Os sangrentos acontecimentos de Paris, que vitimaram os jornalistas do Charlie Hebdo, estão a provocar ondas de choque um pouco por toda a parte. Houve amplas e diversificadas reações dos governos e dos meios de comunicação e, no seio da opinião pública europeia, não deixaram ninguém indiferente. A França e a Europa estão com uma ferida aberta, e os governantes não sabem bem quais os curativos para a sarar. Querer reduzir o que se passou no Charlie a um ato isolado, e apelidar os autores do massacre de terroristas ou fanáticos religiosos, é simplificar demasiado o problema. O sérvio Gavrilo Princip que, em junho de 1914, matou o arquiduque Francisco Fernando, em Serajevo, era na atual concepção do termo um terrorista. Ora, o seu ato conduziu à I Guerra Mundial, e com as consequências que todos conhecemos.
Na França vivem milhões de muçulmanos árabes. Muitos deles, possivelmente a maior parte, são cidadãos franceses. Não sendo estrangeiros, eles são, contudo, vistos como estranhos. Vivem de forma diferente, quase sempre nos bairros mais pobres e periféricos, vestem de forma diferente, praticam uma religião diferente e, muitos deles, falam um idioma diferente. São também diferentes os seus valores morais e familiares - destaco aqui a forma como encaram o papel da mulher na família e na sociedade. E não vale a pena ajuizar sobre a superioridade das duas concepções de vida, dos seus valores ou das suas culturas: enquanto pessoas, os francos - não encontro melhor designação para a comunidade francesa tradicional - e os muçulmanos não são comparáveis nem devem comparar-se. Mas as diferenças e a história fazem com que exista, quer dum lado quer do outro, um forte sentimento de pertença a um grupo ou a uma tribo. E quando duas tribos ocupam ou disputam o mesmo território, e se alicerçam em valores e modos de vida diferentes, aparece inevitavelmente o confronto que, quase sempre, acaba por conduzir à guerra.
Na sociedade global, as tribos são globais. Os francos pertencem à tribo do ocidente cujas raízes estão na Europa cristã que herdou a sua matriz do Império Romano do Ocidente, mas que hoje se estende pelas Américas, parte de África e Austrália. Atualmente essa tribo já não tem mais um sustentáculo religioso, e o seu cimento é a economia. Os estados são laicos, o poder radica no voto e os seus principais valores emanam da Carta dos Direitos do Homem onde se afirmam os princípios da Igualdade e da Liberdade. Do outro lado, a tribo Islâmica radica numa vasta e rica região no seio da qual está a emergir um indefinido Estado Islâmico - sem fronteiras, a lembrar o nomadismo dos beduínos. Nestas sociedades o cimento e principal fator de agregação é a religião, os Estados e as Leis são fortemente - nalguns casos totalmente - influenciados pelos princípios do Corão.
A cultura ocidental não assimilou o Islão da mesma forma que assimilou os povos nativos americanos ou africanos. Nem se estabeleceu com estes povos uma convivência pacifica de base comercial tal como existe, por exemplo, com chineses e indianos. O Islão tem uma cultura rica e com tradições no campo da filosofia (onde se destacaram Ibn Sin-Avicena e Averrois), da ciência, da literatura, da arte, da arquitetura... Mas não passou por uma revolução industrial, não sofreu o amadurecimento da renascença, não viveu a revolução cientifica do iluminismo, nem passou pela experiência igualizadora da revolução Francesa. E as duas guerras mundiais do século passado - talvez com exepção da Turquia - só marginalmente afetaram os fundamentos das sociedades islâmicas. Além disso, existe uma longa história de confrontação entre as duas tribos - recordemos a reconquista e as cruzadas - que disputam o mesmo espaço e têm as mesmas raízes religiosas.
A França, onde o fervor medieval da cristandade se reflete na beleza gótica das suas catedrais, vive hoje o tempo das mesquitas. A presença do Islão em França - e noutros países europeus - está em crescimento, e tem uma dinâmica de progressão acelerada. Para isso contribuiu a vinda de muitos argelinos após a descolonização, a forte pressão migratória da populosa África do norte e da zona do Médio Oriente - onde o caso mais notório é a Síria. Nos últimos 20 anos, o número de mesquitas em França duplicou e atualmente outras trezentas estão a ser construídas. Na rede pesco a informação de que "existem cerca de 300 sinagogas em França, e perto de 1.700 mesquitas e locais de culto muçulmano (embora menos de 50 sejam verdadeiras mesquitas), 39.000 igrejas, 1.100 templos protestantes e uma centena de pagodes". Muitos dos muçulmanos residentes em França serão militantes ativos da causa jihadista, ou seja seguidores estritos do corão, empenhados, por todos os meios, em alcançar a fé perfeita.
O confronto, tudo o indica, vai agravar-se. O que se passou no Charlie Hebdo é apenas um episódio de guerra, e não vale a pena discutir se houve ou não exagero na publicação das gravuras. O pretexto poderia ter sido outro qualquer, por exemplo, um massacre numa escola que impedisse uma aluna de usar o véu. As chances favorecem a tribo islâmica, pois os seus elementos reproduzem-se mais, têm menos a perder e têm a crença e o empenho para alcançar a fé do lado deles - para já não falar do petróleo! Os francos, e com eles todo o Ocidente, jogam tudo na assimilação do mundo muçulmano ao modelo ocidental - entenda-se modelo económico, pois não existe outro. Isso ficou bem patente na orientação da cimeira de chefes da diplomacia Europeia - que advoga uma aproximação aos países islâmicos -, na esperança, entretanto desfeita, do ressurgimento de outra primavera árabe. Se falharem os seus intentos, chegará a vez da Senhora Marine Le Pen e dos extremistas de ambos os lados se prepararem para uma nova cruzada.
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