segunda-feira, 8 de outubro de 2012

As Mãos


Há dias fui ao "Mundo das Ferramentas", uma loja tradicional  na Baixa lisboeta, com a intenção de comprar uma plaina manual. Atendeu-me um empregado espantado diante de um cliente de fato e gravata que lhe pedia uma ferramenta insólita: "Não temos, essas plainas já não se vendem, só se for para dar formação a aprendizes de marceneiro". Que agora só se vendiam plainas elétricas. A velha plaina manual é uma ferramenta que sempre me fascinou. O seu suave deslizar, as aparas que se vão soltando como caracóis, a madeira que ganha um brilho novo, os veios que se desenham e realçam a lembrar o mármore. O  tato suave na ponta dos dedos ao afagar a a face da madeira aplainada tem um prazer especial, quase sensual...

Ver aparelhar a madeira faz parte do friso  das minhas recordações de infância. Já homem, apreciava nessa tarefa o meu tio Luís que tinha uma relação especial com as ferramentas. Parecia não ser ele que as manuseava, mas elas que pareciam deslizar sozinhas, as suas mãos limitava-se a acompanhar esse deslizar. No meu tempo de menino, na minha aldeia, o mundo era feito à mão. Eram as mãos que  fiavam e teciam, que semeavam tratavam e colhiam, eram as mãos que ceifavam, malhavam o cereal e  amassavam o pão, tosquiavam as ovelhas, matavam e esfolavam as reses, cavavam a terra e abriam as sepulturas.

Na igreja, para rezar, as mãos juntavam-se viradas para o Céu. As mãos dos nossos pais e dos nossos professores afagavam e castigavam. Outras, mais dotadas e menos calejadas, empunhavam o cinzel e modelavam a pedra, com o pincel davam cor às coisas, e dedilhavam as cordas de uma guitarra para animar as festas.

As mãos são uma ferramenta fabulosa, e, na verdade, fazem a diferença entre o homem e os outros animais da criação. Foram as mãos que fizeram a história humana: desenharam gravuras nas rochas e nos tetos das cavernas, lascaram a pedra, arrotearam a terra virgem no Crescente Fértil, construiram as pirâmides no Egito, dedilharam as cordas das harpas na corte do Rei David.  Foram as mãos que empunharam espadas e fizeram as guerras, que curaram doentes,  que atearam o fogo de Hiroxima, e que assinaram a paz a bordo do Missouri.

Mas, hoje, as mãos dos homens estão a perder destreza e a ganhar outras virtualidades: martelam as teclas dos computadores, afagam os telemóveis, seguram o  volante do automóvel, e, sobretudo, gesticulam, agitadas, acompanhando as palestras e as discussões políticas. Em geral, creio eu, usam-se menos que antigamente.  Nas muitas horas passadas em frente de um aparelho de televisão ou numa sala de cinema são os olhos que funcionam, e nas pesquisas do Google as mãos limitam-se a fazer deslizar e clicar o rato. E, com as mãos paradas, o cérebro que está feito para as coordenar, fica confuso, e ameaça entrar em looping...

No "Mundo das Ferramentas" acabei por comprar uma plaina elétrica. E verifico que, comparada com a velha plaina, é mais fácil de usar, mais eficiente e exige menos perícia manual. O antigo mundo feito à mão é, hoje, um mundo feito à máquina. E contra isso nada podemos fazer. Mas se deixarmos atrofiar as mãos por falta de uso, a Civilização corre sério perigo.

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