Estas ideias inspiradoras suscitaram a a minha reflexão e, ajudado por algumas notas soltas, atrevo-me a interpretar o pensamento do conferencista. Pensando num qualquer Estado da União Europeia, damos-nos conta que o poder corporativo das instâncias de Bruxelas vem de cima - das leis, dos consensos, dos princípios -, mas o poder democrático do Estado vem de baixo, do povo. Ora existe aqui um choque de poderes entre a democracia do Estado e a "politeia" - uso a expressão para definir o conceito de um poder que não está ligado a uma democracia representativa de base territorial - da União. Esta é uma contradição que é inerente à mal resolvida dialética da soberania no processo da construção europeia e que necessita urgentemente de ser superada. O referendum para o brexit é um bom exemplo dessa contradição pois vem colocar uma questão delicada: considerando que a saída ou a permanência do Reino Unido na União não é um assunto exclusivamente inglês - na medida em que afeta os cidadãos de todos os outros países europeus -, podem os ingleses, sozinhos, tomar uma decisão que não lhes diz respeito só a eles? Qual deveria ser - ou deveria ter sido - o papel das instâncias da União Europeia numa situação destas? Pode argumentar-se com a insuficiência ou a deficiência dos tratados que permitem tal coisa, e, nesse caso, haverá que admitir que estão mal feitos e deverão ser corrigidos.
"É importante investigar o passado, pois isso pode conduzir-nos a descobrir o futuro", foi outra interessante ideia expressa no Grémio. Pois, certamente, encontraremos no tempo passado - anterior ao Estado - formas de governo que podem inspirar-nos para encontrar soluções de governação para o futuro. Evoco, por exemplo, as Ligas que agregavam as cidades-estado da Grécia Antiga. E penso na importância em trazer para a UE, a experiência agregadora da Inglaterra, acumulada ao longo de séculos - que, ao contrário da França, nunca se autodenomina de "Estado" - mas que construiu e governou um vasto império, que uniu quatro Estados e criou a Commonwealth. Rangel assinalou, a este propósito, que a Inglaterra nunca saiu da Idade Média - e, digo eu, talvez nunca tenha entrado na União Europeia -, e aflorou a suspeita de haver por parte dos ingleses ciúmes do sucesso do modelo europeu, liderado pela Alemanha, próximo, na sua concepção e filosofia, das normas e a da constituição inglesas.
Mas a incerteza de que falou Paulo Rangel está muito vinculada às vicissitudes do curto prazo. A construção europeia foi feita à sombra da América, e assentou em três pilares: o plano Marshall, a Nato e o liberalismo económico (em oposição ao marxismo). Até agora, a aposta da Europa na questão da defesa assentou exclusivamente na Nato, e, no plano económico, na criação de um espaço atlântico alargado, cujo primeiro passo seria o - agora já improvável - TTIP. A relação com a Rússia pós soviética tem sido ambígua: influenciada, por um lado, pelos interesses americanos e pela memória traumática dos novos membros do Leste , mas influenciada, por outro lado, pela dependência energética do gás russo. Ora, para a Europa, a questão energética é crucial. A única alternativa de abastecimento está no Médio Oriente e concretizá-la passa por manter uma forte presença americana nessa região. A eleição de Trump veio baralhar tudo: é incerto o futuro da Nato, e mais incerta ainda é a manutenção da doutrina Carter que advoga ser o Médio Oriente uma zona de interesse estratégico dos Estados Unidos.
Os governos dos Estados europeus precisam de uma União Europeia forte pois já não conseguem resolver os seus problemas no padrão territorial. Por sua vez, para se constituir como espaço de poder super-estatal, a União Europeia precisa de resolver dois problemas: a sua debilidade militar e a sua dependência energética. A solução do primeiro, mexe com os Estados Unidos (através da Nato); a do segundo, com a Rússia. A Europa fica, assim, condenada a ter de negociar com Trump e com Putin. A forma de os resolver é o maior desafio que se apresenta aos líderes europeus. Ou, melhor dizendo, é um problema para os alemães, pois sem a Alemanha a Europa não existe. Começa, entretanto, a generalizar-se a ideia de que na superação deste desafio reside a grande oportunidade da Europa.