segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Amanhã



O filme-documentário "Amanhã" (em francês, Demain), realizado em 2015 por Mélanie Laurent e Cyril Dion, passou praticamente desapercebido numa sala de Lisboa. No entanto, trata-se de um importante trabalho que revisita e muito ajuda a entender o conceito de Transição. A tese é conhecida: o mundo da globalização - urbano, superpovoado, ávido de crescimento, sustentado por uma economia poluidora e predadora de recursos - não tem futuro. O sistema financeiro, baseado no crédito e na exigência de crescimento contínuo e ilimitado, é frágil. A economia, que tudo comanda, criou a sociedade consumista, a uniformização dos gostos, a cultura do desperdício, as monoculturas agrícolas. Os políticos entretêm-se com os jogos de poder de curto prazo e perdem de vista o essencial. A ciência e a tecnologia, interferindo com a procriação, prolongando artificialmente a vida, virtualizando as relações sociais, escravizando-nos a uma dependência de redes informáticas e de comunicações cada vez mais complexas, só estão a contribuir para acelerar o processo de decadência civilizacional. Os agentes dos meios de comunicação social sofrem de cegueira crónica relativamente a este estado de coisas, pois servem o sistema que lhes paga os ordenados no final do mês. Estamo-nos a aproximar vertiginosamente do colapso. Fala-se de décadas; não de séculos. Entretanto, as tensões acumulam-se na frente da economia que se defronta com os limites naturais ao crescimento e com as graves consequências dos efeitos poluidores - é o caso das alterações climáticas. O Médio Oriente, onde se encontram dois terços das reservas de combustíveis fósseis - apesar dos avanços no aproveitamento do sol e do vento, a energia fóssil continua a ser o motor da economia -, é palco de uma guerra sem fim onde se confrontam os interesses das grandes potências: EUA/Europa, Rússia e China. No curto prazo, os elos mais vulneráveis do periclitante equilíbrio mundial são o sector financeiro, os conflitos regionais, as tensões migratórias e as ameaças terroristas.

O filme vem dizer-nos que existe um caminho alternativo, e repete muito do que, nos últimos anos, se tem escrito sobre o tema (Rob Hopkins, Tim Jackson, Serge Latouche, etc.). A novidade está na forma sistemática como o tema é tratado e na profusão dos exemplos apresentados. São já muitas as pessoas reais que estão a viver experiências de transição na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Índia, na Finlândia... Muitas das ideias que o filme nos apresenta foram semeadas na última dezena de anos: falo, por exemplo, da experiência de Totnes, das iniciativas locais de transição um pouco por toda a parte - incluindo Portugal -, das hortas urbanas, da rápida tomada de consciência das opções alimentares - favorecendo os vegetais em detrimento das proteínas animais -, da adoção de criar uma moeda local, da reutilização dos resíduos urbanos, etc... É certo que muita coisa falhou, que houve muita ingenuidade, que se cometeram muitos erros... Agora, ao ver este filme, estamos perante a evidência de que as sementes frutificaram. E começa já a consolidar-se e a generalizar-se a convicção de que este é o único caminho para evitar o colapso e assegurar a prosperidade da raça humana.

O filme conclui que é urgente arrepiar o caminho da globalização, abandonar a sociedade consumista, reformar o sistema financeiro, relocalizar a produção, reciclar matérias primas, evitar os desperdícios, alterar os hábitos alimentares, reduzir a mobilidade, estabelecer formas de cooperação, voltar a usar as mãos; adoptar um modo de vida mais simples e mais próximo da terra - afinal as leis de Gaia sobrepõem-se às leis dos homens . Em suma, respeitar a natureza e privilegiar o ser em detrimento do ter.

Para conseguir isto precisamos de mudar de economia. Porque a Transição é voltar a recuperar o primado da política sobre a economia. Uma política que terá de ser feita por homens mais capazes, mais solidários, menos corruptos. Um dia irá pôr-se em causa a democracia como sistema - quando se demonstrar que o discurso dos políticos, por ser muitas vezes baseado na mentira, não serve o bem comum. Regressamos ao argumento de Platão contra os sofistas: se a democracia permite usar a mentira para eleger os nossos governantes, então a democracia não serve. A democracia só terá lugar na nova sociedade se for capaz de basear-se na verdade e no conhecimento (o espistemé),e de expurgar a mentira e a falácia (a doxa) do discurso dos políticos

Na parte final, o filme releva o papel da educação para singrar no caminho da Transição. E exibe o exemplo da Finlândia onde se pratica uma educação mais livre, mais multidisciplinar, em que o professor se aproxima do aluno, em que não existe um sistema que classifica as escolas e impele à competição, onde a escola é mais autónoma, mais criativa e os alunos reaprendem a trabalhar com as mãos. Mudar um sistema educativo demora muito tempo. Vinte anos foi o tempo necessário no caso finlandês. Fiquei a saber, ainda, que na Finlândia não se avaliam escolas, e que o sistema educacional está blindado contra as mudanças introduzidas pela alternância partidária no poder.

É preciso acreditar que nada está perdido. O pessimismo das previsões não deve sobrepor-se ao otimismo indispensável à ação.

2 comentários:

  1. Gostei muito da reflexão. Muito marcantes e oportunas as suas duas últimas frases : "É preciso acreditar que nada está perdido. O pessimismo das previsões não deve sobrepor-se ao otimismo indispensável à ação". Obrigada pela partilha.

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