quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Gerir o Tempo

Nas gerações que nos precederam - mesmo nas que estão mais próximas de nós: as dos nossos pais e avós -, a forma das pessoas passarem o tempo era muito diferente da nossa. O homem do paleolítico, praticamente, passava todo o seu tempo de vigília a recolher alimentos e a caçar. Na Idade Média, uma boa parte do tempo era dedicado ao trabalho na terra e à religião. Na era industrial, o trabalho na fábrica passou a ocupar muito do tempo antes usado na agricultura. Na sociedade de excedentes, possibilitados pela era do carbono, ganha importância o chamado tempo livre. Ou seja, a convivência social, a televisão, a cultura, o desporto, a internet, as viagens e o shopping preenchem a maior parte do nosso tempo de lazer diário.

Há uns anos atrás, os anunciantes faziam estudos visando conhecer a forma como as pessoas repartiam o seu tempo pelos diversos meios: imprensa, rádio e televisão. A intenção era alocar os investimentos publicitários naquela mesma proporção. Em França, onde estes estudos estiveram muito em voga, chamavam-se os études budjet temps. Em Portugal não tenho conhecimento de que essas pesquisas alguma vez se tenham realizado. Por isso, como gosto de números, decidi fazer um exercício empírico e aproximativo: estimar, com base em alguns dados existentes e muito senso comum, como se distribui a ocupação das 168 horas (24x7) semanais de um português médio ativo, adulto e urbano. O resultado a que cheguei - aceito, com agrado, sugestões de alteração! - para esse balanço de tempo foi o seguinte:
    horas       %
Tempo de repouso5633,3
Tempo de trabalho47,528,3
Tempo digital 3017,9
Tempo social11,56,8
Tempo familiar 2011,9
Tempo íntimo31,8
Tempo interior e espiritual00,0
Total 168100,0
Notas: Tempo de repouso: São 8 horas por dia, 56 horas por semana; tempo de trabalho: inclui 35 horas de trabalho semanal, deslocações e refeições no trabalho; tempo digital inclui o tempo dedicado a ver televisão, a ouvir rádio, falar ao telemóvel, dedicado ao computador e à internet (incluindo o que é passado nas redes sociais); tempo social inclui refeições fora do trabalho, idas a espetáculos, tempo pssado nas compras, cultura, leitura, tempo passado com amigos fora de casa; tempo familiar inclui refeições fora do trabalho (tomadas em casa) e o tempo passado, em casa, com a família e amigos; tempo íntimo refere-se ao tempo dedicado à higiene pessoal e necessidades fisiológicas; tempo interior refere-se ao tempo de reflexão interior e ao tempo espiritual e religioso.

Feito o exercício, e distribuído o tempo pelas diferentes formas de o ocupar, constatei que não me sobravam horas para atribuir à última parcela, o tempo interior e espiritual. Haverá, com certeza, pessoas que dedicam muitas horas a esta ocupação; no entanto, a estatística vive de médias e, neste caso, a média estará muito próxima de zero. Ao invés, atente-se na importância atribuída ao tempo digital (18% do total, 27% do tempo de vigília!), uma utilização recente, e que se prevê venha a aumentar muito no futuro.

Sendo o tempo a matéria prima de que é feita a vida, é surpreendente o pouco cuidado que colocamos na sua utilização. Parece que o desperdiçamos, às vezes, até voluntariamente e com prazer, pois não nos detemos a orçamentar e a planear a forma como o despendemos. Veja-se, por exemplo, o tempo passado a ver televisão - 22 horas por semana, quase 20% do nosso tempo de vigília. Esse tempo, que se traduz afinal na atenção dedicada ao pequeno ecrã, é, por sua vez, disputado pelas emissoras que o utilizam em proveito próprio, vendendo-o aos anunciantes ou valorizando-o para dar protagonismo a políticos, homens de negócios, artistas, figuras públicas etc. E o que se diz em relação à televisão pode estender-se a certo tipo de literatura e de imprensa.

A economia global, a política e a comunicação social reclamam o nosso tempo. A nós cabe-nos cuidar de o gerir, de o não desbaratar levianamente e de não deixar que outros se apropriem dele. Embora os minutos sejam todos iguais, a forma como os utilizamos pode ser diferente. Na nossa vida alguns minutos valem mais do que outros, pois só alguns são verdadeiramente nossos. O tempo interior, aquele em que nós nos confrontamos connosco próprios, é o nosso tempo mais precioso. Sem tempo interior e espiritual, o homem deixa de ser dono e senhor do seu destino. É como um barco que voga ao sabor das correntes e dos ventos. Não traça o seu rumo; deixa-se ir para onde o levam.

A globalização, a tecnologia, a forma de comunicar e consumir informação, estão a roubar o tempo interior do homem. Os que nos fornecem informação e nos viciam no seu consumo acabam por processá-la e digeri-la por nós e para nós. E ao compelirem-nos a consumir sempre mais e mais, acabam, desta forma, por criar um círculo vicioso e uma perigosa adição. Por isso, acredito que muitas das depressões do nosso tempo são provocadas pela sofreguidão no consumo do tempo e pela má gestão na sua utilização.

A forma como um povo gasta o seu tempo mostra o seu estado de saúde como sociedade, e é revelador do que podemos esperar quanto ao seu futuro. Muitos dos nossos hábitos de vida estão dependentes de redes muito frágeis cuja sustentabilidade está ameaçada. Ora isso ilustra a pouca resiliência desses hábitos e as contingências que o futuro nos pode revelar. A boa gestão do tempo terá de ser uma forte e permanente preocupação daqueles que acreditam e querem empenhar-se na caminhada para um mundo novo.