Há apenas alguns anos, o Egito parecia ser um caso de sucesso. Em 1991
iniciou-se, neste país, um programa de reformas com o apoio do FMI que
levou à privatização de centenas de empresas públicas. Na década
seguinte, foram melhoradas as infra-estruturas e captados investimentos
estrangeiros. O sucesso desse esforço teve como resultado um crescimento
anual do PIB em torno de 5%, no período de 1995-1998, e de 6,3% em 1998 e
1999. E em 2008, o PIB ainda teve um crescimento estimado em 6,9%. O Egito
nunca foi visto como um país de fundamentalismo islâmico, e era muitas
vezes referido e elogiado, nos meios de comunicação, pelas suas posições
moderadas em relação aos israelitas.
No início de 2011, o mundo sobressaltou-se com a chamada
primavera árabe, expressão que designou os movimentos que se sucederam nos países islâmicos banhados pelo mediterrâneo, primeiro na Tunísia, depois no Egito, na Líbia, na Síria e no Iémene. Os políticos, pressurosos, entusiasmaram-se com estes movimentos. Falaram em democracia e defesa das liberdades, e logo idealizaram cenários
futuros com modelos de governação ocidentais, aplicados aos países em
turbulência. Javier Solana, muito otimista, disse que "Israel não será mais a única
democracia da região, e deverá adaptar-se para poder garantir, de outro
modo, a sua segurança", palavras que Mário Soares, de imediato, aprovou e considerou
sábias (DN 22.2.2011). Mas
o Oráculo de Vence, escrevendo no Público (21.2. 2011) , evoca as cruzadas e lembra Avicena e Averrois para esclarecer: “o Islão não se converterá ao nosso modelo”.
Mas é preciso perceber aquele fenómeno que tem causas que não se explicam exclusivamente nem por razões históricas nem políticas. São sobretudo causas económicas (mas não só!), que têm muito a ver com a globalização e são sinais da inevitabilidade da rutura de um modelo
nos limites, submetido a várias forças de pressão internas. Sem possibilidade de expandir-se, estas pressões fazem-no “rebentar pelas costuras”. Como força mais evidente temos a que resulta da pressão demográfica. O Egipto duplicou a sua população nos trinta anos do regime de Hosni Mubarak, passando de 40 para 80 milhões de habitantes. E, desde a queda do anterior presidente, em pouco mais de 2 anos, a população já aumentou para 84 milhões. Este rápido crescimento produziu uma população urbana e extremamente jovem (31,5% tem menos de 15 anos, e apenas 5% tem mais de 65 anos). A manter-se a atual taxa de crescimento populacional (cerca de 2% ao ano), a população do Egipto voltará a duplicar até 2050. E os problemas irão agravar-se, nomeadamente os alimentares, pois a terra arável, já escassa, vai continuar a ser ocupada por edifícios e outras estruturas, e sobrar menos para a agricultura. E, claro, o desemprego entre os jovens que são já uma geração "net", cada vez mais cultos e informados, continuará a grassar.
Outro factor, influenciador do desequilíbrio do sistema, tem a ver com as desigualdades sociais e com a pobreza, agravadas nos tempos que correm pela carência de recursos alimentares e pela dependência externa. A recente escalada dos preços de certos bens, (o trigo, o milho, o café, a soja, o algodão) provocou inflação e corroeu o poder de compra. Ora a democracia é um regime que convive melhor com a abundância do que com a escassez. É difícil explicar a um povo que o poder lhe pertence e pedir-lhe votos, quando ele passa fome. O pão alimenta a democracia, mas a democracia, só por si, não dá o pão.
Nas últimas décadas, o Egipto produzia e exportava petróleo, mas as exportações tendem a desaparecer: em 1990, produzia 900 mil barris por dia, dos quais metade destinava-se ao consumo interno, e a outra metade era exportada. Mas, entretanto, a produção declinou e o consumo aumentou. Atualmente produz 700 mil barris por dia, que já são escassos para o consumo interno. De tal forma, que o Egito já é, desde 2011, importador petróleo, e o que era uma receita é agora uma despesa. A exploração e produção de gás representam uma das áreas promissoras da economia. A expectativa é que essa promessa se mantenha, com base nos planos de investimento já aprovados, e justificadas por recentes descobertas de novas reservas de gás.
O problema alimentar, já referido, é outro grave problema de um país que já foi o celeiro do mundo mediterrânico , o "presente do Nilo" de que falava Heródoto, é hoje um país que enfrenta um futuro sombrio no que respeita à produção de alimentos. O Egito é um dos maiores importadores mundiais de cereais (trigo e milho). Segundo estatísticas do ministério egípcio do petróleo, este país importa 40% da sua alimentação e 60% do trigo que consome. Problemas climáticos a nível mundial, e a produção de bio-combustíveis, que estão na origem da atual escalada dos preços das matérias primas, só têm servido para agravar a situação.
No Egito, o turismo representa indiretamente 11% do PIB, mas a crise interna e a crise mundial, aliadas aos efeitos do elevado preço do petróleo nas transportadoras aéreas, estão a afetar o sector que emprega 3 milhões de pessoas. Fala-se que em receitas de turismo, e durante a presente crise, o país perde 300 milhões de dólares diários.Uma outra importante fonte de riqueza deriva das tarifas cobradas aos cerca de 15000 navios que, por ano, passam pelo canal de Suez. A eventualidade do encerramento desta estratégica via marítima constituiria um tragédia não só para o Egito mas para todo o mundo, e as consequências seriam um forte agravamento da crise económica global.
Aquilo que se está a passar no Egito, é um afloramento da gravidade da situação mundial. Não é apenas uma questão de regime político, e quem vier a seguir vai ter de enfrentar exactamente os mesmos problemas, ou até agravados. Porque esta é essencialmente uma questão que reflete os problemas e as contradições da globalização. As raízes do problema são muito complexas e a
economia não as vai resolver, porque a economia gere os recursos mas não os cria, fala de população mas não a regula, exige insistentemente o crescimento mas não sabe como promovê-lo.
O Islão
não se converterá ao nosso modelo, pelas razões que apontou
Eduardo Lourenço, mas não só. Os problemas dos países árabes são o sintoma
de uma doença mais profunda, e continuarão, por muito tempo, a ocupar o
nosso dia-a-dia. E a Europa e o Mundo não podem alhear-se do drama egípcio, porque num mundo global, uma perturbação num só lugar
afetará todo o planeta.
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