segunda-feira, 23 de junho de 2014

A Questão da Terra

Em 1375, após os anos da peste negra, numa situação de fome, de crise e de abandono dos campos, o Rei D. Fernando manda publicar a Lei das Sesmarias, determinando que os possuidores das terras incultas eram obrigados a cultivá-las ou, caso o não fizessem, perderiam a sua posse. Naqueles tempos as terras pertenciam à Coroa, aos senhores feudais ou às ordens religiosas; eram distribuídas aos agricultores pelo sesmeiro em regime de enfiteuse ou de aforamento. Os agricultores, por sua vez, pagavam uma renda e podiam transmitir os direitos aos seus descendentes por um certo número de gerações ou de forma perpétua. Com o decorrer do tempo, esses contratos foram sendo resolvidos e acabou por prevalecer o regime de propriedade plena em que a posse da terra é reconhecida como perpétua e transmissível. A Lei das Sesmarias ficou para a História mais pela sua intenção do que pelos resultados obtidos - que não se conhecem, mas os quais, imagino eu, não terão sido notáveis.

A partir do momento em que o homem se sedentarizou e começou a produzir os seus alimentos, a questão da propriedade e da posse da terra passou a ser uma questão central dos estados organizados. A posse da terra conferia poder, era disputada, passava de pais para filhos. O sistema hereditário de morgadio foi instituído para manter a unidade das explorações, e o seu abandono favoreceu a divisão da terra. Durante séculos, nas serras e nos planaltos da Beira Interior, a área dos terrenos, sucessivamente divididos pelos filhos, foi-se reduzindo, ao mesmo tempo que se começaram a levantar muros à volta dessas parcelas progressivamente mais minúsculas.

O sistema de minifúndio vigorou pacificamente no norte de Portugal durante centenas de anos: cultivava-se a terra e apascentava-se o gado nas pastagens. Toda a vida das comunidades decorria à volta destas atividades. Mas a era industrial alterou este estado de coisas. A utilização de uma energia armazenada durante milhões de anos - a energia fóssil - permitiu concentrar a produção de alimentos nas regiões mais convenientes e mais produtivas, e criar um sistema de transportes e de distribuição para levar, a preços mais baixos, esses alimentos a outras regiões. Foi isso que matou a agricultura de subsistência baseada nas pequenas explorações familiares . Os agricultores, privados da sua fonte de rendimento, abandonaram a terra, emigraram para as cidades, e muitos campos foram deixados incultos.

Na atualidade, a crise, o desemprego, o desencanto dos subúrbios das megaurbes leva as pessoas a voltar a olhar para o campo, e muitos começam a acreditar que esse pode voltar a ser o destino de uma Humanidade despojada dos recursos fáceis mas esgotáveis da era do carbono. Neste contexto, volta a colocar-se a questão do ordenamento do território agrícola e da necessidade de valorizar e viabilizar as explorações para voltar a atrair pessoas para o campo. Volta a falar-se de emparcelamento. O regime de minifúndio não permite fazer uma agricultura nos moldes modernos e isso tem de ser rapidamente alterado.

O futuro da agricultura de vastas zonas - sobretudo no norte de Portugal - depende da capacidade de modificar o regime da propriedade rural. Disso mesmo se aperceberam os governantes que, desde o século XIX, têm legislado no sentido de promover o emparcelamento. Terá sido Salazar quem, em 1962, com a publicação das leis do emparcelamento - Lei n.º 2116, de 14 de Agosto, e o Decreto n.º 44647, de 26 de Outubro - procurou de forma mais consistente resolver esta questão. No entanto, os resultados foram parcos, pode dizer-se praticamente nulos, e a questão de fundo prevalece sem alteração. Em 1988 uma nova tentativa - o Decreto-Lei n.º 384/88 de 25 de Outubro - teria o mesmo insucesso. Chegou o momento de investigar as causas destes falhanços, e regressar ao assunto de forma mais consequente.

Para alimentar a população em crescimento, durante milhares de anos os campos da Europa foram desflorestados, arroteados, desbastados, lavrados. A irrigação, a lavoura, a charrua de ferro, os fertilizantes importados de outras paragens (os fosfatos, o guano,...) permitiram aumentar a produtividade da terra. As regiões bastavam-se a elas próprias; prosperaram. Nas terras semeadas, tratadas, irrigadas, a energia solar transformava-se em alimento. As grandes catedrais da idade média, as viagens de exploração iniciadas no século XVI, a renascença, o desenvolvimento científico, nasceram da terra.

Nos nossos dias já não é a terra cultivada que move o mundo, mas sim o líquido negro que jorra das suas entranhas. Porém, a nossa civilização tem as suas raízes no amanho terra. Só a seiva que flui dessas raízes poderá trazer a prosperidade a que todos aspiramos. Temos de as cuidar e preservar se queremos ter futuro!

1 comentário:

  1. Muito bom texto! Gostava de saber a tua opinião sobre o sistema inglês e alemão em que apenas um filho herda as terras com o objectivo de não as dividir e não enfraquecendo os sistemas de produção nacionais!!

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