Os franceses da região de Lille parecem ignorar que há cem anos, muito perto dali, nas linhas das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, se jogava o futuro da Europa e do Mundo. Aparentam um ar grave e triste. Parecem felizes nas superfícies comerciais a transportar carrinhos de mão, abarrotados de compras, e nos restaurantes aquecidos devorando suculentos pratos de carne: filets, côtelettes, rotis e cassoulets.
Atravessa-se a França de carro e as cidades ficam-nos ao lado: Rouen, Amiens, Le Mans, Tours, Angoulême ... As auto estradas são canais assépticos que só revelam a monotonia da paisagem e camuflam a atividade humana. Eu ainda conheci a outra França, das pequenas aldeias balzaquianas, das mobillettes e das pessoas levando na mão as longas baguettes de pão.
Para o viajante ou o turista de hoje o digital domina tudo. Já não precisamos de mapas nem de guias. Com um smartphone e as facilidades do roaming estamos conectados com o mundo inteiro.
Na noite da meseta, o céu volta a ganhar a dimensão e o mistério que a luz elétrica e o néon das cidades lhe roubou há muito. Até a Lua grande, que já a começou a minguar, não consegue esconder o esplendor da bela constelação de Orion. E o esbranquiçado dos aglomerados da Via Láctea deixa voar a nossa imaginação para o infinito, e remete-nos à nossa insignificância.
Na judiaria de Hervas, tento compreender o drama provocado pelo Édito de Expulsão promulgado pelos Reis Católicos. Muitos judeus foram dali empurrados e vieram povoar as terras da raia portuguesa: Belmonte, Trancoso e Castelo Rodrigo. Imagino que alguma daquelas casas teria sido ocupada por um dos meus antepassados de Mata de Lobos. A Inquisição é, ainda hoje, algo que escapa ao meu entendimento.
Nas primeiras horas após o nascer do Sol, a Estremadura espanhola tem uma beleza estonteante: milhafres e águias elevam-se no ar, impulsionadas pelas correntes ascendentes do ar que o Sol começa a aquecer. A terra, esbranquiçada pela geada, reflete a luz solar e brilha como um espelho. A vista espraia-se por um horizonte sem fim com farrapos de neblina alongando-se sobre os vales.
Já depois de Cáceres, na berma da estrada jaz uma coruja das torres que, imagino, não terá escapado a tempo do choque com um carro a alta velocidade. É um animal que tinha um significado muito especial para as populações rurais. Chamavam-lhe rasga mortalhas, porque o seu grito agourento faz lembrar o ruído rouco do rasgar de um tecido.
Em Estremoz, havia feira Gastronómica de Caça e Pesca. Com ar de sofreguidão, as famílias aglomeravam-se à espera de lugar na entrada dos restaurantes que serviam migas e outras especiarias. Ficavam indiferentes ao trabalho do Eduardo, um taxidermista que na sua banca exibia patos, perdizes, pombos, estorninhos malhados e tordos. Confessou-nos que trabalhava aquela arte, com amor, desde os onze anos de idade. E nós logo ali imaginámos a coruja das torres conservada pelo Eduardo para ficar como recordação desta memorável viagem pela Europa.
Thinking Outside the Grid
Há 5 anos
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