segunda-feira, 8 de junho de 2015

A Sanfona



O mestre-violeiro - luthier em francês, não encontro em português melhor designação para fabricante de instrumentos musicais de corda - já tem as mãos afeitas ao fabrico de bandolins, cavaquinhos, violinos, guitarras clássicas e guitarras portuguesas. Para ele, a confeção destes instrumentos não tem segredos. Conhece as minuciosas técnicas para produzir sons com a máxima riqueza harmónica, e sabe quais as madeiras mais adequadas a cada parte do instrumento: o abeto da flandres para a frente da caixa, o pau santo, o mogno ou madeira de pereira para o fundo e para as abas. Utiliza cola feita à base de gelatina animal e, no envernizamento, prefere a goma laca natural aos produtos sintéticos. Os grandes instrumentistas portugueses preferem os seus instrumentos e ele tem a certeza que nunca os desiludirá.

A ideia de construir uma sanfona portuguesa persegue-o desde que a viu representada em figuras de presépio do século XVII. Atraiu-o também a doçura da melodia e a sonoridade do instrumento. Há centenas de anos que não se construía uma sanfona em Portugal; não existia instrumento antigo que lhe servisse de modelo. A sanfona de cordas, também conhecida por viela de roda - não confundir com a sanfona que é no Brasil a designação de acordeão -, era na Idade Média um instrumento tocado nas igrejas, na corte e nos palácios da nobreza. A decadência económica das famílias, e a dificuldade em a manter e preservar, fê-la cair nas mãos dos cantores de rua. Em seguida, substituída nas igrejas pelo órgão, caiu no esquecimento e quase desapareceu.

A sanfona baseia-se no princípio da corda friccionada. Uma roda resinada, e acionada por uma manivela, friciona as cordas que emitem um som contínuo. É como se fosse um violino em que a roda, fricionando as cordas, desempenha o papel do arco. As seis cordas têm funções diferentes: os dois bordões e as duas cordas rítmicas fazem o acompanhamento de forma contínua, ao mesmo tempo que um teclado modela as notas nas duas cordas melódicas centrais. O som produz-se no interior da caixa de ressonância, e já alguém a comparou a uma catedral em miniatura, lembrando que uma catedral é a caixa de ressonância do coro que entoa o canto gregoriano.

Durante cinco anos, o mestre-violeiro investigou, experimentou cordas, concebeu a caixa de ressonância mais adequada às cordas escolhidas. Depois desenhou as peças delicadas que têm de funcionar como o mecanismo de um relógio: as teclas com os seus martelos feitos em madeira de ácer, o estandarte que fixa as cordas, a cabeça com as suas cavilhas, a manivela de latão gravada que aciona a roda suportada pelos seus apoios. Tudo foi feito à mão: primeiro a madeira de pinho de flandres delicadamente moldada com o ferro quente; depois as abas laterais e o fundo em pau santo acabadas com o raspador e com as pequenas plainas que ele próprio fabricou; a seguir uma passagem com a lixa fina, antes da aplicação do verniz natural; finalmente a montagem da roda resinada e a aplicação das cordas de tripa e de aço.

Foi em Almeida, na semana passada, que eu encontrei por acaso o mestre-violeiro. Estava com o filho de oito anos, um menino prodígio que toca violino como um anjo. Ensinou-me que ser luthier é ser humilde, é ser persistente, é construir uma filosofia de vida, ser um consumidor consciente e frugal. Fernando Meireles é o mestre-violeiro, um dos melhores do mundo. Tem a sua oficina em Coimbra, começou sem tradição familiar, apaixonou-se pela arte, procura os materiais certos, as técnicas adequadas que ele próprio aperfeiçoa. Cada instrumento que ele fabrica é uma paixão.

No mundo formatado pela educação do nosso tempo perdem-se talentos, ignoram-se vocações, eliminam-se profissões. Na voracidade da urgência da aprendizagem do português e da matemática na idade que o currículo impõe, e não na idade em que a mente o pede, os alunos são reduzidos a peças de uma engrenagem que formata de forma igualitária. Quantos violeiros não se perdem nesse processo? Quantos talentos ficam por desabrochar! Quantas sanfonas ficam por fazer!

Ouça aqui um concerto de sanfona

1 comentário:

  1. O LQ continua a surpreender os amigos com uma enorme versatilidade cultural, como se verifica na erudição com que trata a sanfona e o tema da construção de instrumentos musicais de corda.

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