segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Tribos em Confronto

Os sangrentos acontecimentos de Paris, que vitimaram os jornalistas do Charlie Hebdo, estão a provocar ondas de choque um pouco por toda a parte. Houve amplas e diversificadas reações dos governos e dos meios de comunicação e, no seio da opinião pública europeia, não deixaram ninguém indiferente. A França e a Europa estão com uma ferida aberta, e os governantes não sabem bem quais os curativos para a sarar. Querer reduzir o que se passou no Charlie a um ato isolado, e apelidar os autores do massacre de terroristas ou fanáticos religiosos, é simplificar demasiado o problema. O sérvio Gavrilo Princip que, em junho de 1914, matou o arquiduque Francisco Fernando, em Serajevo, era na atual concepção do termo um terrorista. Ora, o seu ato conduziu à I Guerra Mundial, e com as consequências que todos conhecemos.

Na França vivem milhões de muçulmanos árabes. Muitos deles, possivelmente a maior parte, são cidadãos franceses. Não sendo estrangeiros, eles são, contudo, vistos como estranhos. Vivem de forma diferente, quase sempre nos bairros mais pobres e periféricos, vestem de forma diferente, praticam uma religião diferente e, muitos deles, falam um idioma diferente. São também diferentes os seus valores morais e familiares - destaco aqui a forma como encaram o papel da mulher na família e na sociedade. E não vale a pena ajuizar sobre a superioridade das duas concepções de vida, dos seus valores ou das suas culturas: enquanto pessoas, os francos - não encontro melhor designação para a comunidade francesa tradicional - e os muçulmanos não são comparáveis nem devem comparar-se. Mas as diferenças e a história fazem com que exista, quer dum lado quer do outro, um forte sentimento de pertença a um grupo ou a uma tribo. E quando duas tribos ocupam ou disputam o mesmo território, e se alicerçam em valores e modos de vida diferentes, aparece inevitavelmente o confronto que, quase sempre, acaba por conduzir à guerra.

Na sociedade global, as tribos são globais. Os francos pertencem à tribo do ocidente cujas raízes estão na Europa cristã que herdou a sua matriz do Império Romano do Ocidente, mas que hoje se estende pelas Américas, parte de África e Austrália. Atualmente essa tribo já não tem mais um sustentáculo religioso, e o seu cimento é a economia. Os estados são laicos, o poder radica no voto e os seus principais valores emanam da Carta dos Direitos do Homem onde se afirmam os princípios da Igualdade e da Liberdade. Do outro lado, a tribo Islâmica radica numa vasta e rica região no seio da qual está a emergir um indefinido Estado Islâmico - sem fronteiras, a lembrar o nomadismo dos beduínos. Nestas sociedades o cimento e principal fator de agregação é a religião, os Estados e as Leis são fortemente - nalguns casos totalmente - influenciados pelos princípios do Corão.

A cultura ocidental não assimilou o Islão da mesma forma que assimilou os povos nativos americanos ou africanos. Nem se estabeleceu com estes povos uma convivência pacifica de base comercial tal como existe, por exemplo, com chineses e indianos. O Islão tem uma cultura rica e com tradições no campo da filosofia (onde se destacaram Ibn Sin-Avicena e Averrois), da ciência, da literatura, da arte, da arquitetura... Mas não passou por uma revolução industrial, não sofreu o amadurecimento da renascença, não viveu a revolução cientifica do iluminismo, nem passou pela experiência igualizadora da revolução Francesa. E as duas guerras mundiais do século passado - talvez com exepção da Turquia - só marginalmente afetaram os fundamentos das sociedades islâmicas. Além disso, existe uma longa história de confrontação entre as duas tribos - recordemos a reconquista e as cruzadas - que disputam o mesmo espaço e têm as mesmas raízes religiosas.

A França, onde o fervor medieval da cristandade se reflete na beleza gótica das suas catedrais, vive hoje o tempo das mesquitas. A presença do Islão em França - e noutros países europeus - está em crescimento, e tem uma dinâmica de progressão acelerada. Para isso contribuiu a vinda de muitos argelinos após a descolonização, a forte pressão migratória da populosa África do norte e da zona do Médio Oriente - onde o caso mais notório é a Síria. Nos últimos 20 anos, o número de mesquitas em França duplicou e atualmente outras trezentas estão a ser construídas. Na rede pesco a informação de que "existem cerca de 300 sinagogas em França, e perto de 1.700 mesquitas e locais de culto muçulmano (embora menos de 50 sejam verdadeiras mesquitas), 39.000 igrejas, 1.100 templos protestantes e uma centena de pagodes". Muitos dos muçulmanos residentes em França serão militantes ativos da causa jihadista, ou seja seguidores estritos do corão, empenhados, por todos os meios, em alcançar a fé perfeita.

O confronto, tudo o indica, vai agravar-se. O que se passou no Charlie Hebdo é apenas um episódio de guerra, e não vale a pena discutir se houve ou não exagero na publicação das gravuras. O pretexto poderia ter sido outro qualquer, por exemplo, um massacre numa escola que impedisse uma aluna de usar o véu. As chances favorecem a tribo islâmica, pois os seus elementos reproduzem-se mais, têm menos a perder e têm a crença e o empenho para alcançar a fé do lado deles - para já não falar do petróleo! Os francos, e com eles todo o Ocidente, jogam tudo na assimilação do mundo muçulmano ao modelo ocidental - entenda-se modelo económico, pois não existe outro. Isso ficou bem patente na orientação da cimeira de chefes da diplomacia Europeia - que advoga uma aproximação aos países islâmicos -, na esperança, entretanto desfeita, do ressurgimento de outra primavera árabe. Se falharem os seus intentos, chegará a vez da Senhora Marine Le Pen e dos extremistas de ambos os lados se prepararem para uma nova cruzada.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A Reguladora

Na semana passada, por ocasião de uma viagem ao Norte acompanhado do meu filho Miguel, encontrando-nos nós na cidade de Famalicão e com tempo disponível, decidimos visitar a Reguladora, uma velha fábrica de relógios fundada em 1892. Abordado na rua, um primeiro informador diz-nos que a fábrica já teria fechado e aponta-nos um velho edifício fabril. Arriscámos e, depois de passarmos uma recepção, daquelas que anotam os nomes das visitas, descobrimos que a Reguladora, afinal, ainda existe. Mas logo percebemos que o que encontrámos é apenas muito pouco daquilo que em tempos foi uma grande unidade industrial, e que chegou a empregar mais de 1000 pessoas. Agora é uma singela oficina de reparação de relógios, onde apenas trabalham duas ou três pessoas, embora venda relógios de bolso, importados de Itália, com a marca Reguladora impressa no mostrador. A pessoa que nos recebeu - imagino que fosse o gerente - era de poucas falas e mostrou pouco entusiasmo em contar-nos a longa história da empresa.

Para os possam ter curiosidade em conhecer a história desta fábrica, sirvo-me do texto de Fernando Correia de Oliveira publicado aqui  .
Foi em 1892 que se fundou, na Rua Gomes Freire, no Porto, a firma S. Paulo Carvalho, depois mudada em 1895 para Calendário, Vila Nova de Famalicão. João José de São Paulo, genial mestre relojoeiro, viria a falecer pouco depois, mas o seu sócio, José Gomes da Costa Carvalho, continuou o negócio, fazendo relógios de mesa, de parede, de caixa alta, despertadores. Ele manteve-se até hoje na família Carvalho, mas acaba de mudar de mãos. Estamos a falar da Fábrica Nacional de Relógios, depois A Boa Reguladora, a partir de 1953 apenas Reguladora.
Uma das marcas portuguesas mais perenes e conhecidas – não há praticamente casa onde um relógio seu não tenha entrado. Partindo de cópias de máquinas norte-americanas, a Reguladora fazia nos seus tempos áureos praticamente todas as peças e as caixas, dando emprego a centenas de operários. Foi um dos grandes fornecedores de relógios de Estação para os Caminhos-de-ferro Portugueses e alguns dos seus relógios domésticos atingiram alguma sofisticação, tocando melodias. Para Famalicão, a Reguladora e a família Carvalho foram cruciais – não apenas como grandes empregadores – a electrificação da zona ficou a dever-se a uma máquina a vapor importada pela fábrica de relógios. (...) 
Depois de vender a uma multinacional a sua unidade fabril de contadores eléctricos e de água, depois de várias mudanças no seio da família Carvalho, a Reguladora foi definhando nos últimos dez anos, deixando há muito de fabricar movimentos – importava-os da Alemanha. Agora, três antigos quadros da empresa, José Cunha, José Varela e Filipe Marques, compraram aos Carvalho a marca Reguladora e, partindo de uma pequena empresa de seis pessoas, incluindo dois relojoeiros, localizada ainda em Calendário, vão tentar relançá-la. (...)  Se a Reguladora desaparecer, é um bocado da História de Portugal que desaparece.
 A Reguladora foi, no seu tempo, um caso de sucesso, mas pela forma como terminou - ou está a terminar - ficará na história como um caso de insucesso. Ora nós - esta é a regra das escolas de gestão! – gostamos sempre de analisar os casos de sucesso como forma de aprendizagem, mas eu entendo que se aprende mais a estudar os casos de insucesso.

Claro que o insucesso da Reguladora tem muitas causas, e ocorre-me enumerar algumas: a evolução tecnológica da relojoaria que passou do mecânico para o digital; a globalização e o fim dos protecionismos; a obsolescência dos produtos; a ausência de uma política de marketing e de design ; o facto de ser uma empresa familiar, o envelhecimento do pessoal; a falta de investimentos para renovar os equipamentos de produção; etc. Podíamos traduzir tudo na ideia simples de "má gestão" e ficarmos por aqui. Mas existindo em Portugal sobrantes casos de insucesso - poderíamos citar muitos e terminar na PT em desagregação! - julgo que valeria bem a pena dedicar um curso em qualquer das nossas faculdades de gestão ao estudo deste caso.

O previsível fim da Reguladora não deve confundir-se com os casos dessas empresas que abrem e fecham aqui e acolá, deslocalizando-se à procura do lugar onde têm mais vantagens fiscais ou onde a mão de obra é mais barata. A Reguladora foi criada por portugueses, é uma marca portuguesa, e o seu desaparecimento constitui um grave prejuízo para Portugal, pois estamos a falar de parte do nosso património económico.

Na prática, a Reguladora já não existe nem como empresa nem como marca. Depois de a visitar fiquei com a convicção de que teria sido possível salvá-la com uma gestão correta, atuando no momento certo. As empresas nascem e morrem. Mas as grandes empresas sobrevivem aos seus fundadores. É na capacidade de projetar e prolongar a vida das empresas e das marcas que se revela a pujança de uma economia e se afirma a soberania dos países.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

2015

Obedecendo ao implacável Chronos, os anos sucedem-se inexoravelmente no calendário. Uns partem e outros nascem, alternam-se governos e suas políticas, mudam-se vontades, alimentam-se esperanças, surgem desilusões. No virar da página, que ocorre após cada solstício de Inverno - a festa do ano novo e do renascer da Vida -, assumem-se propósitos de mudança para melhor, que rapidamente são esquecidos e raramente se cumprem.

O ano de 2015 da Era Cristã, que agora começa, assinala a entrada da civilização no terceiro século da moderna era global. Foi há 200 anos que, numa guerra feita com cavalos, pólvora e artilharia, Napoleão e a França foram derrotados em Waterloo. Acreditava-se que se seguiria uma longa paz. A conferência de Viena, que teve lugar nesse mesmo ano, organizou - de forma estável, acreditava-se – a Europa dos Estados. Tudo isto parece que aconteceu há muito tempo. Mas foi por essa época que nasceu o avô do meu avô, tendo decorrido, desde então, apenas o breve tempo de seis gerações.

Nos anos seguintes, a Inglaterra iria dominar os mares e construir um grande império disperso por todo o globo. Mas há 100 anos atrás - já o meu pai era nascido!-, a Europa já estava de novo em guerra. Foi um conflito destruidor - desta vez centrado na mobilidade proporcionada pelo carvão e pela máquina a vapor - que acabou mal resolvido e que, volvidos apenas 20 anos, iria ter uma sequela ainda mais destruidora. Foi uma sangria de pessoas e bens, que acabou por marcar a emergência da poderosa América e o declínio definitivo duma Europa colonialista e desprovida de recursos.

O ano que agora começa vai encontrar o mundo num turbilhão de conflitos. Não se vêem sinais de melhoria na solução dos grandes problemas que lhes estão subjacentes. Estamos no limiar de uma nova era, confrontados com novos desafios: as desigualdades, a sobrepopulação, as alterações climáticas, a escassez de recursos, os limites ao crescimento económico. Muitas das nossas convicções, tais como a crença na tecnologia e na ciência, a perenidade dos valores éticos e religiosos, a crença numa sociedade mais justa e igualitária, a irreversibilidade das conquistas sociais, estão a ser profundamente questionadas.

O futuro do mundo joga-se no eixo que vai da Turquia ao Paquistão, dominado pelo mundo islâmico, e onde convergem os interesses dos Estados Unidos, da Rússia, da China e da Europa. Guardada pela sentinela do ocidente que é o Estado de Israel, aqui se encontra a cobiçada bacia petrolífera do Golfo Pérsico, o maior recurso energético da humanidade. E na fronteira norte encontram-se a Ucrânia e a Crimeia, região que continuará a ser uma área de conflito entre a Rússia e a coligação EUA-Europa.

O excesso populacional, sobretudo em África, é um problema sem solução aparente: os africanos - e também os refugiados dos conflitos no Médio Oriente - vão continuar a pressionar as fronteiras da Europa do sul. Os males da globalização criam tensões, um pouco por toda a parte: o urbanismo está a acentuar bolsas de miséria, os recursos - a começar pela água potável - vão escasseando, o planeta reage à poluição extremando secas e enchentes, facilitando, desse modo, incêndios e perdas de culturas.

Vive-se o ambiente que precede os grandes conflitos. Mas não se espere a reedição das grandes guerras de antigamente. As guerras atuais são localizadas e intermináveis. A guerra entre as grandes potências vai ser uma guerra de outro tipo, possivelmente mais destruidora que as anteriores. Vai ser uma guerra insidiosa, de natureza económica e financeira, e alargada ao ciberespaço. Uma guerra onde a informação e os novos media terão um papel determinante. Alguns acreditam que já terá mesmo começado!