Não é certamente por causa do gás sarin que os Estados Unidos se
preparam para golpear a Síria e o seu exército. Após a postulação da doutrina Carter, na sequência da invasão do Afeganistão pela União Soviética em janeiro de 1980, o Médio Oriente (pela importância das suas reservas energéticas) passou a ser a fronteira do império americano. E a Síria é uma peça chave nessa região pois ali convergem importantes interesses
estratégicos. Faz fronteira
com Israel e com o Iraque, tem uma boa relação com a Rússia, país que por sua vez
tem fortes interesses na Síria que é a sua única porta de entrada no Mediterrâneo. O pipeline que irá trazer o gás natural do golfo Pérsico para a Europa vai ter de passar pela Síria. O regime de Assad tem ligações ao Hezbollah que é um inimigo
declarado de Israel. E o Irão (o principal inimigo a abater!) sai reforçado com Assad no poder. Para os americanos, que têm a capacidade e a vontade de atacar, o pretexto e a oportunidade de o fazer dificilmente serão desperdiçados.
Quando, em setembro de 2009, eu e a minha mulher visitámos a Síria, no fim do ramadão, estava longe de imaginar a tragédia que se iria abater sobre um país que se nos revelou pacífico e acolhedor. No dia seguinte ao da nossa chegada a Damasco, passeámos tranquilamente pelas ruas à volta do Hotel Fardoss, na parte central de cidade. Comprámos bolachas, água, algumas lembranças, levantámos dinheiro no multibanco. Foi o primeiro contacto com o Oriente, muito comércio, muita gente na ruas, afinal uma cidade limpa, arrumada, que nada fica a dever a muitas cidades europeias.
A Síria de hoje ocupa parte de um território que foi o berço da nossa civilização. Foi nessa região que se cultivaram os primeiros cereais, que se domesticaram os primeiros animais e que floresceram as primeiras aglomerações de agricultores sedentários, que se ergueram as primeiras cidades. Ali confluíram povos de várias etnias, fenícios, hebreus, amoritas, cananeus, assírios, arameus e hicsos, e ainda hoje convivem ao lado dos árabes, curdos, arménios, turcos, alauitas e cristãos.
Em 64 AC, os romanos ocuparam a Síria que se transformou numa província do Império. Dessa presença restam impressionantes monumentos e cidades hoje dispersas por toda a região incluindo o Líbano, a Jordania e Israel. Palmyra, uma joia no deserto, ficava na rota das caravanas que traziam para o Mediterrâneo os produtos do Oriente. Nessa época, os cristãos criaram uma forte presença na Síria que ainda se mantém. São Paulo converteu-se ao cristianismo na estrada de Jerusalém para Damasco, cidade onde foi batizado por S. Ananias. Maloula, a norte de Damasco, onde eu ouvi o Pai-Nosso recitado na língua de Jesus (o aramaico), é a terra de Santa Tecla e dos Santos Sérgio e Baco.
Os árabes, em 640 DC, conquistam a península Arábica onde reinaram várias dinastias. Na Idade Média, depois do concílio de Clermont, o papa Urbano II prega as cruzadas pedindo aos cristãos para libertarem, a troco de indulgências, os lugares santos da influência do Islão. Os cruzados, populares e cavaleiros, marcham para leste, e conquistam Jerusalém. Erguem-se castelos, fundam-se éfemeros reinos cristãos (Antióquia, Acre, Jerusalém). Ainda hoje o imponente castelo medieval de Krac-les-Chevaliers que se ergue numa colina próximo de Homs, na Síria, evoca esse tempo.
A partir do século XV, e após a queda de Constantinopla em 1453, toda esta vasta região passou a integrar o império otomano. No final da primeira guerra mundial, com a derrota da Sublime Porta, a península Arábica (já cobiçada por ser uma importante área petrolífera) foi repartida, num tratado secreto, entre ingleses e franceses. A linha reta divisória traçada no mapa anexo ao tratado, ainda hoje marca a linha de fronteira entre a Síria, que foi atribuída à França e o Iraque que foi atribuído à Inglaterra. E foi nessa altura que, por influência do movimento sionista, se decidiu a criação de um estado judaico na Palestina.
Em 1946, com uma população de 3 milhões de pessoas, a Síria declara a independência e torna-se um república parlamentar. Após uma tentativa falhada de criação de uma união como Egito que vigorou entre 1958 e 1961, o poder é assumido, em 1971, pela família Assad (primeiro Hafez al-Assad depois, em 2000, Bashar al-Assad), do partido ba'ath. Hoje a população do país ascende aos vinte e três milhões de pessoas, e os efeitos dessa explosão demográfica, à semelhança do que se passa no Egito, levantam sérios problemas. A história recente, amplamente coberta pelos media, é sobejamente conhecida: as guerras com Israel, a ocupação dos montes Golan, a primavera árabe, os rebeldes, a guerra civil, os refugiados, as armas químicas...
O fator energético é uma outra importante variável com influência nas causas da guerra civil e na decisão americana de atacar a Síria. A Síria não é um grande produtor de petróleo nem de gás natural mas está prevista a construção de um importante gasoduto a passar pela Síria para transportar o gás natural proveniente das imensas reservas (as maiores do mundo!) do Qatar e do Irão. Este gás é essencial para a Europa, pois espera-se poder ser canalizado para o gasoduto Nabucco que a CE planeia construir para a Turquia, e, desta forma, reduzir a sua dependência da Gazprom. Ora, a Síria favorece os interesses da Rússia e do Irão e recusou o projeto de gasoduto apoiado pelo Qatar e pela Arábia Saudita. Países estes que, por sua vez, passaram a apoiar financeiramente os rebeldes.
Obama já convocou a nova cruzada contra os Sírios e contra Assad. Entretanto a Europa hesita entre a fidelidade ao amigo americano e a avaliação que faz do risco do ataque. A Rússia está atenta aos seus interesses, e Putin não ficará de braços cruzados perante um ataque americano. A Turquia, país da Nato, a braços com milhares de refugiados, apoia o ataque pensando no problema curdo e na sua adesão à União europeia. O silêncio da China (quebrado a semana passada com um discreto aviso sobre as consequências económicas de um ataque americano) é perturbador mas é revelador de que algo não está a ir ao encontro dos seus interesses.
A América tem o poder de atacar e, neste momento, nenhum país ou força lhe pode fazer frente no plano militar. Nestas condições, a história mostra que os lobbies do armamento dificilmente serão contrariados, e o ataque vai ter lugar. Como tudo acabará é a grande incógnita. As mentes mais avisadas e mais sensatas temem que a Síria, que foi berço de uma civilização, possa vir a ser o cemitério dessa mesma civilização.
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