona de interesse estratégico dos Estados Unidos.

Os governos dos Estados europeus precisam de uma União Europeia forte pois  já não conseguem resolver os seus problemas no padrão territorial. Por sua vez, para se constituir como espaço de poder super-estatal, a União Europeia precisa de resolver dois problemas: a sua debilidade militar e a sua dependência energética. A solução do primeiro, mexe com os Estados Unidos (através da Nato); a do segundo, com a  Rússia. A Europa fica, assim, condenada a ter de negociar com Trump e com Putin. A forma de os resolver é o maior desafio que se apresenta aos líderes europeus. Ou, melhor dizendo, é um problema para os alemães, pois sem a Alemanha a Europa não existe. Começa, entretanto,  a generalizar-se a ideia de que na superação deste desafio reside a grande oportunidade da Europa.

Sem comentários:

Enviar um comentário