terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

A Tipografia do Sr. Palaio

Ao princípio da tarde ensolarada do passado dia 22 de dezembro apanhei, no Cais do Sodré, o barco para o Seixal. O destino era a Tipografia Popular onde ia juntar-me a um grupo de miúdos que frequentavam a oficina de tempos livres das férias do Natal da Fundação Vox Populi. Viagem rápida, águas calmas, poucos passageiros. Fiz, a pé - uns escassos 15 minutos -, o percurso  entre o cais de desembarque e a Praça Luís de Camões situada no centro histórico da vila.  O grupo de crianças com os acompanhantes da Fundação tinham viajado de autocarro e já se encontravam na tipografia, ouvindo com interesse as explicações - feitas com muita vivacidade e contagiante entusiasmo - do responsável por este espaço, um velho tipógrafo, o sr. Palaio.

As antigas tipografias estão a desaparecer. E desaparece com elas uma vivência de 500 anos e as inúmeras profissões a elas associadas: tipógrafos, compositores, preparadores de tintas, paginadores, gravadores, fotogravadores, revisores, operadores de máquinas, etc.... A grande revolução que foi desencadeada pela prensa de Gutemberg está a ser ultrapassada pela tecnologia digital. Mas os mais novos devem conhecer a história da imprensa e perceber o labor de milhões de seres humanos que sujaram as mãos na tinta das impressoras e ajudaram a disseminar conhecimentos e a divulgar a poesia e a prosa que encantou muitas gerações. Por isso é de louvar a iniciativa da Câmara Municipal do Seixal ao preservar a Tipografia Popular para fins museológicos e didáticos.

A aventura do homo sapiens, que o conduziu à Civilização, teve como primeiro passo a aquisição da linguagem ocorrida há 40 mil anos. E foi há cinco ou seis mil anos, com a invenção da escrita, que se consolidou a caminhada imparável do Homem na senda do conhecimento. Os signos, gravados na argila mole ou esculpidos na pedra, deram origem à escrita - primeiro a escrita cuneiforme dos Sumérios, os hieróglifos egípcios e a escrita pictográfica de Creta, depois já grafadas com o alfabeto dos fenícios, o grego, o latim e tantas outras línguas modernas. Com a escrita, os homens começaram a criar memória para as gerações futuras. Nascia a História.

Há cerca de 4000 anos, no Egipto, nasceu o livro.  Uma das razões foi a invenção de um novo suporte de escrita, o papiro, fabricado a partir das fibras laminadas do caule de uma planta (o cyperus papyrus) que crescia abundantemente nas margens do Nilo. As laminas fibrosas depois de finamente cortadas eram lavadas com água e sal  e dispostas em duas camadas cruzadas, uma vertical e outra horizontal. Em seguida, eram prensadas para fazer folhas que se uniam para serem enroladas. O rolo de papiro era o volumen que o escriba ia desenrolando e nele escrevia com o seu cálamo, usando tintas feitas a partir do carvão, do ocre e de pigmentos naturais. Durante o Império Novo, generalizou-se, entre os egípcios de todas as classes sociais, o hábito de colocar junto aos corpos mumificados dos defuntos um volumen com as preces e as instruções para lidar com os deuses do além, superar as dificuldades de enfrentar juízo final, e, finalmente, alcançar a luz e a imortalidade. Era o famoso Livro dos Mortos. Por esta razão, nasceu, no Egipto antigo, uma importante indústria ligada à preparação do papiro e à escrita.

Na Europa, devido à falta de papiro, o pergaminho foi o material mais usado para escrever até ao aparecimento do papel, no século XIII. O pergaminho é a pele de cabra ou de ovelha cuidadosamente preparada para servir de suporte de escrita. As folhas de pergaminho eram encadernadas entre placas de madeira para formar os codex, que já tinham o aspeto dos livros atuais. Foi no pergaminho que se gravou a memória do Portugal medieval, hoje preservada na Torre do Tombo: os forais, os tratados, os testamentos, os registos de propriedade (os tombos), os cancioneiros, as iluminuras dos livros religiosos, os mapas das descobertas... O custo do pergaminho - sobretudo o velino feito a partir de peles de bezerros nados mortos - tornava-o um material valioso. Por vezes, eram apagados textos de codex antigos sendo o pergaminho reaproveitado para novos escritos. Estes livros são conhecidos como palimpsestos. A partir de um palimpsesto foi possível recuperar um famoso trabalho de Arquimedes julgado perdido e que foi descoberto por debaixo de um texto de orações que tinha sido escrito sobre aquele.

Foi com a prensa e com o papel que, a partir do século XV,  se espalhou o conhecimento, se popularizou a literatura, se difundiram as notícias e se iniciou a globalização. Estamos, agora, a entrar aceleradamente numa época nova, a era digital. O papel está ceder o lugar às telas das televisões, dos computadores, dos notebooks, dos smartphones. Estas telas interativas que combinam a escrita e as imagens, são como um palimpsesto onde tudo se apaga e tudo se reescreve de novo. A facilidade de escrever com os dedos da mão e difundir a informação de uma forma anónima e volátil está a pôr em causa o conceito de rigor e de verdade. Os arquivos digitais estão em parte incerta, são frágeis, podem esfumar-se no simples gesto de pressionar uma tecla, e - o mais grave de tudo! - são manipuláveis... Começam, felizmente,  a aparecer os vigilantes da rede e os grandes projetos de contribuição partilhada -  de que wikipedia é um bom exemplo -, mas ainda é cedo para avaliar o impacto para a humanidade  desta revolução. Mas já pressentimos de que, daqui por diante, tudo será diferente.

E velha Tipografia Popular do sr. Palaio, perdida na bela vila do Seixal, ali continua à espera de uma visita.  Há-de ser vista, pelos mais novos, como uma coisa  arcaica, obsoleta, e muito pouco userfrendly. E, afinal, está tão próxima de nós.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Dilema Inquietante

Começado a explorar de forma continuada na segunda metade do século XIX, o petróleo rapidamente se impôs como uma matéria prima essencial à humanidade, tendo sido a grande impulsionadora da economia mundial nos últimos 100 anos. Pela sua conveniência - alto valor calórico, abundante, fácil de armazenar e de transportar -, não tem substituto como fonte de energia, nem se prevê que possa vir a ter nas próximas décadas. Foi há cerca de dez anos que comecei a interessar-me pelos assuntos relacionados com o petróleo, e muito do que escrevi no "Mundo em Transição", publicado em 2013, prende-se com alguns deles : a situação dos grandes países produtores e exportadores; as reservas existentes, a viabilidade da sua exploração; o estado de esgotamento das grandes jazidas; as prospeções em novas bacias de águas profundas, no litoral do Brasil, nas zonas Árticas e no Alaska; as novas formas de produzir derivados do petróleo a partir do carvão e do gás natural; a produção a partir das "tar sands" da província de Alberta no Canadá e a partir de  "bitumen" na  região de Orinoco, na Venezuela. Procurei conhecer e acompanhei a recente e inovadora tecnologia do fracking que permite extrair petróleo de camadas xistosas profundas, e trouxe um novo otimismo aos americanos - que voltaram a acreditar ter alcançado a sua independência energética, uma espécie de "Santo Graal", cuja busca é, sem sucesso,  perseguida pelas sucessivas administrações, desde o primeiro choque petrolífero, ocorrido no início dos anos 70 do século passado.

Durante os últimos dez anos, conheci e contactei com especialistas, participei em conferências, segui os blogs de referência, e com geólogos, engenheiros de reservatórios, economistas e outros especialistas aprendi muito sobre o sector petrolífero. Acompanhei os acesos debates acerca da iminência do chamado "pico do petróleo", expressão utilizada para significar o momento em que a produção mundial de crude começará a diminuir. Fiz-me membro da ASPO (Assotiation for the Study of Peak Oil and Gas), uma associação que estuda este assunto a nível internacional. Enfim, interessei-me pela geoestratégia do petróleo, principal causa dos conflitos do último século, e tentei perceber as motivações subjacentes à construção das teias onde se enredam diferentes interesses no Médio Oriente.

Uma das minhas mais importantes "descobertas" foi a de que  o petróleo foi o grande responsável pelos crescimentos económico e demográfico dos últimos 150 anos. Dele dependem a mobilidade, a indústria dos plásticos, a  produção de alimentos, a construção das grandes infraestruturas. Muitas das outras formas de energia (por exemplo a hídrica e a nuclear), a exploração de carvão, as novas energia renováveis (a eólica e a solar) dependem, elas próprias, do petróleo.  O consumo mundial de petróleo e o crescimento do PIB global estão perfeitamente correlacionados. A economia não consegue manter-se sem crescimento, e os instrumentos financeiros que a suportam - nomeadamente o crédito - estão intimamente associados e dependentes desse crescimento. Esta relação permitiu-me entender melhor as causas da crise de 2008 - que não foi mais do que o início de uma crise de crescimento - e confirmar o acerto das previsões do livro "The Limits to Growth" publicado em 1972, que é a minha referência pelo rigor dos seus pressupostos e pelo alcance das suas conclusões.

Não ignoro o contributo da revolução digital para termos chegado onde chegámos. Desde o início da Revolução Industrial que o consumo de  energia e o desenvolvimento tecnológico evoluíram lado a lado.  Por vezes, hesitamos na valorização relativa destes dois "inputs" - qual é o mais importante? - para o progresso económico, social e civilizacional.  A tecnologia, é certo, só tem um sentido, o do aperfeiçoamento; por outro lado, a energia fóssil é limitada e um dia irá escassear. Os dois fatores estão intimamente interligados e não se podem dissociar. A tecnologia, sobretudo a digital, está a provocar uma verdadeira mutação na  nossa espécie que só encontra paralelo na aquisição da fala e na invenção da escrita. Mas existe o reverso do salto em frente que representa a digitalização do nosso modo de viver: devido ao acréscimo de complexidade ficamos mais especializados mas, ao mesmo tempo, muito mais dependentes de ferramentas falíveis. Energia e tecnologia não são, por isso, inputs comparáveis. Para o organismo social que a é a humanidade, a tecnologia representa os neurónios que o dirigem. A indispensaável energia é o sangue que o alimenta.  E a falha de qualquer deles representará o colapso.

A inesperada queda dos preços do crude em 2014 fez instalar de novo nas pessoas a ideia de que não havia que temer a escassez de petróleo. Muitos atribuíram essa queda de preços ao sucesso do fracking americano e à abundância da matéria prima. Mas começam, entretanto, a surgir sinais de que a situação pode não ser exatamente assim. De facto, a produção de petróleo convencional já atingiu o seu máximo de 75 milhões de barris diários em 2005. Todo o aumento de produção ocorrida desde essa altura está a ser feito à custa do chamado petróleo não convencional - águas profundas, areias betuminosas, de rochas de xisto, a partir de carvão e gás... -, que tem menor qualidade e é mais caro de produzir. E terá de continuar a ser assim , no futuro, dado o progressivo esgotamento das reservas de petróleo convencional.  O preço do barril para conseguir o breakeven  (sem lucro nem prejuízo) das explorações de petróleo não convencional situa-se bem acima dos 80 dolares por barril, valor este, por sua vez, muito superior ao preço atual do mercado (50/60 dólares) . As empresas petrolíferas são obrigadas a redobrados investimentos em equipamentos - o capex, ou capital expenditure - apenas para conseguir manter os níveis de produção. Segundo um estudo da Blomberg visando um conjunto de empresas petrolíferas, entre 2000 e 2012, só para manter constante  nível de produção o capex aumentou cinco vezes. Como resultado disto - e também para continuar a distribuir dividendos -  as maiores empresas petrolíferas (como são os casos da Shell, da Exxon ou da Chevron)  estão a endividar-se a valores sem precedentes. Steven Kopits, da consultora Douglas-Westwood,  diz que face à falta de produtividade do capital investido, só com o preço da barril acima dos 100 dólares as empresas poderão libertar cash para continuar a investir e continuar a distribuir dividendos. E esta argumentação é válida também  para os países produtores, os quais já não conseguem financiar os seus orçamentos com as receitas do petróleo ao preço atual e ameaçam entrar na bancarrota. A própria Arábia Saudita -o maior exportador mundial - necessitará de vender petróleo a 100 dólares o barril para equilibrar o seu orçamento.

Esta aparente contradição tem uma explicação. A industria petrolífera é ela própria um grande consumidor de petróleo. A tal ponto, que nos já referidos processos de exploração não convencional, se necessita, grosso modo, de um barril de petróleo para produzir dois. Ou seja, a quantidade liquida de petróleo que chega à economia é metade da quantidade produzida. E a economia, precisando de petróleo para crescer,  não suporta pagar preços acima dos que estão a ser praticados atualmente. Na ordem dos 50/60 dólares por barril. Ou seja, aumentar o preço arruinaria a economia e por consequência agravaria ainda mais a debilidade das empresas do sector petrolífero. A única forma de manter a situação - isto é gerar o crescimento sem o qual a economia colapsa -  tem sido a injeção massiva de crédito, ou seja pondo os bancos centrais a imprimir moeda e criando dívida de uma forma nunca antes vista.  A tal ponto que na União Europeia - refiro como exemplo -, por cada 18 euros injetados pela via do crédito na economia  apenas se consegue um euro no crescimento da economia real. Mas a opção de aumentar o crédito não resolve o problema. Ela tem apenas o efeito de atrasar o desenlace de um eminente colapso económico e financeiro. Atraso este que pode apenas servir para que ele seja mais severo e mais destruidor quando vier a ocorrer.

Está o mundo perante um dilema: petróleo caro que inviabiliza o crescimento da economia ou petróleo barato que arruína a indústria petrolífera. As incertezas e a desorientação a que assistimos não acontecem por acaso..