O Centro de Estudos Ibéricos da Guarda concede todos os anos um prémio, a que chamou o "Prémio Eduardo Lourenço", destinado a
“galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas “ (sic). Este ano empenhei-me pessoalmente (eu, e não só!) na apresentação da candidatura
do Dr. Álvaro Carvalho, médico humanista, homem da cultura viva, escritor e exemplar cidadão, por entender que se ajustava perfeitamente ao perfil visado no
regulamento do referido prémio. Mas sendo o júri predominantemente constituído por gente
de
borla e capelo e sendo o meu candidato um candidato
futrica (é este o termo que os
doutores usam em Coimbra para designar a população
civil), eu sabia, à partida, que ele não teria grandes hipóteses de ser escolhido.
Este ano, com alguma surpresa, o júri escolheu premiar o Sr. Jerónimo Pizarro, um professor universitário colombiano, apresentado como um estudioso de
Fernando Pessoa. Esta atribuição vem na sequência da realização da feira do livro de Bogotá, fortemente publicitada na imprensa portuguesa, e visitada pelo nosso Presidente
da República na sua recente deslocação à Colômbia. Não conheço a obra do premiado, nem questiono o seu valor, mas ficam no ar algumas interrogações, não sobre o seu mérito pessoal e literário mas sobre as motivações (pensando no regulamento do prémio) que teriam levado os jurados a escolhê-lo.
Dizem-me que, este ano, estiveram em apreciação quase duas dezenas de candidaturas, facto angustiante para um júri, que, ainda por cima, teve de decidir depressa. Ao atribuir o prémio ao ilustre desconhecido, Sr. Jerónimo Pizarro, o ilustrado júri do Centro de Estudos Ibéricos da Guarda faz-me lembrar os guardas pretorianos do imperador Calígula, que depois de o assassinarem, durante os jogos no circo Romano, hesitando na escolha do seu sucessor, e encontrando, por acaso, Claudius, um velho gago e sem ambição, da
gens de Augusto, logo concluíram que aquele encontro vinha mesmo a calhar e não tinham de procurar mais. E de imediato, ali mesmo, o fizeram imperador.
Na minha opinião, a escolha do premiado teve sobretudo a ver com Fernando Pessoa. Pessoa é o poeta inquestionável, ainda por cima, querido de Lourenço e estudado por ele. Em Portugal, Pessoa é a personalidade do consenso, quase uma conveniência cultural. E a sua projeção além fronteiras enche-nos de orgulho, e aconchega-nos o ego. No nosso meio cultural, é de bom tom
citar Pessoa,
recitar Pessoa,
estudar Pessoa,
invocar Pessoa. E, contudo, convém lembrar que o poeta dos heterónimos simboliza a resignação dos portugueses, é o expoente maior da nossa depressão coletiva, uma espécie de espelho de um país, falhado e desassossegado.
Eu concluo, pois, que quem foi premiado pelo júri do CEI não foi Pizarro, foi Pessoa. E, neste pressuposto, não deixa de ser curioso constatar que no ano passado, Lourenço ganhou o Prémio Pessoa, e este ano, Pessoa ganhou o Prémio Lourenço. Atribuição que, tanto num como no outro caso, é honrosa para os premiados, mas que nada acrescentou ao seu prestígio e grandeza, desde há muito afirmados e confirmados. Mas, como convinha, não houve sobressaltos, ficou tudo em casa, foi uma espécie de
autismo cultural. Tudo, culturalmente, correto...
Ainda a este propósito, é oportuno recordar uma história exemplar: o concurso literário que a Real Academia das Ciências levou a efeito no longínquo ano de 1887, ficou famoso não pela obra premiada,
O Duque de Viseu de Henrique Lopes de Mendonça, mas pela que foi preterida,
A Relíquia
de Eça de Queirós. Foi Pinheiro Chagas que relatou o parecer a justificar a decisão do júri, e este facto deu a Eça o ensejo de responder, escrevendo, com a sua fina ironia, algumas das mais belas páginas da literatura portuguesa.
Henrique Lopes de Mendonça foi um distinto oficial da Armada e um notável historiador, poeta, romancista e dramaturgo, e foi o autor dos versos d'
A Portuguesa. E não mereceu a desdita de ter sido galardoado, naquelas circunstâncias, com o prémio D. Luís do concurso da douta Academia.