segunda-feira, 12 de novembro de 2018

O Rio Côa


Um rio é uma benesse da natureza. Foi nas margens dos rios que se fixaram, pela primeira vez, os nómadas das tribos de caçadores-recoletores, e foi nelas que se construiriam as grandes cidades da antiguidade. O Jardim do Éden ficava nas margens dos rios da Mesopotâmia, a região que foi o berço da civilização. O Egito Antigo era, no dizer do historiador Heródoto, uma dádiva do Nilo. E foi nas purificadoras águas do celebrado rio Jordão que Jesus Cristo foi batizado.

Na sua geomorfologia, os rios têm um dinamismo próprio. Nascem, límpidos e cristalinos, pequenos fios de água escorrendo das neves das montanhas. Na sua  juventude, correm velozes, apertados entre margens abruptas, alimentam uma fauna e uma flora diversificadas. Na velhice, espraiam-se nos vales para onde arrastam os sedimentos que nutrem a terra e fazem florescer as culturas.  Mas os rios nunca morrem. As suas  águas fluem sempre diferentes, sempre renovadas, pois eles são um elo dessa maravilhosa corrente fechada que é o ciclo da água. Foi o filósofo grego Heráclito que disse que nunca nos podemos voltar a banhar nas mesmas águas de um rio, porque um rio nunca é igual a si próprio.

No seu percurso, o Côa, o rio da nossa terra, é indomado, selvagem e agreste. As suas margens foram habitadas pelos homens que,  há, talvez, uma dezena de milhares anos, nos deixaram gravuras esculpidas na rocha, testemunhos de uma fauna abundante e diversificada.  Uma parte importante do percurso do rio Côa fica no concelho de Almeida e está ligado à sua História: nas sua margens travou-se dura batalha em 1810, para defender a única ponte que permitia a entrada em Portugal pela fronteira da Beira; as principais pontes sobre o Côa, nas estradas e no caminho de ferro que nos ligam à  Europa, estão no nosso concelho; a eletricidade que iluminou Almeida pela primeira vez era produzida no rio; e até as termas da Fonte Santa lhe estão intimamente ligadas.

Na margem esquerda, onde se situa a maior parte da bacia do rio e onde correm as principais ribeiras que nele confluem - das quais a principal é a ribeira das Cabras -, está a Asta.  Pela proximidade, por tudo o que ele representa, a relação da Asta com o Côa tem de ser uma relação forte.  O rio tem muito para lhe dar: a inspiradora paisagem que convida à meditação, à introspeção, à poesia e à arte, o desafio da aventura e da descoberta, o espaço de descanso e lazer, a excelência de um cenário para desportos de ar livre, tais como, a pesca desportiva - com os seus benefícios terapêuticos -, as caminhadas, a canoagem, o campismo, a natação.

Urge, pois, conhecermos melhor o nosso rio. Vamos redescobri-lo na sua beleza natural,  tomar consciência dos riscos que ameaçam o seu equilibro e a sua saúde;  identificar e catalogar a sua fauna, a sua flora, fotografar os seus mais belos recantos; analisar a qualidade das suas águas; revisitar as marcas que os homens nele deixaram:  as gravuras, as pontes, os açudes, as noras, as veigas, a etnografia, as lendas e os costumes.

Vamos trazer o Rio Côa de volta  para a nossa convivência, voltar a percorrer as suas margens e voltar a mergulhar nas suas águas.  Sem termos de o represar nem ter de o poluir, é urgente que lhe demos valor económico, criando riqueza para ela, por sua vez, crie empregos e fixe pessoas. Sobretudo, envolver a nessa tarefa toda a comunidade - nomeadamente os mais jovens e os alunos das escolas -, pois o rio é de todos.. Enfim, vamos todos trabalhar para criar uma sólida relação de afecto com  o Rio Côa, com a certeza que que só podemos amar aquilo que conhecemos.




domingo, 4 de novembro de 2018

Conhecimento, Opinião, Democracia e Educação

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O tema que escolhi para este artigo foi inspirado pelas experiências que, nos últimos 10 anos, na Fundação Vox Populi,  temos tido  com o programa "A Pesquisa que Ensina" sobre novas abordagens pedagógicas junto de algumas escolas portuguesas. O objetivo deste texto é relacionar quatro importantes conceitos, conhecimento, opinião, democracia e educação, procurando, em jeito de conclusão, realçar a extraordinária importância da educação para o nosso futuro coletivo.

Os gregos identificavam dois tipos de conhecimento, o episteme - que designo por conhecimento científico, e o techne - que designo por conhecimento técnico. Existe outro conhecimento, a gnose,  que designarei por conhecimento gnóstico.  O termo gnose deriva do termo grego "gnosis". É um conhecimento intuitivo, baseado em crenças e narrativas mitológicas. A existência de um Deus transcendente é aceite pelos gnósticos, que vêem na Religião e na Fé um caminho para atingir um conhecimento mais profundo da realidade do mundo. Quando, a partir de agora, referir "conhecimento", não incluo a gnose, falo apenas de conhecimento técnico-científico que é uma “fusão” entre episteme e techne, considerando que estes dois tipos de conhecimento, evoluem paralelamente, fundem-se e potenciam-se mutuamente.

O conhecimento está associado ao progresso da espécie humana e intimamente relacionado com a linguagem e com o pensamento, pois sem linguagem não há pensamento produtivo. Foi o conhecimento que transformou o homo sapiens no ser superior que ele é no seio da criação e foi responsável pelas grandes conquistas civilizacionais. O conhecimento é a causa dessa tão surpreendente ocorrência cósmica que Teilhard de Chardin designou por Fenómeno Humano.

Eu vejo o conhecimento como uma aptidão (no sentido darwiniano da palavra) da espécie humana, aperfeiçoada ao longo de milénios. Mas, ao contrário do que se passa noutras espécies, enquanto aptidão adquirida, o conhecimento não se incorpora na informação genética dos homens, mas preserva-se externamente - sob a forma de informação -, e transmite-se pela educação às gerações seguintes. Considerando as suas características, a aquisição, preservação e difusão do conhecimento só foi possível devido a capacidade de comunicação entre indivíduos. Por isso, a evolução do conhecimento está associado às quatro grandes revoluções na forma comunicar que se sucederam a intervalos sucessivamente mais curtos: a) a linguagem há cerca 50000 anos, b) a escrita há cerca de 5000 anos, c) a imprensa há pouca mais de 500 anos e a d) internet, cujo início, para manter a cadência exponencial da série, podemos datar de há 50 anos atrás. Nestas revoluções, verificou-se um salto significativo no desenvolvimento de novas capacidades e criação de novas ferramentas,  progressivamente mais sofisticadas e complexas. Condições, que foram, elas próprias, uma consequência do conhecimento acumulado. Que outras revoluções nos esperam no futuro próximo? Quais os riscos associados à crescente complexidade das novas ferramentas? Dado que nas leis de Darwin não se admite a desevolução, poderá a espécie ficar prisioneira dessa complexidade e entrar num cul-de-sac evolutivo?

 Para os gregos, como contraponto ao episteme, a opinião era chamada de doxa, sufixo que reconhecemos em palavras tais como ortodoxo, paradoxo. Doxa era a opinião comum que os sofistas procuravam influenciar com argumentos não necessariamente verdadeiros, e que  Platão opunha ao episteme. Nos dias de hoje, por vezes, confundimos opinião com conhecimento, embora se  trate de conceitos muito diferentes.

O conhecimento é um atributo da espécie, é cumulativo e de base racional (produzido pelo pensamento), ao passo que a opinião é um atributo do indivíduo, não cumulativa e de base emocional (e, nessa medida, influenciada pelo medo, pela raiva, pela vingança e pela inveja); o conhecimento está comprometido com a ética e com a verdade, ao passo que a opinião que é pessoal, é descomprometida com a verdade, íntima e nem sempre confessável; o conhecimento é universal e não manipulável, e a opinião é tribal, populista e nacionalista, e pode ser manipulada; finalmente, no conhecimento prevalece o realismo, a ponderação e a análise de longo prazo, e na opinião prevalece a paixão, o imediatismo e a crença nas utopias.

A democracia moderna, que remonta ao final do século XVIII,  tem origem nos princípios saídos da Revolução Francesa e postos em prática pelos homens que declararam a independência dos Estados Unidos da América, numa altura em, por virtude do progresso (que é uma consequência do conhecimento, ou se identifica com o próprio conhecimento!), se iniciava uma importante transformação económica que foi a Revolução Industrial, cujo impacto se veio a revelar nas grandes mudanças científicas, tecnológicas e sociais,  que prosseguem até aos nossos dias. Os princípios da moderna democracia estão bem expressos na frase de Abraham Lincoln: “the people, by the people and for the people”. O poder emana do povo, é exercido pelo povo, para servir o povo.

Mas existe um grande paradoxo (já expresso por Platão) que questiona o valor da democracia: a legitimação do poder dos governantes e dos representantes do povo que fazem as leis e escrevem as constituições, sustenta-se na opinião que é expressa no voto dos cidadãos; ora, sendo, como vimos acima, a opinião descomprometida com a verdade e com a ética, e sendo influenciável (ou mesmo manipulável), o valor da democracia será o apenas valor da opinião sobre a qual ela se fundamenta. E, por toda a parte, em crescendo, vão-se sucedendo exemplos que nos levam a questionar o valor da democracia. A eleição democrática de líderes (falo do caso da Alemanha nazi) que cometeram crimes contra a humanidade ilustra bem a pertinência do argumento.

E, no entanto, a democracia funciona e não sendo porventura o melhor sistema ele será o menos mau, pois não se vê outro melhor que o possa substituir. É certo que a imprensa livre contribuiu, nos últimos 200 anos, com o seu papel vigilante e formador de opinião para fortalecer o sistema e iludir as suas fraquezas. Mas isso pode estar em causa na Era Digital, dado que essa vigilância está-se a diluir no labirinto das redes sociais.

Com a democracia debilitada, a Humanidade enfrenta uma época em que se lhe apresentam grandes desafios: o futuro do homo sapiens enquanto espécie pode estar ameaçado pois o seu tremendo sucesso, no reino da criação foi conseguido à custa de um preço elevado: aniquilação de outras espécies, forte pressão demográfica, esgotamento de recursos, poluição, alterações climáticas. A economia (ela própria e, paradoxalmente, fruto do conhecimento) que suporta o sucesso da espécie, exige crescimento contínuo, é poluidora e predadora de recursos, e precisa de ser rapidamente substituída.

Um sistema político baseado apenas na doxa será incapaz de inverter a tendência para o colapso da espécie. Só um sistema baseado no conhecimento capaz de alterar tanto o atual sistema político como económico, permitirá à Humanidade fazer as escolhas necessárias à sua sobrevivência e determinar livremente o seu destino. Mas temos de estar atentos aos riscos. A quem caberá a incumbência de guardar e preservar os arquivos digitais? Qual a possibilidade e o risco de poderem vir a ser manipulados? Qual a longevidade e fiabilidade dos suportes que os contêm? Como assegurar a compatibilidade dos diferentes sistemas de gravação? Qual o risco de haver impedimento ou restrição no seu acesso, associado à dependência da rede eléctrica e das redes de comunicação? Paralelamente vão colocar-se problemas relacionados com o uso da informação, com as ameaças à liberdade das pessoas, com a invasão da sua privacidade.

A Wikipedia pode desempenhar um papel importante para se institucionalizar como um sólido guardião do conhecimento, se conseguir proteger-se de intrusões oportunistas, preservar a sua independência, colocando-se definitivamente ao serviço do episteme e não da doxa.

Mas, é na educação que estará a chave da solução do problema.  No futuro, para contornar as armadilhas do progresso e da democracia, temos de ser muito cautelosos na forma como iremos preparar as novas gerações. Temos de educar para o conhecimento, fortalecendo as opiniões que permitam fazer as escolhas certas. Mas não podemos transmitir o conhecimento como se ele fosse apenas um conjunto de informações compartimentadas e descontextualizadas. Temos de ser capazes de transmitir os valores que lhe estão associados, mostrar o caminho - nem sempre fácil - para lá chegarmos, e, sobretudo, alertar para o perigo de decidir com base numa opinião que não esteja comprometida com a verdade e pela ética e que não seja alimentada pelo conhecimento.

Só com uma opinião fundamentada e expurgada das ciladas que lhe estão associadas poderemos continuar a afirmar que Vox Populi, Vox Dei - ou seja, que a  Voz do Povo é a Voz de Deus. O primeiro passo poderá ser pesquisar a própria opinião. É essa a proposta da Fundação Vox Populi nos projetos do Programa  "A Pesquisa que Ensina", que documentamos neste  pequeno vídeo.